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“O pensamento único mata”

O jornalista e homem de teatro Oswaldo Mendes fala de sua opção pelas artes cênicas

CECÍLIA PRADA


Oswaldo Mendes
Foto: Arquivo pessoal

Oswaldo Mendes, figura destacada tanto no campo do jornalismo como no do teatro, é um típico representante da geração que despertava para a vida quando o país sofreu o golpe militar de 1964, e que lutou durante os 20 anos seguintes pelo restabelecimento da normalidade democrática. Aos 60 anos, Oswaldo – nascido em 1946 em Marília (SP) – revê sua trajetória profissional dupla, caracterizada por uma inquietação intelectual sadia e atuante e pela renovação diária daquela "pesquisa íntima" necessária a todos nós, e principalmente a um "homem de teatro". Ator, diretor e autor, ele tem um currículo marcado por vários prêmios importantes e presença criativa no campo desde 1970 – seu primeiro trabalho de direção foi o da peça Fim de Jogo, de Samuel Beckett. Há seis anos integra o grupo Arte Ciência no Palco, um dos pouquíssimos do país empenhados no desenvolvimento sistemático de um teatro de conteúdo intelectual, sério e estimulante.
Como jornalista profissional, de 1966 a 1992 ocupou cargos importantes na imprensa paulistana, principalmente na "Última Hora" e na "Folha de S. Paulo" – onde foi editor do "Folhetim" e depois subsecretário da "Folha" –, e mais tarde como editor de cultura da revista "Visão".

Problemas BrasileirosO que veio primeiro, o jornalista ou o homem de teatro?
Oswaldo Mendes – Os dois, simultaneamente. Comecei tudo muito cedo, ainda adolescente, na minha cidade. Aos 17 anos fui trabalhar como jornalista no "Correio de Marília", 15 dias antes do golpe militar de 1964. Na edição do dia 1º de abril, um texto meu falava de "golpe das forças reacionárias contra o Estado democrático" e reafirmava a esperança de que o governo sufocaria o movimento golpista. Como se sabe, não sufocou. E fui, sim, chamado pelo delegado de polícia para me explicar... Ao mesmo tempo já participava do teatro amador da cidade, que foi muito importante para minha formação como ator.

PBComo foi sua formação política?
Oswaldo – Eu já estava também ligado ao movimento estudantil – era presidente da União de Estudantes Secundários. Participei dos grupos da Ação Católica – nessa época, a Igreja já era a da Libertação. Paralelamente, as pessoas que marcaram minha formação eram marxistas, comunistas, inclusive em Marília, como um escritor pouco conhecido, Osório Alves de Castro, que ganhou o Prêmio Jabuti na década de 1960, e que era um homem do Partido Comunista. Minha família era católica tradicional, e eu estava cercado dessa convivência. Talvez venha daí a tolerância que sempre me caracterizou. Acho até que é uma verdadeira intolerância à intolerância. Pessoas diferentes podem conviver. O pensamento único mata. Não tolero os "donos da verdade", pessoas desprovidas de senso de humor, em primeiro lugar.

PBQuando veio para a capital?
Oswaldo – A primeira vez que troquei Marília por São Paulo foi quando tinha 19 anos e resolvi cursar a Escola de Arte Dramática [EAD]. Fiz seis meses de dramaturgia e crítica com os melhores professores – Jacó Guinsburg, Alfredo Mesquita, Décio de Almeida Prado, Augusto Boal, Sábato Magaldi e Anatol Rosenfeld. Mas estava desempregado – só queria trabalhar em teatro ou em jornal. Meus pais não tinham recursos para me sustentar e tive de voltar para Marília. O que acabou se transformando também em uma experiência interessante, pois fui nomeado diretor da Biblioteca Municipal. Nesse cargo pude promover edições de livros, eventos de teatro e de cinema. Fizemos Dois Perdidos numa Noite Suja, de Plínio Marcos, de quem me tornei muito amigo. Enquanto isso, cursei pedagogia, na Faculdade de Filosofia local.

PBVocê nunca foi de ficar muito parado...
Oswaldo – É verdade. Eu sempre aproveitava algum fim de semana para me atualizar com o que se passava no teatro, em São Paulo. Numa dessas viagens assisti a Marat/Sade, na antológica montagem de Ademar Guerra. Na saída peguei um folheto sobre um concurso de crítica ao espetáculo aberto a estudantes universitários. Chegando a Marília, escrevi um texto e mandei. Sem nenhuma expectativa, continuei minha vidinha até que um dia recebi um telefonema: eu deveria estar em São Paulo no início da semana seguinte para receber, no programa de Hebe Camargo, o prêmio pela minha crítica. E lá estava eu, no palco da TV Record, ao lado de Ademar Guerra, Armando Bogus e Irina Grecco. Conto isso porque o encontro com Ademar e Bogus seria importante na minha volta em definitivo para São Paulo, dois anos depois.
No final de 1968, a decisão estava tomada. Sabia que se passasse para o terceiro ano da faculdade, as pressões familiares e dos amigos para que eu concluísse o curso de pedagogia seriam enormes. Abandonei a faculdade e comecei a me preparar para deixar Marília. A situação ali estava confortável demais, e minha relação com a cidade se esgotara. Absorvera tudo o que ela podia me oferecer e, até com certa imodéstia, havia retribuído na medida dos meus parcos recursos. Assim, aprovado no curso de interpretação da EAD, em fevereiro de 1969 pedi demissão da Biblioteca Municipal de Marília e estava de volta a São Paulo.

PBE dessa vez tinha emprego?
Oswaldo – Não. Mas, bem ou mal, consegui sobreviver. Um dos meus professores da EAD, Paulo Mendonça, era crítico de teatro da "Folha de S. Paulo" e me apresentou ao diretor do jornal, Cláudio Abramo. Fui admitido como colaborador, só que não pagavam... Um belo dia, recebo uma carta do Banco do Brasil, pois havia pelo menos cinco anos prestara concurso para escriturário do BB, levado mais pelos colegas de colégio. Na época, para filhos de classe média e ferroviários, como eu, entrar para os quadros do Banco do Brasil era um prêmio para a vida toda. Eu deveria me apresentar na agência Tiradentes, em São Paulo, que ficava exatamente em frente à EAD. "Você nasceu virado pra Lua", festejaram meus amigos. Mas eu não estava feliz. Eu, bancário? Isso não tem nada a ver comigo, com meus sonhos. Não pensei duas vezes: escrevi ao Banco do Brasil, abrindo mão do emprego e da segurança.

PBQue peripécias mais teatrais, não? Ou, antes, circenses...
Oswaldo – É mesmo. Na corda bamba... pois a "Folha" não me admitiu, e tive de penar mais alguns meses até que fui contratado, sim, mas pela "Última Hora". Primeiro para a área de variedades, onde trabalhei com um grande crítico, João Apolinário [Teixeira Pinto], que criou a Associação Paulista de Críticos de Arte [APCA], de cuja primeira diretoria participei, como secretário. Fui assumindo outras funções e, na crise política de 1977 – o "pacotão de abril" do Geisel –, tive de me tornar "editor responsável" do jornal. Depois assumi a direção, cargo em que fiquei até o início de 1979, quando deixei a "Última Hora" para ir dirigir o caderno "Folhetim", da "Folha".

PBO "Folhetim" fez história e fama.
Oswaldo – Foi uma grande experiência. Hoje, há teses sendo preparadas sobre ele, até de doutorado. Na semana em que assumi o "Folhetim", tomei o elevador com "seu" Octavio Frias, que era, com Carlos Caldeira, dono do jornal – e ele me disse que esperava ver no suplemento a irreverência que eu havia imprimido à "Última Hora". Levei comigo um pessoal jovem – eu mesmo estava com 31 anos –, que tinha um desejo de ruptura, vinha da imprensa nanica que conseguira sobreviver sob a ditadura, como "O Pasquim", do Rio de Janeiro, e o "Movimento", de Raimundo Pereira, de São Paulo. Todos nós queríamos escrever com caligrafia própria nossa história e a história comum. Estávamos marcados pelo assassinato de Vladimir Herzog. Foi um período de pré-movimento pela anistia aos presos e exilados pelo regime.

PBE vocês conseguiam escrever livremente, mesmo naqueles tempos?
Oswaldo – Bem, além dos problemas com a censura, dentro das próprias empresas jornalísticas aconteciam coisas como esta: o primeiro número do "Folhetim" por pouco escapou de ser o último... Porque, saindo da "Última Hora", levei comigo o cartunista Henfil, e logo na primeira edição do suplemento apareceram meu editorial ("A censura caiu? Não, tropeçou") e bem ao lado sua coluna "Carta ao Primo Figueiredo", que tanto irritava Carlos Caldeira. Para completar, entreguei uma página para Henfil trazer de volta seu personagem Zeferino, ao lado da Graúna e do Bode Orellana, que estavam fora da imprensa desde os tempos de "O Pasquim". Fechei a edição na noite de sexta-feira e viajei para o interior. Ao voltar na segunda-feira, Boris Casoy me chamou à sua sala. Estávamos com um problema. Na madrugada de sexta para sábado, Carlos Caldeira passou pelas rotativas e, quando viu o "Folhetim", mandou parar as máquinas e chamou o Boris, exigindo que suspendesse a edição e me mandasse embora junto com o Henfil. Por sorte eu estava fora da cidade, senão teria sido difícil me segurar no jornal. Boris conseguiu convencê-lo a deixar o "Folhetim" circular e prometeu resolver o problema na segunda-feira. A única saída era eu dispensar o Henfil ou ser demitido. Pedi um tempo. Liguei para o Henfil, eu muito aflito, e ele rindo do outro lado, pois já conseguira um emprego na TV Globo, onde faria um quadro no programa da Marília Gabriela. Disse: "Se segura aí que eu já tenho onde me segurar". E assim fiquei no "Folhetim" até meados de 1981, quando assumi a subsecretaria de redação da "Folha de S. Paulo".

PBEntão, um belo dia, você resolveu optar pelo teatro, com exclusividade. Como se deu essa escolha?
Oswaldo – Procurei sempre conciliar as duas tendências, fui jornalista mas nunca deixei de ser ator, autor ou diretor teatral. Dirigi espetáculos importantes, como Essa Mulher, de Elis Regina, em 1978, e Sinal de Vida, de Lauro César Muniz, com Antônio Fagundes, em 1979/80, que me valeu uma indicação para o Prêmio Mambembe de Melhor Diretor. Mas um dia percebi que minha vida nas redações tinha se esgotado e que eu precisava "voltar para casa" – e essa "casa" era o teatro, exclusivamente. Fui jornalista até 1992, e o meu último emprego foi o de editor de cultura da revista "Visão".

PBEm que circunstâncias se deu essa escolha?
Oswaldo – No final de 1983, fui convidado a assumir a editoria de cultura da revista "Visão" e aceitei com prazer, pois queria me ver livre do jornalismo diário. Ali encontrei um ambiente tranqüilo e tive tempo até para concluir uma peça sobre Getúlio Vargas, Um Tiro no Coração, que estreou em agosto de 1984, com Dionísio Azevedo. Um belo dia, me convocaram para uma reunião com o diretor de redação, que queria lançar um caderno de serviços para cobrir os eventos culturais de São Paulo e do Rio de Janeiro. Em princípio seria um roteiro, "coisa simples", que não daria muito trabalho. Doce ilusão! Sempre invejei uma publicação inglesa, a "Time Out", já bastante famosa na época. Por coincidência, a seção de cultura da "Visão" se chamava "Tempo Livre". Era a chance de fazer algo parecido com a "Time Out" na imprensa brasileira. E assim nasceu nos primeiros meses de 1984 o caderno "Tempo Livre", um encarte da revista que circulava em São Paulo e no Rio. Bem depois é que as concorrentes lançaram seus cadernos, como a bem-sucedida "Veja São Paulo". O "Tempo Livre" continha um rico e variado material de leitura, com uma criteriosa cobertura da vida artística e cultural das duas cidades. Há muitas e boas lembranças desse trabalho, mas pessoalmente destaco a volta de Bárbara Heliodora à crítica teatral – na época ela estava afastada e decidida a não voltar, mas acabou aceitando o convite. Com o sucesso do caderno, o volume de trabalho simplesmente dobrou e, durante os seis anos em que fiquei na "Visão", meu tempo livre desapareceu, e o retorno ao teatro foi adiado. Depois de sair da revista, no início de 1990, ainda fiz breves paradas nos jornais "Folha da Tarde" e "Shopping News", antes de voltar em definitivo ao teatro. Se disser que não tenho saudade e boas lembranças dos meus tempos na imprensa estarei mentindo. Mas hoje, há quase duas décadas de volta ao teatro, sinto que este é o meu lugar.

PBComo tem sido seu trabalho teatral, desde então?
Oswaldo – No decorrer da década de 1990 atuei em alguns espetáculos importantes, como A Gaivota, de Tchecov, Oeste, de Sam Shepard, Medéia, de Eurípides e Sêneca, e em um espetáculo que eu próprio escrevi, Voltaire – Deus me Livre e Guarde, e que me deu o Prêmio Mambembe na categoria de Melhor Autor. A partir de 2001 passei a integrar como ator o grupo Arte Ciência no Palco, onde estou até hoje, e que apresentou em 2005 outro espetáculo de minha autoria, A Dança do Universo. Fui indicado ao Prêmio Shell de Melhor Ator em 2002 por minha atuação na peça Perdida – Uma Comédia Quântica, desse mesmo grupo.

PBComo se formou esse grupo?
Oswaldo – Foi fundado por Carlos Palma, juntamente com uma diretora de arte da Globo. Me convidaram para fazer Einstein, mas acabou sendo o próprio Palma quem fez. Depois, compraram os direitos de Copenhagen, e cheguei a indicar 18 atores para fazer o papel do físico Niels Bohr, mas nenhum aceitou, pois o texto era um verdadeiro "tijolo". Todos diziam que era impossível fazer esse papel, com aquele diálogo todo científico, dificílimo de decorar. Fiquei assustado também, mas resolvi mergulhar. Assuntos como física quântica, fusão nuclear, era tudo mais do que grego para mim. Encontro no Arte Ciência as condições de realizar aquilo que sonhei a vida inteira sobre a função e o sentido do teatro.

PBO que acha do teatro brasileiro de hoje?
Oswaldo – Pergunta difícil. Acho que estamos precisando de uma nova revolução, pois faz-se muito teatro profissional, mas temos pouco teatro amador, até mesmo pelo interior. Existe uma proliferação do "fazer teatral", a coisa do "sou um profissional!", uma preocupação perigosa.

PBDo ponto de vista do conteúdo, o teatro de hoje corresponde às necessidades do momento histórico que vivemos?
Oswaldo – De maneira geral, não. O que vemos são grandes espetáculos, recursos cênicos, teatro digestivo, com pouco conteúdo. Vivemos uma era de excesso de informações, acesso fácil a traduções, e isso acaba gerando muito pensamento teórico sobre o teatro, muitas teses. Meu medo é que essa teoria se distancie da prática e que o pessoal da prática comece a descobrir a roda, e fique dando voltas. Acho que isso é um problema de qualquer área do conhecimento, no teatro não poderia ser diferente, de repente você acaba descobrindo que alguém já tinha pensado nisso.
No caso do grupo Arte Ciência, não estamos inventando nada, apenas dando continuidade ao teatro da era científica proposto por Brecht lá atrás. O mundo não é mais aristotélico, Brecht já dizia na década de 1940, e que o teatro tinha de descobrir o caminho para responder a isso. Não bastava mais ser entretenimento, a história do teatro mudava a partir desse ponto. Por exemplo, no Brasil na década de 1950 o teatro era tudo, discutia política, ética, divertia; concentrava as expectativas do espectador, de encontrar todo o estímulo em um lugar, não só para sua imaginação, mas para seus sentidos. Hoje esse objetivo é atendido de outra forma, e melhor, com a internet, por exemplo. Ir ao teatro buscar só isso é perda de tempo. Como responder à provocação de Dürrenmatt – "como o teatro pode ser um espelho?" Para isso não basta mais o talento do ator, que tem cada vez mais de exercitar sua inteligência, abrir as portas da percepção e sensibilizar o público para uma nova visão.

PBComo explicar o grande sucesso que seu grupo vem obtendo com peças que seriam "difíceis", como Einstein e Copenhagen?
Oswaldo – Isso mostra que o público está ávido de conteúdo mais sério, de temas que provoquem debate. Foi um sucesso inesperado, inclusive entre o público muito jovem, até de estudantes do secundário. Essas peças ficaram muito tempo em cartaz em vários teatros de São Paulo e do Rio de Janeiro, ganharam prêmios. E continuam a ser feitas em escolas, em universidades que nos chamam, não é um teatro escolar, quem assistiu sabe que não é essa a função, é para provocar um novo tipo de pensamento. Fizemos uma temporada da peça Copenhagen pela Secretaria da Cultura em escolas públicas do interior, não é um texto acessível, mas tivemos um bom retorno dos jovens e temos planos para apresentações no próximo ano. Devemos estrear ainda este ano outra peça muito interessante, After Darwin. Estamos fazendo leituras dela, com debates e muita participação do público.

PBO que acha das leis de incentivo cultural, da Lei Rouanet, para o teatro?
Oswaldo – Acho que a Lei Rouanet e as outras também hoje não servem mais para o teatro, pelo que tenho visto nas próprias empresas, que acabam adotando os projetos que lhes agradam sem necessitar de renúncia fiscal. Atualmente capta-se muito pouco pela lei. Em outros países o teatro e a música erudita são subsidiados pelo governo, que reconhece a importância de dar apoio à arte. O teatro é uma coisa cara, e é preciso haver verba oficial para isso. Aqui, a Lei Rouanet foi desvirtuada, o Estado passou para a sociedade a responsabilidade de manter as produções artísticas.

 

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