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REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

UM SÉCULO DE MÚSICA

 

O compositor paulista Camargo Guarnieri foi do erudito ao choro, mostrando talento e diversidade numa época de grandes discussões estéticas

 

Ele ganhou o Prêmio Gabriela Mistral, concedido pela Organização dos Estados Americanos (OEA), de maior compositor contemporâneo do continente americano. Foi regente convidado e membro do júri do conceituado Conservatório Tchaikovsky, em Moscou, capital da Rússia. Dirigiu por quase 20 anos a Orquestra Sinfônica da Universidade de São Paulo (Osusp) - criada em 1975, pelo então reitor da universidade, Orlando M. de Paiva. É também comparado a Heitor Villa-Lobos (veja boxe O nacional e o nacionalista). De qual figura da música brasileira estamos falando? Mozart Camargo Guarnieri, compositor e maestro que atravessou o século construindo uma obra de mais de 700 peças. O músico, morto em 1993, flertou com vários gêneros, como canções, concertos, sinfonias, choros e óperas, e deixou um legado que é referência para a música brasileira erudita e popular. Mas, apesar dos aplausos que ouviu mundo afora, ficou ao largo do reconhecimento do grande público no Brasil.
Ele próprio queixava-se disso. Segundo o amigo Antonio Lauro del Claro, violoncelista, de 57 anos, Guarnieri costumava dizer: "Estão esperando minha morte para tocar minha música". O instrumentista, que foi regido pelo maestro na Osusp, explica que a franqueza era um de seus traços de personalidade. "Camargo era autêntico, não escondia emoções", diz o colega de orquestra. "Ele achava que poderia ter ouvido um pouco mais sua própria composição ser tocada aqui." Del Claro conta também que apesar de o maestro mostrar certo rancor por não ver sua música tão executada quanto gostaria, não tinha o desejo de projetar-se mais que seu trabalho. "Ele acreditava na qualidade de sua música. Mas era um homem reservado, nunca ocupou função burocrática ou política, não sabia fazer isso. Ele foi 100% músico, a vida toda", explica. "Era muito disciplinado. Um homem em constante ebulição, que adorava estudar, cozinhar, beber vinho e falar das mulheres." A dedicação ao trabalho e aos estudos era total. Exemplo disso é que, nos tempos de Osusp, chegava aos ensaios às 7h15, enquanto os demais só apareciam por volta de 8h30. Já suas tardes eram reservadas aos alunos e à composição, em um estúdio que mantinha na Rua Pamplona.
Aos mestres com carinho
Camargo Guarnieri nasceu na cidade de Tietê, no estado de São Paulo, em 1º de fevereiro de 1907. Sua trajetória na música começa na década de 20, quando se muda para a capital com os pais. Nessa época, fazia bicos como pianista em pequenas orquestras de cinemas paulistanos, cafés e no Teatro Recreio, no bairro da Lapa, Zona Oeste. Ainda nessa fase, chegou a freqüentar o Conservatório Dramático e Musical de São Paulo, onde mais tarde iria lecionar. Estudioso e interessado não somente em música, mas também em outras manifestações culturais e filosofia, Guarnieri teve como preceptores, e admiradores de seu trabalho, figuras como o maestro italiano Lamberto Baldi - orientador artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) nos anos de 1949 a 1951 -, que lhe deu aulas de música, e o escritor Mário de Andrade, com quem aprendeu sobre cultura brasileira. "Tanto Mário quanto Baldi não cobravam pelas aulas que davam a ele [Guarnieri]", relata a doutora em artes pela Universidade de São Paulo (USP) Flávia Camargo Toni, curadora dos arquivos pessoais de Camargo Guarnieri no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. "Mário de Andrade, inclusive, emprestava livros a ele, mas com a condição de que fossem devolvidos e discutidos depois." De acordo com a professora, o compromisso do maestro com a aquisição de conhecimento deixaria nele marcas indeléveis. Além disso, a generosidade da qual se beneficiou com as aulas gratuitas viria a ser repassada para seus alunos, anos depois. "Ele [Guarnieri] sempre fez questão de ensinar música, e era extremamente dedicado aos alunos", garante Flávia Toni. A pesquisadora explica que quando Guarnieri resolveu dar aulas particulares, aos 50 anos, para aceitar os alunos, o músico exigia conhecer antes o trabalho deles. E, quando o aspirante se via "aprovado", ouvia do mestre: "Quanto você pode pagar?", na hora de acertar o preço. "Dessa forma, as aulas, por uma questão de honra e amor à arte, eram dadas de graça."
Foi da relação de amizade com Mário de Andrade - iniciada em 1928, após Guarnieri ter mostrado ao escritor algumas de suas composições - que veio grande parte do interesse pela cultura popular brasileira, uma das marcas da obra do maestro. Segundo o pianista Gilberto Tinetti, a música de Guarnieri expressou uma tendência estética e conceitual nas artes que os modernistas representaram bem na Semana de Arte Moderna de 1922 - optando tanto por uma temática quanto por uma rítmica que bebiam na fonte da manifestação genuinamente nacional. "Mas tudo dentro de uma linguagem musical bem universal", complementa. "Procuro ouvir Camargo Guarnieri cada vez mais, ele foi um ótimo orquestrador", diz o pianista. "Ele representa um encontro muito feliz entre a cabeça e a emoção, entre a linguagem européia da música e a cultura e ritmo brasileiros."

 

 

 

 

Ver Boxes:

O nacional e o nacionalista
Toadas do maestro

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

O nacional e o nacionalista
Camargo Guarnieri e Heitor Villa-Lobos "musicaram o Brasil" com o mesmo talento, mas em estilos diferentes

 

Contemporâneos, Guarnieri e Villa-Lobos têm suas obras freqüentemente comparadas. De fato, ambos são grandes nomes no cenário erudito brasileiro e formaram, juntamente com o compositor paulista Francisco Mignone, o "triunvirato musical de sua geração", conforme escreve a musicóloga norte-americana Marion Verhaalen no livro Camargo Guarnieri - Expressões de Uma Vida (Edusp, 2001). No entanto, quando se aumenta a lente da análise, o que se verifica é que as semelhanças não avançam muito além desse ponto. Segundo a autora, o desenvolvimento da música erudita brasileira segue um caminho que contextualiza os compositores de acordo com a permeabilidade a elementos tipicamente nacionais em sua produção. No caso desses mestres, podem ser divididos de acordo com o caráter nacionalista ou nacional de cada obra. A nacionalista é marcada por composições explicitamente inspiradas em fontes folclóricas, enquanto a nacional reúne peças imbuídas desse espírito, mas sem citações diretas. De acordo com a autora, Villa-Lobos é considerado grande compositor nacionalista e Guarnieri produziu o grosso de sua obra no contexto da música nacional. "O nacionalismo de Guarnieri não reside (...) no emprego de elementos folclóricos inalterados", escreve a musicóloga. No que diz respeito ao estilo de composição e execução, também surgem diferenças. "Ao usar formas tradicionais, Guarnieri foi mais consistente que Francisco Mignone e Villa-Lobos", explica Marion em seu livro. "Enquanto os outros dois compositores em geral são mais rapsódicos e improvisadores na sua forma de compor, a música de Guarnieri mostra forte afinidade com as formas tradicionais, altamente estruturadas e bem trabalhadas."

 

 

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Toadas do maestro

No centenário de nascimento de Camargo Guarnieri, comemorado em janeiro, evento no Sesc Araraquara homenageia o compositor paulista

 

Para comemorar o centenário de nascimento de um dos maiores compositores da música brasileira, o Sesc Araraquara criou uma programação especial que teve início em março e reserva uma data para maio. Entre os diversos gêneros e estilos nos quais se enquadram as mais de 700 peças de Guarnieri - canções, concertos, sinfonias, choros e óperas -, a grade destacou sua música de câmara. No dia 16 de março, canções com poesia de Manuel Bandeira - como És na Minha Vida, Azulão, O Impossível Carinho, Dona Janaína, Pousa a Mão na Minha Testa - e Mário de Andrade - entre elas, Lembranças do Losango Cáqui, Despedida Sentimental, Toada do Pai do Mato e Antianti É Tapejara -, além de outras peças para violão e voz, foram apresentadas pela soprano Adélia Issa, com Ricardo Ballestero ao piano, e Edelton Gloeden no violão. Em abril, no dia 7, o público pôde conferir por que Guarnieri é comparado a Heitor Villa-Lobos em show do Ensemble São Paulo (foto), com Betina Stegmann (violino), Nelson Rios (violino), Marcelo Jaffé (viola) e Roberto Suetholz (cello), que apresentaram Trios para Violino, de Villa-Lobos, e Viola e Violoncelo, de Guarnieri. Para quem perdeu esse banquete musical, mas está interessado em conhecer - ou apreciar - a obra do maestro paulista, eis a última chance: no dia 26 de maio, às 20h30, Raïff Dantas Barreto (violoncelo), Marcos Aragoni (piano) e Rose de Souza (soprano) realizarão um concerto que ressaltará a importância do canto e do violoncelo na produção de câmara do compositor.

 

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