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HOSPITAL OU DEPÓSITO?

 


No filme Bicho de 7 Cabeças (2000), dirigido por Laís Bodanzky, o personagem Neto, interpretado pelo ator Rodrigo Santoro, é internado pela família em um manicômio depois de ser flagrado usando drogas. Mais que um drama pessoal, a fita discute uma realidade que tem sido alvo de muitas discussões: a questão manicomial. Se, por um lado, médicos e demais especialistas buscam esclarecer qual a real necessidade de hospitais exclusivos para casos de doenças mentais, por outro, eles mesmos reconhecem que, no modelo atual, o desrespeito à integridade humana e até mesmo a crueldade em diversas situações tornam esses locais "depósitos de gente", como é comum ouvir dizer. Em artigos exclusivos, a professora do Departamento de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Maria Tavares Cavalcanti e o psicanalista Sérgio Telles debatem o tema.

 

 

A questão manicomial

 

por Maria Tavares Cavalcanti

 

Há mais de 20 anos trabalho na psiquiatria e meu contato com essa "arte/ciência/prática" já data de muito mais. Muitas vezes, ao longo da vida, me perguntei o porquê dessa escolha. Tantas coisas a escolher, tantas possibilidades a viver... Por que a psiquiatria? Por que a loucura? Por que o sofrimento? Por que a doença mental? No início, certamente, me movia certa curiosidade. Aquelas pessoas tão diferentes, falando e tendo certezas tão diversas das minhas e da grande maioria das pessoas, o desafio de me aproximar delas, de construir uma relação, de passar a ser reconhecida como alguém que poderia vir a fazer parte dos seus mundos, ser amada por essas pessoas que pareciam tão distantes da possibilidade de poder amar alguém ou de sentir falta de algo ou de alguém. Ir construindo devagarzinho, no dia-a-dia, a possibilidade de um encontro. Poderia haver algo mais fascinante do que isso - entrar em relação com mundos que não me pertenciam e dos quais nada poderia saber, a não ser que seu dono resolvesse abrir a porta e me deixasse entrar? Certamente que não, pelo menos para mim...
No entanto, ao longo de todos estes anos, apesar de viver mergulhada no universo psiquiátrico, nem sempre encontrei outros profissionais dispostos a esse desafio. Talvez muitos tenham se cansado, se desanimado com a aridez do caminho, com as subidas íngremes, com as imensas rochas a transpor e as poucas planícies a atravessar. Outros desistiram antes do tempo - visto que o tempo necessário a esse empreendimento é sempre desconhecido, é sempre uma surpresa e, por vezes, pode ser o tempo de uma vida.
É nesse momento que encontramos o título deste artigo: a questão manicomial. O que vem a ser isso? Penso que se trata de algo que fala dessa desistência, desse abandono, dessa falta de esperança, de insistência, de abertura à possibilidade de renascimento do outro. Muito foi dito e escrito sobre o abandono dos doentes mentais em estruturas sórdidas, desabitadas, sujas, amontoadas, aquilo que Lima Barreto chamou de "cemitério dos vivos". Quase todos já devem ter visto cenas horripilantes de pessoas vagando por entre espaços vazios, muitas vezes nuas, desdentadas, emagrecidas, descuidadas, cada uma em um mundo próprio, sem nenhuma comunicação entre si, apesar de circularem pelo mesmo lugar - uma cena que por muito tempo passou a ser reconhecida como a própria face da loucura. Mas o que caracterizaria essa questão manicomial? Seria um prédio malcuidado, com seres humanos amontoados em recônditos sórdidos? Seria a falta de comunicação, de relação entre essas pessoas? Seria uma espécie de "despovoamento" a despeito de sua superpopulação?
Se nos detivermos na questão estrutural do manicômio - seja ele qual for -, no fato de serem estruturas fechadas, imensas, com pouco ou nenhum espaço para qualquer tipo de diferença, estaremos tocando em aspectos cruciais dessa máquina de produção de morte, mas não estaremos olhando o aspecto mais fundamental. Ou seja, perguntarmo-nos o que nós, profissionais que atuamos no campo da saúde mental, temos a ver com essa produção de morte - e chamo aqui de morte o impedimento de que um sujeito admitido por nós em uma estrutura dita de tratamento encontre algum tipo de possibilidade de acolhimento para seu sofrimento. A palavra acolhimento também não aparece aqui por acaso, já que significa colocar-se na mesma paisagem que esse outro, a fim de que possa haver um encontro, algo que implique presença, sem a qual nenhuma relação de confiança pode vir a se estabelecer e, conseqüentemente, nenhum tratamento pode ocorrer.
Logo, um espaço "não manicomial" implica a presença de profissionais, mas uma presença efetiva e não apenas "um corpo presente com alma ausente". Se tivermos essa presença, não importa muito se estamos falando de uma enfermaria para pacientes psiquiátricos - agudos ou crônicos - em um hospital especializado ou em um hospital geral, ou se estamos falando de um Centro de Atenção Psicossocial, de um ambulatório tradicional, de um serviço residencial terapêutico, ou até mesmo de um atendimento na rua. Seja qual for esse espaço, teremos a garantia de que haverá no atendimento a possibilidade de que um tratamento, de fato, possa acontecer. Na verdade, mesmo no hospital mais chique e luxuoso do mundo, o manicômio pode vir a se fazer presente - e os pacientes continuarão seu percurso rumo ao isolamento, à indiferença e ao silenciamento - se não tivermos profissionais habitando esse espaço, disponíveis para a construção de relações e para a aventura da relação terapêutica com doentes mentais graves.
Cito um exemplo: M., nossa paciente há muitos anos e que apelidamos de "porta giratória", ou seja, alguém que sai e entra no hospital várias vezes ao ano - demonstrando claramente que estamos falhando em seu tratamento. M. tem como diagnóstico psiquiátrico um transtorno afetivo bipolar. Mas por que, apesar das medicações adequadas, ela continua a entrar em crise e retorna ao hospital? Por que ela deixa de tomar suas medicações? O que a faz ser considerada - e se considerar - uma "moradora" do hospital, uma vez que aparentemente teria condições de viver fora dele? M. faz parte da classe média brasileira, tem 3º grau completo, família, apartamento etc. No que estamos falhando em seu tratamento? As respostas poderiam ser várias e todas provavelmente teriam sua parcela de verdade - o transtorno de M. é grave, refratário às medicações; a família de M. é desestruturada e não tem como acolhê-la em casa. No hospital, ela tem um ganho secundário importante, já que não tem de cuidar de si mesma, de sua vida. No entanto, descobrimos por meio de uma profissional que passou a atender M. há dois anos que essa paciente precisa de auxílios básicos: alguém que a ajude a retirar a segunda via de seus documentos, por exemplo, alguém que a ajude a desembrulhar toda a barafunda em que se transformou a sua vida em termos de itens de cidadania básica - identidade, título de eleitor, questões jurídicas pendentes, entre outras. Se ninguém se dispuser a realmente correr atrás disso com M., nada poderá andar em seu tratamento, em sua reconquista da vida. E essas coisas são chatas, demoradas, cheias de obstáculos que nos fazem desistir mais ou menos rapidamente, até que um outro profissional mais disposto chegue e retome o caso de novo e de novo. M. já viu esse filme muitas vezes e já não acredita muito que a instituição possa efetivamente vir a cuidar dela de verdade. Será que essa profissional que nos ajudou a descobrir isso não vai desistir como tantas outras antes dela? Essa é uma questão presente em muitos outros pacientes "perdidos" pelos manicômios espalhados por nosso país - novamente: sejam eles hospitais psiquiátricos, sejam Centros de Atenção Psicossocial ou as ruas das nossas cidades. Se não tivermos essa consciência, os manicômios continuarão a se reproduzir.





É claro que podemos ter políticas que facilitem esse tipo de ação por parte dos profissionais. Políticas que permitam maior presença dos profissionais em seus campos de trabalho por meio de condições de trabalho mais dignas - incluindo aí questões salariais e de ambiente de trabalho. Políticas que favoreçam a inserção dos profissionais mais próximos aos locais de moradia dos pacientes e, com isso, propiciem que o tratamento se faça também mais próximo dos locais onde moram os que necessitam de atendimento, sem que seja necessário - a não ser como medida de exceção - o afastamento de sua família e comunidade. Nesse sentido, o Ministério da Saúde tem caminhado por meio de ações como a ampliação do Programa de Saúde da Família (PSF) por todo o Brasil e a implantação de serviços de saúde mental de base comunitária - os chamados Caps (Centros de Atenção Psicossocial), também presentes em todo o país. Mas, voltamos a insistir, a implantação de serviços não garante que a questão manicomial seja resolvida.
O cerne das discussões ultrapassa a estrutura do tipo de serviço no qual o paciente irá se tratar. Ele aponta para uma visão do que seja tratar, de fato, esses doentes de forma mais complexa e abrangente e com o comprometimento fundamental dos profissionais que se dispõem a atuar nesse campo.

 

"(...) a implantação de serviços não garante que a questão manicomial seja resolvida.
O cerne das discussões ultrapassa a estrutura do tipo de serviço no qual o paciente ?irá se tratar. Ele aponta para uma visão do que seja tratar, de fato, ?esses doentes de forma mais complexa e abrangente (...)"

 

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MARIA TAVARES CAVALCANTI É PROFESSORA ADJUNTA DO
DEPARTAMENTO DE PSIQUIATRIA DA FACULDADE DE MEDICINA
DA UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO (UFRJ)

 

 


Elementos para compreender a questão manicomial


por Sérgio Telles

 

O que é a "questão manicomial"?, perguntaria um leigo completo, ouvindo pela primeira vez tal expressão. A questão manicomial diz respeito à polêmica, desenvolvida nas últimas décadas no Brasil, em torno da forma de tratar os doentes mentais internando-os em manicômios, hospícios, retirando-os do convívio da família e da sociedade. Só podemos entender a questão manicomial - como, de resto, a maioria das questões - situando-a no contexto histórico. Para tanto, é necessário se reportar à história da ciência, da transição do pensamento mágico-religioso para o pensamento científico. A evolução dos conhecimentos da medicina é parte da história das descobertas científicas.
Foi longo o trajeto seguido pela humanidade para obter um conhecimento efetivo sobre a anatomia, a fisiologia, a patologia do corpo humano. Esse é um caminho que continua aberto para novas descobertas que permitam enfrentar doenças cujo tratamento ainda é desconhecido. A história da psiquiatria é um capítulo da história da medicina, respeitando-se as peculiaridades de seu objeto de estudo: a mente humana.
A loucura, durante longo tempo, foi considerada como decorrência de possessões diabólicas. Somente a partir de um determinado momento histórico adquiriu estatuto de doença mental, cuja única forma de tratamento era o encarceramento.
O manicômio era a instituição para onde os loucos eram encaminhados e ali permaneciam por longos períodos, às vezes por toda a vida.
O manicômio, como forma de isolar, conter e, assim, proteger o doente mental, manteve-se como o tratamento psiquiátrico preponderante até a década de 50 do século 20, quando foram descobertos os neurolépticos. Essas medicações instauraram o tratamento químico das psicoses, permitindo que os pacientes pudessem ser cuidados de forma ambulatorial, evitando a exclusão e a segregação.
Desde então, os pacientes podem receber tratamento ambulatorial - reservando-se a internação para situações clínicas muito específicas, nas quais ela é imprescindível.
Quais são tais situações clinicas? São aqueles em que os pacientes podem colocar em risco a própria vida ou a de outras pessoas. São pacientes em estado de agitação, os suicidas e os homicidas paranóicos, por exemplo. Em função de suas patologias, os pacientes podem querer se matar ou - imersos em seus delírios - matar seus desafetos. Nessas situações, é absolutamente necessário que o paciente seja internado e o será quase sempre contra a própria vontade, desde que, em função da psicose, não terá senso crítico para admitir as graves perturbações mentais que o impossibilitam de avaliar as conseqüências de seus atos.
Que fique claro com isso que há, sim, situações nas quais a internação compulsória e involuntária do paciente se impõe e seria ingenuidade ou falta de conhecimento pensar o contrário. Em casos como os citados, a internação é necessária, assim como o uso do eletrochoque se justifica também em casos específicos, como a catatonia [forma de esquizofrenia que apresenta alternância entre períodos de passividade e de negativismo e períodos de súbita excitação], o negativismo [resistência manifesta e imotivada às solicitações de movimento ou tentativas de mobilização vindas do exterior], a melancolia suicida, as grandes agitações psicomotoras rebeldes a quaisquer medicações.
Até agora apresentei a situação sob o enfoque estritamente médico-psiquiátrico, tratando a doença mental como uma outra qualquer. Mas a situação é mais complicada, pois a doença mental tem características próprias que transcendem o campo da medicina.
Isso se deve ao fato de que a própria concepção da loucura e a forma como ela deve ser tratada estão fortemente impregnadas dos valores culturais e sociais de uma determinada sociedade. Há uma loucura humana, como mostrou Erasmo [1467-1536, pensador humanista holandês] em seu Elogio da Loucura, que se aproxima muito mais da compreensão psicanalítica de um psiquismo no qual o inconsciente tem importância decisiva, do que do conceito moderno de "doença mental" da psiquiatria.
Por esse motivo, os tratamentos médico-psiquiátricos são influenciados por pressões sociais as mais variadas, acompanhando não só a evolução dos conhecimentos médico-científicos como também das instituições políticas, da ética, das leis, da formação da cidadania.
Nas últimas décadas do século passado, muito se discutiu sobre os direitos humanos dos doentes mentais, quando foram denunciados abusos sofridos especialmente por doentes pobres e crônicos depositados em manicômios infectos. Entre os vários fatores decisivos para o desdobramento dessas discussões, dois sobressaem: o livro de Michel Foucault [1926-1984, pensador francês] A História da Loucura na Idade Clássica e a prática de Franco Basaglia [1924-1980], psiquiatra italiano que revolucionou o atendimento dos doentes mentais em seu país, provocando o fechamento de seus manicômios. Seu trabalho, cercado de grande polêmica, foi reconhecido pela Organização Mundial da Saúde em 1973, quando seu serviço em Trieste foi credenciado pelo órgão como referência mundial para a reformulação da assistência ao doente mental. Mais importante ainda, forçou alterações na legislação italiana, possibilitando a aprovação, em 1978, da Lei da Reforma Psiquiátrica, conhecida como Lei Basaglia.
Paralelamente, aqui no Brasil, essas discussões evoluíram para a organização de movimentos sociais como o Movimento Nacional da Luta Antimanicomial, que completa 20 anos em 2007 e que conseguiu grandes vitórias. A partir dessa mobilização, foram criadas leis federais (como a Lei Paulo Delgado, aprovada em 2001, após 12 anos de discussões), leis estaduais e portarias que contribuíram para o fechamento de 60 mil leitos no país nos últimos 15 anos e que impulsionaram a reforma psiquiátrica em andamento no país.
Para o sucesso desse movimento, pesou o interesse da mídia, que informou a opinião publica sobre o assunto, criando um clima a ele favorável. Nesse sentido, mais recentemente, o filme Bicho de 7 Cabeças, realizado por Laís Bodanzky em 2000, foi de grande peso.
A reforma psiquiátrica ainda não foi concluída e levanta questões muito complexas e interesses conflitantes, envolvendo donos de hospitais, o controle da política de saúde pública do Estado, as lutas corporativas dos vários trabalhadores de saúde mental e a realidade de um país pobre, de terceiro mundo, como o nosso.
Não há como negar a imensa relevância das conquistas realizadas, especialmente no que diz respeito à cidadania do doente mental. Mas não se pode ignorar os inevitáveis problemas trazidos pelas mudanças. No momento em que os manicômios são desativados, a grande população de pacientes crônicos precisa retornar para suas famílias e estas, por uma série de razões, não os querem de volta.
É preciso ter em mente que tais pacientes crônicos, muitos com graves defeitos psicóticos, são absolutamente regredidos, incapazes de qualquer autonomia, e necessitam de cuidados 24 horas por dia. São como velhas crianças que precisam ser banhadas, alimentadas e cuidadas, desde que não são capazes de fazê-lo sozinhas.
Se os tenebrosos manicômios, depósitos de doentes que ali ficam abandonados, entregues à própria sorte, são inaceitáveis, urge criar locais onde pacientes crônicos possam ser acomodados, já que suas famílias, na maioria das vezes gente muito pobre, não têm condições de abrigá-los.


A reforma psiquiátrica (...) levanta questões muito complexas e interesses conflitantes, envolvendo donos de hospitais, o controle da política de saúde pública (...) e a realidade de um país pobre, de terceiro mundo, como o nosso"

 

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SÉRGIO TELLES É PSICANALISTA, ESCRITOR E MEMBRO DO
DEPARTAMENTO DE PSICANÁLISE DO INSTITUTO SEDES SAPIENTIAE


 

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