AEROPORTO
DE CUMBICA, GUARULHOS, SÃO PAULO
por
Ricardo Lísias
ilustrações:
www.marcosgaruti.com
Sexta-feira,
23 de março de 2007. Às 9 horas da noite, avisei a funcionária
da companhia, no guichê do check-in, que eu não tinha bagagem,
apenas a mochila que poderia, como sempre, muito bem ir no compartimento
interno, junto comigo. Ela concordou e pediu meu documento de identidade.
Depois de digitar meu nome, forçou os olhos para enxergar direito
a tela do computador e me avisou que a agência de turismo, sem
motivo expresso, havia cancelado minha passagem. Como o erro não
era da companhia aérea, ela não tinha o que fazer. Na
verdade, mesmo se o equívoco tivesse sido deles, a menina também
não iria fazer nada, mas pelo menos pediria desculpas antes de
ouvir meus berros. Como nem ela nem a companhia tinham culpa, a moça
me olhou com segurança e aconselhou-me a procurar uma funcionária
da agência que passava o dia no aeroporto ouvindo reclamações
das pessoas cujas passagens eram canceladas sem nenhuma explicação.
Quando eu encontrei a tal funcionária, que tinha no máximo
16 anos e se fosse, portanto, ofendida por mim poderia recorrer ao Estatuto
da Criança e do Adolescente - que protege as crianças
e os adolescentes de agressões e situações vexatórias,
mas não do trabalho infantil - para me colocar na cadeia, percebi
que não ia adiantar nada gritar, coisa que eu nunca faço
mesmo, pois prefiro simplesmente dar um murro no nariz de quem me aborrece
demais, coisa que eu jamais faria com aquela menina, porque um murro
apenas seria suficiente para matá-la e aí eu teria que
passar muitos anos da minha vida na cadeia, que com certeza deve ser
pior que os aeroportos brasileiros, muito embora eu já não
possa dizer isso depois do apagão aéreo, porque o que
me aconteceu no Aeroporto de Cumbica na noite supramencionada, cujo
testemunho subscrevo e dou fé, muito embora todos vão
achar que é coisa de ficcionista, já que eu sou de fato
um, mas nunca jamais conseguiria imaginar uma coisa dessas. Pois bem,
depois de ter certeza de que eu não gritaria com ela e muito
menos daria um soco em seu nariz, a menina da agência foi até
um lugar no Aeroporto de Cumbica onde só podem entrar pessoas
autorizadas, o que significa que eu não posso entrar, até
porque não fui autorizado nem a entrar no avião, muito
embora a agência de turismo que me vendeu a passagem e que se
diz a maior do país, coisa de que não duvido, tenha muito
rapidamente autorizado a fatura da passagem no meu cartão de
crédito, muito embora pretendesse depois cancelá-la, sem
cancelar a fatura do meu cartão, naturalmente. Depois de um tempão,
acho que uma hora, a menina saiu de lá de dentro desse lugar
em que só entram pessoas autorizadas e me disse que a companhia,
que é a maior do Brasil inclusive porque faz esse tipo de coisa
com os clientes (cancela as passagens, mas não o pagamento),
poderia marcar-me outra passagem para as 3h30 da manhã. Eu naturalmente
aceitei porque não tinha alternativa, muito embora tivesse certeza
de que a passagem das 3h30 da manhã custasse bem menos da que
eu tinha comprado, e desse jeito a empresa vira mesmo a maior do Brasil.
Quando eu disse isso à menina, ela deu alguns passos para trás,
certa de que eu lhe daria um murro no nariz, muito embora eu jamais
tivesse sequer cogitado fazer isso, porque eu iria matá-la e
acabaria preso, e as cadeias no Brasil são realmente muito ruins.
Enfim, para não fugir do assunto, declaro que fiquei até
as 2h30 da manhã vagando no saguão do aeroporto, até
que chegou a hora de entrar, mas então apareceu um grupo de gente
que vinha quase correndo do outro lado do saguão, em direção
ao lugar onde aquela primeira moça tinha me dito que minha passagem
havia sido cancelada, e eles berravam "queremos avião! queremos
avião!", e era isso mesmo que falavam, tive certeza depois
que me concentrei para ouvi-los, o que afinal de contas não foi
fácil, pois já era 2h30 da madrugada. Como eu queria a
mesma coisa, pensei em entrar para o grupo, mas logo vi que eles queriam
um avião para Recife, enquanto o meu deveria ir, se o bom Deus
assim permitisse, para Salvador, que é um lugar muito bacana,
conforme me disse o funcionário da agência de viagens que
vendeu a minha passagem, cobrou, recebeu e depois cancelou tudo sem
me avisar e muito menos devolver o dinheiro. Destarte,
não me coloquei no meio daquelas pessoas, porque, se eu fosse
parar em Recife, muito possivelmente meus problemas só aumentariam.
Então o líder do grupo subiu no balcão da companhia
e pediu organização para que eles pudessem quebrar tudo
se o avião não aparecesse logo logo. Foi nessa mesma hora
que as moças da companhia, ainda antes que dissessem que não
tinham culpa, pularam para a outra ponta do balcão e saíram
correndo. Claro que isso foi pior, porque tanto o líder quanto
os liderados perceberam que com a fuga eles não teriam nem cartões
de embarque para embarcar. Mas, então, logo depois elas voltaram
acompanhadas de muitos homens que usavam terno e que tinham uma arma
por baixo do terno e que eram da polícia e que elas achavam que
eram lindos, sobretudo porque eles eram muito corajosos e com dois ou
três berros colocaram a fila em ordem e até o líder
ficou todo desenxabido porque viu que tinha perdido a liderança
e isso realmente o aborrecia demais, muito embora estivesse com o vôo
de fato garantido - ainda que isso no Brasil a gente nunca possa garantir,
muito embora as empresas aéreas e as companhias de turismo sempre
cobrem a passagem e nunca devolvam o dinheiro, ainda que o governo diga
que isso não pode, não, muito embora todos saibam, até
o próprio governo, que ninguém vai mesmo ouvir o governo,
só quando aparecem os homens com terno que também estão
com uma arma e aí eles então defendem alegremente o governo,
muito embora quando chegar a vez deles o avião não vai
sair do chão do mesmo jeito, muito bem feito para eles. Por falar
nisso já estava na hora de entrar para a sala de embarque, e
quando eu percebi me apressei, porque se eu perco a hora a companhia
não vai me esperar, muito embora a própria companhia perca
a hora absolutamente o tempo inteiro, mas isso porque eles têm
o poder de chamar os homens de terno com armas e eu não. Então
eu entrei na fila do detector de metais, e aí veio toda aquela
gente que queria ir para Recife na mesma hora e fez a maior confusão
agora na fila do detector de metais, e aí o líder perguntou
quem eu era e eu respondi que não era passageiro do vôo
dele e, portanto, não lhe devia satisfações e assim
que ele ouviu isso começou ao mesmo tempo a organizar a fila
e a me ofender, dizendo que eu não tinha consciência dos
meus direitos e então eu que já estava furioso resolvi
dar-lhe um murro no nariz, mas ele desviou e eu acertei bem no meio
do rosto de um daqueles homens com terno que já tinham vindo
organizar a fila do detector de metais, porque se alguém entrar
ali com uma arma e não for um deles vai causar o maior prejuízo
para as companhias aéreas e para o Estado, que afinal de contas
são a mesma coisa. Mas o murro que eu dei nele foi tão
forte que o homem caiu no chão e o líder do pessoal que
acreditava que um dia conseguiria embarcar para Recife ficou impressionado
e com certeza me consideraria seu herói se eu não tivesse
logo pulado em cima do policial que estava caído - o que me qualifica
como um covarde - e depois de dar mais uns bons murros no rosto dele,
eu então pego a pistola do cara por baixo do terno e como eu
sentia muita raiva atirei na cara do líder que pensava que iria
voar para Recife, coitadinho, e aí eu também atirei no
outro cara que estava vindo defender o amigo de terno que levou o terceiro
tiro - e antes já tinha levado um monte de murros. Foi nessa
hora que eu peguei o revólver do segundo (o que não tinha
levado os murros, isso já está ficando confuso) e saí
correndo em direção aos portões de embarque. No
caminho peguei uma lança de um índio que estava querendo
voltar para sua tribo e, como ele me pareceu reclamar demais, sentei-lhe
uma pedrada na cabeça. Continuei correndo até chegar na
minha cabana e ter tempo para acender uma fogueira e me proteger das
onças que nos atacam à noite. Por fim, consegui dormir
bem.
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RICARDO LÍSIAS
É AUTOR DE, ENTRE OUTROS, DUAS PRAÇAS (EDITORA GLOBO,
2005)
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