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A aviação agrícola decola, mas voa baixo

Produtores e usuários de aviões utilizados para pulverizar plantações enfrentam dificuldades

NILZA BELLINI


Foto: Divulgação

Ela tem mil e uma utilidades. Pode ajudar a debelar incêndios e limpar áreas contaminadas por derramamento de óleo em ecossistemas costeiros, combater pragas fitossanitárias, como insetos, fungos e ervas daninhas, ou semear extensas áreas destinadas a culturas diversas. Entretanto, registrando uma frota de 1,2 mil aviões (50 grandes e 1.150 pequenos), cerca de mil pilotos, 300 mil horas de vôo por ano, sobre 18 milhões de hectares, a aviação agrícola brasileira está em crise.

Dificuldades não faltam: o preço do combustível para aeronaves é alto, porque sobre ele incidem cerca de 65% de impostos; problemas na agricultura resultam em inadimplência de muitos fazendeiros que contratam aviadores para pulverizar suas plantações; e as atividades de pesquisa, fiscalização e treinamento de pilotos ou técnicos agrícolas deixam a desejar. "Não existe aviação agrícola eficiente sem pesquisa, treinamento e fiscalização de bom nível", explica o engenheiro agrônomo Marcos Vilela, que, com 47 anos de prática profissional, introduziu algumas das tecnologias mais importantes para a aviação agrícola brasileira. "Não existe agricultura eficiente sem a aviação agrícola", complementa o coronel Ajax Mendes Corrêa, chefe da Coordenação Técnico-Operacional de Aviação Agrícola e de Combate a Incêndios Florestais, da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac).

Ambas as afirmativas não surpreendem quem é do setor. A aviação agrícola nasceu no Brasil em 1947, exatamente para contornar uma crise da agricultura. Naquele ano, uma aterrorizante nuvem de gafanhotos (Schistocerca cancellata) atacou as lavouras em Pelotas, no Rio Grande do Sul. A área afetada era tão grande que os técnicos precisaram recorrer a aviadores para poder avaliá-la. Os Estados Unidos já usavam, naquela época, aviões para pulverizar grandes extensões plantadas, mas, no Brasil, a experiência era inédita. Foi o piloto Clovis Candiota quem comandou um biplano de fabricação nacional, o M-9 (Muniz), para aquele que foi o primeiro combate aéreo a insetos realizado no país.

A eficácia da operação entrou para a história: a data do vôo (19 de agosto) tornou-se o Dia Nacional da Aviação Agrícola e, em 1989, Candiota foi declarado, por decreto presidencial, patrono da aviação agrícola brasileira. Durante os 60 anos transcorridos desde aquele feito, a aviação agrícola passou por altos e baixos. Hoje, mesmo sendo impossível imaginar a modernização do campo sem a utilização de aeronaves, pouco se faz em benefício do setor. Projetos como os de parceria de universidades com o Ministério da Agricultura e a Anac para o aperfeiçoamento de técnicas de pulverização estão engavetados. Faltam alunos nas três escolas de aviação agrícola existentes no país – a EJ, de Itápolis (SP), a Agrovel, de Ponta Grossa (PR) e a Santos Dumont, de Cachoeira do Sul (RS) –, e não há sequer um órgão que defenda os direitos dos pilotos.

Campo fértil para voar

O estado que mais utiliza a aviação agrícola hoje no país é Mato Grosso, seguido por Rio Grande do Sul e depois São Paulo. A atividade está presente também na Bahia, no Maranhão, no Tocantins, em Minas Gerais, Rondônia e Roraima. As culturas que mais necessitam de pulverizações são as de soja, arroz, algodão, milho, cana, banana e pastagens. O presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola (Sindag), José Ramon Rodriguez Rodriguez, explica que a frota sobrevoa por ano cerca de 18 milhões de hectares, mas, como quase sempre é efetuada mais de uma aplicação sobre a mesma área plantada, a extensão de terras em que os aviões atuam é bem menor – não supera 6 milhões de hectares.

"A possibilidade de crescimento da aviação agrícola é muito grande, mas os dois últimos anos não foram bons, por falta de políticas adequadas para o campo", queixa-se o sindicalista. A frota brasileira é a segunda maior do mundo, mas ainda está longe do porte ideal. Segundo uma estimativa do coronel Ajax, o país tem potencial para pelo menos 4 mil aeronaves.

A crise, aliás, fica evidente no baixo índice de crescimento do setor. As vendas de aviões destinados à atividade apresentaram quedas significativas nos últimos dois anos. A Indústria Aeronáutica Neiva, unidade da Embraer localizada em Botucatu (SP), fabricante do Ipanema, o modelo de maior sucesso da aviação agrícola no país, comercializou 83 unidades em 2004. Contudo, em 2005 a empresa não conseguiu negociar mais de 35, número que se repetiu em 2006.

Aproximadamente 70% das aeronaves que pulverizam os campos do país são Ipanema, mas estão presentes também aparelhos estrangeiros, com destaque para os americanos Thrush e Piper, este um dos primeiros modelos projetados especificamente para uso agrícola. Os mais cobiçados, no entanto, são os da Air Tractor. O representante comercial no Brasil da empresa, Jeroni da Silva, explica que esses aviões são mais eficientes por serem equipados com turbina, cujo combustível é o querosene – muito mais barato que a gasolina de aviação. O AT-802, da Air Tractor, é a maior aeronave agrícola monomotora do mundo, com reservatório capaz de transportar até 3 mil litros de defensivos, e custa quase US$ 1,5 milhão. É esse o modelo mais eficaz no combate a acidentes ecológicos e a incêndios. O Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro é a única corporação do gênero no Brasil a possuir um deles. Já os fazendeiros e as companhias de aviação agrícola preferem o 402-A, cujo reservatório tem capacidade próxima de 2 mil litros. Cerca de 50 aeronaves da Air Tractor voam no Brasil.

O engenheiro agrônomo Manoel Ibrain Lobo acredita que os helicópteros começarão a ganhar espaço nesse setor. "É um tipo de aeronave que pode ser utilizado por grandes empresas de reflorestamento industrial dos estados de São Paulo, Minas Gerais e Paraná, que juntas somam aproximadamente 1,5 milhão de hectares", diz ele. "O helicóptero possui uma característica que os aviões não têm: pode parar sobre a área que se quer pulverizar e liberar mais lentamente o produto, o que permite maior eficácia", explica.

"O combate a incêndios é uma das importantes utilidades da aviação agrícola", destaca Ulisses Rocha Antuniassi, professor do Departamento de Engenharia Rural da Faculdade de Ciências Agronômicas da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Botucatu. Para ensinar a combater incêndios, o Núcleo de Tecnologia Aeroagrícola daquela faculdade e a Fundação de Estudos e Pesquisas Agrícolas e Florestais organizaram, em 2006, o I Simpósio Internacional sobre Prevenção e o I Curso Brasileiro de Capacitação de Pilotos Agrícolas em Combate Aéreo a Incêndios em Campos e Florestas.

Pesquisas demonstram eficácia

O professor Antuniassi é o responsável, na Unesp de Botucatu, por pesquisas ligadas ao desempenho da aviação agrícola no controle de pragas fitossanitárias, em comparação com pulverizadores terrestres (transportados por tratores). Os resultados de seus estudos mostram que, embora a aviação agrícola apresente algumas restrições técnicas, como direção e velocidade do vento e umidade do ar (o que também acontece na aplicação terrestre), ela é importante, sobretudo, porque garante aplicação mais rápida. A pulverização de 150 hectares utiliza, na aviação agrícola, pouca mão-de-obra (um piloto e um técnico agrícola) e cerca de uma hora de trabalho, dez vezes menos do que se fosse feita com pulverizadores terrestres. Ainda que, de acordo com um cálculo inicial, a aplicação terrestre pareça mais barata que a aérea, em muitos casos o resultado se inverte, em função do tempo de aplicação. "Fazer mais rápido significa diminuir custos", destaca Antuniassi.

Pesquisas desenvolvidas pelo Instituto Nacional de Tecnología Agropecuaria (Inta) da Argentina apontam as seguintes razões para explicar o bom desempenho e recomendar o uso de avião em pulverizações: o caldo despejado pode ser dez vezes mais concentrado e, por isso, é mais rapidamente absorvido; a distribuição dos produtos no campo é mais equilibrada e, finalmente, a aplicação aérea evita o amassamento da cultura, causado pelo tráfego dos tratores. Para chegar a esses resultados, o Inta realizou dez ensaios em campos de produtores de sete localidades durante janeiro de 2006. Os resultados desses estudos foram referendados no Brasil pelo Sindag.

Trabalho acadêmico feito por Everaldo Scheis e Jeferson Luís Rezende, no curso de administração em agronegócios das Faculdades Campo Real, com alguns grandes produtores da região de Guarapuava (PR), permitiu concluir que existe receio dos agricultores em relação à contratação de serviços terceirizados, principalmente aéreos, em função de problemas na qualidade da aplicação. Os alunos pesquisadores observaram também que alguns agrônomos ligados a grandes indústrias de defensivos se mostram contrários ao uso de aviões para o controle de doenças. Os erros cometidos durante a aplicação terrestre são mais tolerados que os do tratamento aéreo, muitas vezes imperdoáveis.

Marcos Vilela, que treina técnicos e engenheiros agrônomos em aviação agrícola, admite que as tecnologias de aplicação precisam ser modernizadas. Desde a safra 1999-2000 o cientista desenvolve, entre outras, a técnica de baixo volume oleoso (BVO) para aplicações aéreas e terrestres. O BVO atende às necessidades de tratamento das culturas de soja e algodão com mais eficiência, maior rendimento, custo mais baixo e menor poluição ambiental.

Consultor de várias empresas de aviação agrícola do Brasil, Estados Unidos, Canadá, Bolívia, Uruguai e Paraguai, Vilela é um dos responsáveis pelo convênio da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo (Esalq/USP), com o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento para a criação de um centro de excelência em aviação agrícola na Fazenda Ipanema, em Iperó (SP). O acordo, assinado em 2005, também formaliza os termos de cooperação do ministério com a Unesp e a Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), no Paraná.

Essa seria uma maneira de reativar os cursos de aviação agrícola e técnicas de pulverização que eram oferecidos até 1992 naquela fazenda, pertencente ao Ministério da Agricultura. Ali funcionava o Centro de Aviação Agrícola (Cavag), que formou 880 pilotos, 400 técnicos e 200 agrônomos. O Cavag foi extinto pelo ex-presidente Collor por razões nunca adequadamente explicadas.

As instalações da Fazenda Ipanema foram recuperadas pelo ministério, com auxílio do antigo Departamento de Aviação Civil (DAC), hoje Anac. Segundo o coronel Ajax, estão prontas para uso. O local conta com três aviões de treinamento, pista de pouso, heliponto, pátios de descontaminação e abastecimento e três hangares, numa área total de 1,8 mil metros quadrados. Apesar disso, as atividades não foram reiniciadas. Fernando Vilela, fiscal responsável técnico pelo setor de aviação agrícola da Superintendência Federal de Agricultura em São Paulo, não sabe dizer por que o acordo ainda não se concretizou. "Essa questão cabe às esferas superiores", afirma.

A paixão dos pilotos

Enquanto isso, a Anac desenvolve projetos para cuidar da saúde dos pilotos agrícolas. O coronel Ajax traça um perfil quase romântico desses profissionais. Normalmente nascidos em cidades do interior do país, quando crianças rondavam aeroclubes, eram entusiastas da Esquadrilha da Fumaça e tinham renda familiar baixa. Em geral, fazem esforço para tirar o brevê e acumular horas para alcançar o nível de piloto comercial (360 horas de vôo) e poder se candidatar a um curso de aviação agrícola.

Essa não é uma carreira fácil. As cabines da maioria dos aviões utilizados para pulverização levam apenas uma pessoa. "Sozinho, o piloto é ao mesmo tempo comandante, co-piloto, navegador, artilheiro, municiador, meteorologista e mecânico, obrigado a realizar operações perfeitas de carga e descarga de inseticidas e adubos", diz o coronel Ajax. "Eles operam em pistas mal preparadas, cuja largura muitas vezes corresponde à envergadura do próprio aparelho, e chegam a efetuar 80 decolagens num mesmo dia, necessitando usar toda a sua perícia para vencer adversidades relativas a temperatura e vento."

As pulverizações são sempre realizadas a baixa altitude. "Na aviação agrícola, vôo baixo é pleonasmo", diz o coronel. Por essa razão, aumenta o risco de choque com pássaros e outros obstáculos, como fios da rede elétrica, fazendo com que seja alto o índice de acidentes. Sintomaticamente, a Neiva, que costumava pintar o Ipanema de verde, hoje usa tinta laranja fluorescente, de modo a torná-lo mais facilmente localizável em caso de acidente. Somam-se a todos esses perigos os de contaminação por inseticidas e defensivos, sobre os quais não existem dados. Em função da inexistência de uma política de saúde para os pilotos, a Anac, por meio do Núcleo do Instituto de Ciências da Atividade Física da Aeronáutica (Nuicaf) e em parceria com a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), vem desenvolvendo estudos para a medição de graus de toxicidade e a detecção da sensibilidade aos defensivos e outros produtos químicos. O fato é que, ao contrário dos pilotos americanos, que usam vestes especiais e passam por procedimentos de descontaminação ao final do trabalho, os brasileiros não contam com nenhum tipo de proteção. Tudo isso para faturar, no auge da carreira, algo em torno de R$ 8 mil mensais. Sem dúvida é uma atividade apenas para quem tem paixão pela profissão.


O campeão dos ares

Produzido ininterruptamente desde 1970, o avião agrícola Ipanema é, sem dúvida, o mais popular entre todos os que voam pelos campos do Brasil. Na versão a gasolina, foram comercializadas até hoje mais de mil unidades desse monomotor. Em 2004, ele se tornou o primeiro modelo de série do mundo a sair da fábrica equipado com motor movido a álcool. Além de ser mais barato que a gasolina de aviação, esse combustível, por não conter chumbo em sua composição, é menos agressivo ao meio ambiente e, segundo pesquisas da Embraer, pode prolongar a vida útil do motor.

Desde 1992 vem sendo produzida uma versão modernizada desse aparelho, o EMB 202, que ficou conhecido como Ipanemão, por ter um reservatório com capacidade para 750 quilos de produtos agrícolas, 40% maior que o dos modelos anteriores.


Novo avião, um projeto brasileiro

Está nascendo um novo avião agrícola brasileiro. É o KA-01, da Krauss Aeronáutica. O aparelho tem avançada tecnologia de aplicação aérea de fertilizantes, fungicidas, inseticidas, herbicidas e outros insumos agrícolas e também pode ser usado no combate a endemias urbanas como a dengue e a malária. Seu projeto foi coordenado por Roberto Serrano, de 37 anos, mestre em engenharia de aeronaves pela Universidade de São Paulo, e desenvolvido em parceria com universidades e operadores (pilotos, mecânicos, consultores e fazendeiros).

A aeronave é apta, ainda, para atividades de pesquisa espacial, como a medição de campo elétrico e de gases atmosféricos e a nucleação de nuvens para indução de chuva. De construção metálica, asa baixa de alumínio e fuselagem de treliça de aço-carbono, tem reservatório de instalação dianteira com capacidade de 1,5 mil a 1,8 mil litros. Pode ser equipado com motor movido a gasolina, álcool ou querosene. Atualmente estão sendo também finalizadas pesquisas para uso do biodiesel. 

 

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