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Solução barata, líquida e certa

Cultura rodoviária impede desenvolvimento das hidrovias, que apostam no transporte de álcool

MIGUEL NÍTOLO


Foto: Divulgação

O sonho é azul e cristalino como o filete de água que brota em Salesópolis, na Grande São Paulo, o berço do lendário Tietê, o rio que os paulistas aprenderam a venerar. Que ajudou na penetração rumo ao interior e serviu de trilha para os cafundós do Brasil ainda nos primeiros tempos da existência da nação, criando novas perspectivas e empurrando as fronteiras para mais longe.

O feito das expedições formadas por homens rudes e armados até os dentes, que utilizavam o grande rio para buscar as minas de pedras e metais preciosos, habita a cabeça de um sem-número de brasileiros, gente que delira com a idéia de ver o velho Tietê transformado na grande estrada desenhada pelos bandeirantes. Um sonho que fica cada vez mais intenso e só não passa rapidamente do imaginário para o real por causa do rosário de obstáculos que foram sendo caprichosamente plantados em seu caminho. Por que, passados tantos anos, o bom Tietê, maltratado na Região Metropolitana de São Paulo pelo esgoto lançado em suas águas, não se converteu num aliado do homem no transporte em grande escala? Por que o imenso Tietê das grandes barragens, limpo e de cheiro agradável em seu curso pelo rico interior paulista, não imitou – mesmo que de longe – o sucesso alcançado pelos rios Mississípi e Missouri, nos Estados Unidos, e Danúbio, Reno e Volga, na Europa?

O rio do estado mais desenvolvido do Brasil, justiça seja feita, virou uma hidrovia, tanto que vê aumentado, ano a ano, o volume de carga que desliza sobre suas águas. "Em 2006, foram 2,7 milhões de toneladas, e a previsão para este ano indica uma expansão de 10%", informa Oswaldo Rossetto Júnior, diretor do Departamento Hidroviário (DH), entidade subordinada à Secretaria dos Transportes do Estado de São Paulo e responsável pela administração da infra-estrutura da parte paulista da Hidrovia Tietê-Paraná, trecho composto de dez barragens, 23 pontes, 19 estaleiros e 30 terminais de cargas.

A capacidade do Tietê, no tocante ao transporte de longo curso, é de 20 milhões de toneladas anuais, ou seja, dez vezes mais do que o total deslocado atualmente. São volumes que até impressionam, mas de reduzida representatividade diante do que se vê no mundo desenvolvido. Esse número é definido pelas dimensões das câmaras das eclusas (142 x 12 metros), possivelmente a principal restrição à expansão futura do transporte no Tietê. Espaço o rio tem de sobra: em alguns pontos, no interior, chega a atingir 6 quilômetros de largura, um contraste com os 70 a 80 metros da travessia na capital. "Comboios maiores sofrem com os desmembramentos operacionais necessários para poder fazer as embarcações passarem pelas eclusas, aumentando consideravelmente o tempo de viagem", lastima-se o engenheiro Carlos Daher Padovezi, chefe do Agrupamento de Hidrovias e Tecnologia Naval do Instituto de Pesquisas Tecnológicas (IPT). Sem falar nos impedimentos que decorrem da inadequação das pontes fincadas em seu percurso, outro empecilho considerável e que vem sendo paulatinamente resolvido com o alargamento dos vãos e a proteção dos pilares. Outra batalha diz respeito à profundidade mínima de navegação, que deve ser assegurada com vistas a não criar embaraços para as transportadoras.

O calado do Tietê gira em torno de 2,7 metros, lâmina de água resultante de acordos com as hidrelétricas. Pode não parecer, mas nessa medida cada centímetro a mais representa muito. O tecnólogo naval George Alberto Takahashi, diretor-presidente do Sindicato dos Armadores de Navegação Fluvial do Estado de São Paulo (Sindasp), explica que os comboios que trafegam pelo Tietê são formados de apenas quatro chatas (sistema de empurra) com capacidade total de 5,1 mil toneladas. "Se aumentarmos o calado em dez centímetros, elevaremos a força de transporte em 250 toneladas, carga equivalente à capacidade de nove carretas", esclarece. O titular do Sindasp diz que o ideal seria um calado de 3 metros. Ele também pede a liberação de comboios com seis chatas. O Mississípi permite o deslocamento de comboios com capacidade de até 36 mil toneladas, o dobro do volume transportado, por exemplo, no rio Madeira, no norte do Brasil.

É de puro senso comum que, à medida que o transporte fluvial for ganhando maior adesão, o sistema de eclusagem terá obrigatoriamente de ser revisto (ampliado, esse é o termo certo). Uma decisão ainda muito distante, se considerado o volume de carga atualmente transportado pelo rio. "A cada dois anos fazemos a manutenção de todas as eclusas que operam com nossa bandeira, um trabalho que é realizado sempre nos meses de janeiro", conta Juan Carlos Castagnino, diretor de Operações da AES Tietê, geradora de eletricidade e responsável por um parque de dez usinas hidrelétricas no estado de São Paulo, cinco delas no rio Tietê (Barra Bonita, Bariri, Ibitinga, Promissão e Nova Avanhandava). Ele revela que esse reparo exigiu da empresa, no ano passado, o desembolso de R$ 3 milhões. "Em 2006, registramos 17,4 mil eclusagens, 163 a mais do que em 2005", diz Castagnino, informando que os principais produtos transportados no período foram areia, cana-de-açúcar, combustíveis, madeira e soja e seus derivados.

Cana-de-açúcar

Tudo teria começado em 1981, com o transporte regional de cana-de-açúcar num trecho relativamente curto do Tietê, já que à época apenas as eclusas das hidrelétricas de Barra Bonita e Bariri estavam ativadas. Na primeira metade da década passada foram inauguradas as eclusas de Nova Avanhandava e Três Irmãos e o canal de Pereira Barreto, permitindo então que os comboios chegassem ao rio Paraná. Aos poucos, a estrada fluvial representada pelo Tietê foi ganhando forma, realidade evidenciada pela instalação de portos e estaleiros em seus 800 quilômetros navegáveis (o rio todo cobre um percurso de 1,2 mil quilômetros). Pederneiras, no centro do estado, é nesse aspecto um exemplo marcante. O município abriga dois estaleiros e grandes terminais multimodais, um controlado pela francesa Louis Dreyfus, outro pela Caramuru Alimentos e operado pelo Grupo Torque. Cargas de soja chegam por hidrovia de Goiás e Mato Grosso e ali são embarcadas nas composições da MRS Logística, cujos vagões trafegam sobre os trilhos da América Latina Logística (ALL), linha que nasce em Panorama, no extremo oeste do estado, cruza Pederneiras e segue para Santos. Pelos dois terminais passaram, em 2006, 700 mil toneladas de soja e 300 mil de madeira para celulose. É sabido que muitas vezes esse transbordo também é feito em Anhembi, próximo de Piracicaba.

O Tietê, como se sabe, não faz carreira solo. Ele é parte de um sistema maior e que se completa com os rios Paraná e Paranaíba, hoje responsável pelo deslocamento anual de 4 milhões de toneladas de carga (números de 2006). Também conhecida como Hidrovia do Mercosul, a Tietê-Paraná chega a Conchas e Piracicaba, em São Paulo, e se esparrama pelos estados de Minas Gerais e Goiás (tramo norte), Mato Grosso do Sul, Paraná e Paraguai (tramo sul), envolvendo pelo caminho trechos dos rios Piracicaba, São José dos Dourados e Grande, além de afluentes navegáveis. Ela ainda não permite o transporte de cargas por via fluvial até o extremo sul do continente porque Itaipu, simplesmente, não dispõe de eclusas. "O rio Paraná conta, atualmente, com 1,02 mil quilômetros navegáveis, partindo da hidrelétrica de São Simão, em Goiás, até Foz do Iguaçu, no Paraná, graças à transposição, além do canal de Pereira Barreto, das eclusas das usinas de Três Irmãos, no rio Tietê, e Jupiá e Porto Primavera, no próprio rio Paraná", esclarece Antonio Badih Chehin, superintendente da Administração da Hidrovia do Paraná (Ahrana). O Tietê é peça-chave desse sistema hidroviário. Sem ele, a hidrovia formada pelos rios Paraná e Paranaíba teria menor impacto econômico pelo simples fato de se encontrar demasiado distante do porto de Santos, o destino de boa parte da oferta agrícola dos cinco maiores estados produtores de grãos.

Exemplo americano

Se tivéssemos imitado os americanos, os volumes transportados pelo rio que corta ao meio o estado de São Paulo seriam hoje significativamente maiores. Os rios Mississípi e Missouri, verdadeiras portas para o oeste que serpenteiam por boa parte do interior do país, acabaram se transmudando numa importante hidrovia que contribuiu para conformar o poderio econômico de que goza a grande nação do norte. É sabido que apenas com o item grãos (a soja, em especial) o sistema Mississípi/Missouri desloca, anualmente, 100 milhões de toneladas, um número assombroso frente aos dados exibidos pelas hidrovias brasileiras. A diferença é que lá souberam valorizar o modal fluvial, ao contrário daqui, onde só recentemente as autoridades passaram a dispensar a esse meio de transporte as atenções de que é merecedor. A União e o governo paulista garantem que investiram R$ 2,5 bilhões na Tietê-Paraná. "De 1995 para cá, apenas São Paulo destinou R$ 600 milhões a esse fim", informa Rossetto, do DH. É certo que a estaca zero ficou há muito para trás, mas os volumes deslocados pelas hidrovias que operam no Brasil (rios Madeira, Paraguai-Paraná, São Francisco, Taquari-Guaíba e Araguaia-Tocantins, além da Tietê-Paraná) não correspondem a nossa condição de detentores da maior bacia hidrográfica do planeta.

A nação que se orgulha do grande Amazonas tem rios em profusão, mas se movimenta quase que exclusivamente sobre rodas. As estatísticas mostram que a hidrovia participa com apenas 0,5% da carga movimentada dentro do estado de São Paulo, um percentual irrelevante, ante os 93% confiados às rodovias. "Os investimentos na Tietê-Paraná, como em geral os recursos direcionados às hidrovias no Brasil, estão sendo feitos muito lentamente, a reboque do desenvolvimento das hidrelétricas e às vezes de forma atrasada em relação a elas", comenta Sergio Rocha Santos, professor associado da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (USP) e do Departamento de Hidráulica e Saneamento da Escola de Engenharia de São Carlos, também da USP. "Ela só ganhou impulso nos últimos cinco anos por conta do término das eclusas de Jupiá e de Porto Primavera. Mesmo assim, os investimentos complementares em dragagem, derrocamento e proteção de pilares de pontes apenas se arrastam", observa. Ou seja, milhões de toneladas de cargas que poderiam estar sendo deslocadas através do rio Tietê balançam em cima de carretas porque o modal rodoviário impera soberano.

"A hidrovia não se desenvolveu de maneira compatível com as dimensões continentais do Brasil devido ao fato de que as rodovias receberam todas as atenções do Estado no tocante à infra-estrutura, suporte industrial e investimentos", complementa Badih Chehin. A linha de raciocínio do engenheiro Padovezi, do IPT, é a mesma. Ele sustenta que uma cultura exageradamente rodoviária gerou distorções que custam, hoje, muito caro à nação e dificultam a introdução das correções necessárias. O professor Rocha Santos vai mais longe. Ele acentua que "o infeliz lema ‘governar é construir estradas’, cunhado pelo presidente Washington Luís no final da década de 1920, atirou o Brasil no colo do rodoviarismo". E assim veio a indústria automotiva, nos anos 1950/60, impulsionando sobremaneira a economia e moldando o jeito de pensar do brasileiro, que passou a sonhar com um carro na garagem. "De lá para cá, registramos momentos de alguma atenção para os modais básicos, o hidroviário e o ferroviário, como na década de 1980, quando da efetivação da chamada Hidrovia do Álcool e da decisão de erigir as eclusas no Tietê sem atrasos em relação às obras das usinas. Ou, ainda, quando da construção da Estrada de Ferro Carajás e da própria Ferrovia Norte-Sul." O professor da USP salienta que o "rodoviarismo", no entanto, se fortaleceu devido a vários outros fatores. Ele acentua, dentre eles, um de caráter geográfico: os rios do sul e sudeste correm para o interior, porque a serra do Mar funciona como um paredão, impedindo a ligação direta das hidrovias com os portos de exportação e facilitando, nessas regiões, a predominância do deslocamento de cargas por caminhões. E lembra que a evolução tecnológica, que permitiu a construção de carretas de menor peso morto e maior potência a custos mais baixos, tornou o modal competitivo em relação à ferrovia.

Mas não há como negar: a hidrovia é um grande negócio. As pessoas, no entanto, têm uma visão equivocada sobre ela, julgando que o rio é pau para toda obra. "No transporte de longo curso, a hidrovia é imbatível, mas não podemos esquecer que seu leito é fixo", comenta Carlos Schad, presidente da Agência de Desenvolvimento Tietê Paraná (ADTP). Ele salienta que a ferrovia vem em segundo lugar, com a vantagem de ser mais flexível. "Já o modal rodoviário é antieconômico no longo curso, só que é altamente flexível. Quando as distâncias são curtas, as posições se invertem e é o transporte rodoviário que se mostra invencível", argumenta.

Álcool, a esperança

O que fazer? O segredo, segundo Schad, reside na integração logística. Ou, conforme interpretação do engenheiro Padovezi, "não podemos perder de vista os vários modais de transporte, que devem ser utilizados de maneira integrada e otimizada para o bem do país e dos brasileiros". É exatamente isso o que se vê em Pederneiras: a carga chega pelo rio e é reembarcada em trens rumo ao porto de Santos. É sabido que a hidrovia apresenta uma série de vantagens sobre os demais modais, em especial o rodoviário. "Tem maior eficiência energética, capacidade de concentração de cargas e vida útil da infra-estrutura e dos equipamentos e veículos", diz Rossetto, do DH. Ele destaca que o transporte fluvial reúne as qualidades de gerar menor quantidade de poluentes e de não provocar congestionamentos. "Seu custo operacional é menor, assim como a emissão de ruídos e o número de acidentes", enaltece. E tem um outro atributo de importância capital: seu consumo de combustível é infinitamente menor. "Um empurrador equipado com dois ou três motores de caminhão é capaz de deslocar em torno de 6 mil toneladas de carga, volume que exigiria entre 150 e 250 caminhões, dependendo do porte de cada veículo", explica Padovezi, do IPT. "A tarefa que num comboio requereria a mão-de-obra de apenas nove pessoas (mais três ou quatro tripulantes para revezamentos em outras viagens), exigiria, no modal rodoviário, os préstimos de 150 a 250 motoristas", diz.

É por essas e outras que, conforme entendimento de João Carlos Caramez, deputado estadual paulista e coordenador da Frente Parlamentar das Hidrovias (FPH), o Brasil precisa assumir uma posição de maior consistência em nome do transporte fluvial. "As nações avançadas sempre valorizaram tanto o transporte ferroviário quanto o hidroviário. E hoje, com as transformações desencadeadas pela globalização, quando os países estão em busca de alternativas para transporte mais barato, visando reduzir custos e aumentar a competitividade de seus produtos, mais investimentos são feitos em hidrovias", diz. Caramez faz ver que o Brasil ainda não acordou para essa realidade. E São Paulo, com a Hidrovia Tietê-Paraná, além de outras vias navegáveis, não pode deixar de fomentar o modal, priorizando sua importância nas políticas governamentais. Foi essa a intenção que norteou a criação da FPH, em maio de 2006, com o objetivo, dentre outros, de "incrementar a utilização racional e integrada dos recursos hídricos do estado de São Paulo". Essa meta poderá ganhar impulso se o protocolo de intenções firmado em 2005 pelo governo paulista com a Transpetro e a BR, empresas da Petrobras, chegar a bom termo. Está em discussão o transporte pela Hidrovia Tietê-Paraná, a partir de 2011, de 5 a 6 milhões de toneladas anuais de álcool, produto que seria embarcado a partir de Goiás, levado até Conchas e dali bombeado através de um alcooduto até Paulínia, na região de Campinas. A concretização do protocolo não representará propriamente a redenção da hidrovia no estado de São Paulo, mas o prenúncio de uma nova era para o setor. 

 

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