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Indústrias deixam herança envenenada

O pesadelo da casa própria construída em áreas contaminadas por resíduos tóxicos

CEZAR MARTINS


Terreno da Esso no bairro paulistano da Mooca
Foto: Cezar Martins

Visto de cima, mais parece um deserto de dez quarteirões na cidade de São Paulo: o chão de terra, onde se espalham cinco árvores mirradas, forma uma clareira em meio ao amontoado de casas, pequenos prédios e galpões industriais, na maioria desativados, erguidos na região da Mooca, uma das mais antigas zonas de industrialização do Brasil. Por sua extensão e localização privilegiada dentro da metrópole, aquela porção de solo de cor ocre é cobiçada por construtoras que vêem nos antigos bairros fabris possibilidades lucrativas para erguer condomínios residenciais de luxo. Antes de ser negociado, porém, o terreno da companhia Esso Brasileira de Petróleo precisa estar livre dos resíduos tóxicos oriundos da estocagem de combustíveis líquidos, problema similar ao de quase 2 mil áreas contaminadas já identificadas no estado pela Companhia de Tecnologia de Saneamento Ambiental (Cetesb) e de incontáveis outras que também esperam solução pelo Brasil afora.

Levantamento feito em novembro de 2006 pelo órgão vinculado ao governo paulista identificou, apenas na região metropolitana, 972 locais com focos de substâncias potencialmente perigosas ao homem, como benzeno, naftaleno, chumbo e tetracloreto de carbono, que podem causar desde irritação nos olhos e na pele até câncer. Embora seja impossível precisar quantos deles interessam às incorporadoras imobiliárias, é fato que a mira das empresas se voltou nos últimos anos para os espaços amplos antes ocupados por indústrias e, portanto, com risco de contaminação, tanto do solo quanto dos lençóis subterrâneos de água, devido a resíduos provenientes de atividades passadas. "O plano diretor da cidade restringiu as possibilidades de permissão para construção, e as incorporadoras se viram na necessidade de buscar áreas de maiores dimensões. Os terrenos disponíveis com essas características são exatamente os que pertenceram a grandes fábricas. Uma vez que a recuperação é bastante cara, o passivo ambiental se tornou mais um elemento a ser colocado na equação de um empreendimento imobiliário", diz João Crestana, vice-presidente de incorporação do Secovi-SP, entidade que representa o setor.

Passivo ambiental, esclarece o gerente da Divisão de Áreas Contaminadas da Cetesb, Alfredo Rocca, é "o total de recursos necessários para investigar o tamanho da contaminação e depois proceder à remediação". Além de demorado – no terreno da Esso a intervenção já dura cinco anos –, este último processo tem um custo alto, que nem sempre os responsáveis pelos danos têm possibilidade ou disposição de pagar. Isso explica por que, desde 2002, quando o primeiro relatório de áreas comprometidas foi apresentado, somente 3% dos locais com problemas finalizaram os trabalhos de reabilitação. "Temos muitos terrenos contaminados próximo ao centro, uma região com infra-estrutura já montada e em grande parte ociosa. As investigações e correções ficam a cargo dos proprietários, que contratam serviços de empresas especializadas em análise ambiental. A Cetesb checa os estudos", explica Rocca.

A fiscalização crescente para impedir a ocupação desordenada de terrenos contaminados não foi suficiente para garantir a segurança de um conjunto residencial construído na cidade de Mauá, na Grande São Paulo, sobre um antigo aterro utilizado pela fábrica de peças automotivas Cofap. Em 22 de abril de 2000, um funcionário morreu e outro ficou ferido numa explosão ocorrida enquanto faziam manutenção da caixa-d’água de um edifício do conjunto residencial Barão de Mauá. Gases inflamáveis resultantes da decomposição de pneus, óleos e outros derivados de petróleo haviam emanado do solo. O acidente, causado pelo acender de um cigarro, alertou as autoridades para a necessidade de aumentar o rigor nas investigações a fim de evitar novas tragédias.

Atualmente, mais de mil famílias esperam a conclusão de uma ação movida pelo Ministério Público contra a construtora, a fábrica e a administração da cidade, todos réus por terem negligenciado a análise do solo antes do início das obras. "Existem pessoas que investiram os recursos de toda uma vida, e agora não conseguem sequer vender o apartamento que compraram. O Tribunal de Justiça determinou que as famílias sejam indenizadas e os prédios demolidos, mas as empresas recorreram dessa decisão", afirma o deputado estadual Donisete Braga (PT-SP).

O parlamentar tem focado sua atenção no projeto de lei número 368, enviado à Assembléia Legislativa pelo Poder Executivo em 2005. Entre as propostas do texto está a criação de um fundo para que, caso o causador da poluição não assuma a responsabilidade pela recuperação, as áreas contaminadas possam ser remediadas mais rapidamente. "O fundo já foi criado e agora precisa ser regulamentado. O importante é que esse dinheiro não vá para o caixa do Estado e que fique reservado exclusivamente para essa finalidade, uma vez que o governo ainda não tem uma política clara para a reabilitação desses locais", afirma Braga.

Acidentes ocorridos em países de industrialização mais antiga que a brasileira, como os Estados Unidos, atingiram proporções ainda maiores, e têm servido de alerta. Em 1978, o então presidente Jimmy Carter declarou estado de emergência na cidade de Love Canal, no estado de Nova York, construída sobre um aterro que continha tambores metálicos com resíduos químicos. Propriedade de William T. Love, empresário cujo projeto de desviar água do rio Niágara para produzir energia elétrica malogrou, as terras ficaram em estado de abandono, com uma vala aberta que se mostrou perfeita para a deposição de rejeitos graças a sua profundidade e localização, em uma região até então desabitada. Depois de saturado, o depósito foi coberto, e a área passou a ser ocupada indiscriminadamente, sem que a população tivesse consciência dos riscos. Os efeitos da exposição à poluição, que vazou dos tambores e atingiu a água que abastecia a cidade, ficaram nítidos com o aumento exponencial de doenças de pele, abortos e má-formação congênita de bebês.

Informação

Estimuladas pelo surgimento de novas linhas de crédito voltadas para a aquisição da casa própria pela classe média e ávidas por terrenos aptos a receber condomínios residenciais, as empresas do mercado imobiliário não estão dispostas a esperar pelas diretrizes do poder público para proceder à remediação de solos envenenados. Muitas contratam companhias particulares de geologia e análise ambiental para que os danos sejam logo corrigidos e prédios possam ser erguidos. "Já existem áreas que foram remediadas e estão sendo usadas, mas ninguém gosta de falar sobre o assunto, porque causa uma publicidade negativa. Esse tipo de intervenção já é feito há algum tempo", admite Rivaldo Mello, presidente da Associação Brasileira das Empresas de Diagnóstico e Remediação de Solos e Águas Subterrâneas (Aesas) e diretor da Angel Geologia e Meio Ambiente, uma das integrantes da entidade.

Em São Paulo, a aprovação das medidas de reabilitação, a definição de uso posterior do local e a checagem sistemática dos níveis de agentes contaminadores ficam a cargo da Cetesb, que também é responsável por manter atualizado o cadastro das áreas com problemas. Depois de pronto um arranha-céu, no entanto, na maioria dos casos os moradores desconhecem que ali foi feito um trabalho de descontaminação e, assim, perdem a capacidade de cobrar dos responsáveis a permanente fiscalização da qualidade do solo e da água.

Embora os relatórios da companhia estejam disponíveis para consulta até pela internet, o deputado Braga acredita que a melhor saída para assegurar o direito à informação a todos os cidadãos é o detalhamento do passivo ambiental no registro do cartório de imóveis – previsto no artigo 24 do projeto de lei 368 –, onde deverá constar se a propriedade, caso tenha sido detectado algum problema, é uma "AC" (área contaminada) ou "AR" (área remediada para uso declarado). "Apoiamos a maior transparência possível nas comercializações. O comprador de um imóvel precisa ter acesso a todas as informações referentes ao terreno e ao método de construção, para evitar problemas futuros de insatisfação com o que lhe foi entregue", diz João Crestana.

Ao mesmo tempo que o projeto avança lentamente, a Cetesb tenta encontrar soluções para acelerar a detecção de locais que contenham resíduos perigosos. Para Braga, no entanto, enquanto o órgão depender da comunicação de eventuais problemas pelos próprios proprietários dos terrenos, o cadastro seguirá bastante defasado. "A informação de que a área está contaminada é fundamental para o cidadão. O dado oficial da Cetesb está em grande descompasso com a realidade, uma vez que é possível haver muito mais lugares que apresentem risco. O processo de identificação deveria ser aprimorado." Um aspecto importante da questão diz respeito à velocidade com que as informações são repassadas à população. "Além de agilizar a atualização do cadastro, que deverá ocorrer praticamente on-line, nossa intenção é divulgar um novo relatório a cada seis meses", afirma Rocca.

Questão nacional

A preocupação com a presença humana em áreas contaminadas está presente também em localidades de outros estados marcados por atividades poluidoras, algumas preexistentes à industrialização de fato no Brasil. Em Nova Lima, cidade com mais de 73 mil habitantes na região metropolitana de Belo Horizonte, a mineração provocou degradação de extensas porções de solo e exigiu do governo e da empresa envolvida mais de R$ 2 milhões em ações corretivas para evitar que aproximadamente 40 famílias que viviam no Morro do Galo continuassem expostas ao arsênico, substância cancerígena.

A reabilitação começou em 1998, praticamente cinco décadas depois que o estrago havia sido feito. "Os resíduos da mineração contêm um elevado índice de arsênico. De 1900 a 1940, a mineradora Morro Velho depositou 3 milhões de toneladas de resíduos ao longo do rio das Velhas e do ribeirão Cardoso. A cidade cresceu e hoje há cinco depósitos dentro do perímetro urbano e um fora, exatamente o que mais nos preocupava e exigia providências mais rápidas. A população usava o terreno para se divertir, jogar futebol e plantar", comenta Eleonora Deschamps, gerente da Divisão de Indústria Química da Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) de Minas Gerais.

Tido como exemplo de sucesso na reabilitação de locais contaminados, o depósito do Galo não apresenta mais riscos para os moradores, mas ainda é objeto de restrições relativas a seu uso. "A exposição ao arsênico pode ocorrer pelo contato da pele com a poeira, e havia famílias que até mesmo tinham hortas. Tivemos de cobrir toda a área com argila e concreto, depois vegetação, e as plantações estão proibidas. As edificações construídas ali também não poderão perfurar o solo", detalha a pesquisadora. Financiado pela mineradora Anglo Gold, que assumiu as operações da Morro Velho, o projeto tem previsão de consumir mais R$ 8 milhões para que todos os outros depósitos sejam corrigidos até maio de 2008.

O plano de recuperação de uma área degradada não diz respeito apenas à retirada da camada superior do solo e dos componentes tóxicos. O projeto pode vir acompanhado de um programa de reurbanização de um bairro inteiro, com melhorias nas condições de moradia e saneamento básico para a população, como o que vem sendo pensado pela prefeitura do Rio de Janeiro para a região de São Cristóvão, em que havia resíduos de óleo. "Esse foi um tratamento relativamente simples, comparado ao de outras áreas com problemas mais densos. A idéia é usar o lugar, que fica próximo ao morro da Mangueira, para a construção de conjuntos habitacionais para a população de baixa renda. Pode haver uma migração da favela para esses locais com uma infra-estrutura mais adequada", explica Antonio Luiz Barbosa Correia, diretor de Urbanismo do Instituto Pereira Passos, ligado à administração municipal. "Existem conjuntos construídos pela iniciativa privada em São Cristóvão. Essas habitações já tiveram de passar por um licenciamento ambiental, que analisa se há ou não contaminação", acrescenta.

Sem uma política clara em nível nacional para o tratamento de resíduos tóxicos, o Brasil ainda engatinha em matéria de reocupação dos locais degradados pelas indústrias. A criação de um cadastro e de leis específicas para a construção civil em São Paulo é o primeiro passo para um enfrentamento mais agressivo da questão. "Esse problema se manifestou antes na capital paulista, por ser a cidade que se industrializou primeiro e de forma mais acentuada. Há entretanto outras regiões do Brasil com o mesmo desafio, e às quais a Cetesb pode ajudar", avalia Rocca.

Batizada de Diagonal Sul, a área onde estão localizados o terreno da Esso e outros também desejados pelas incorporadoras, e que se estende do centro até os limites da cidade com o ABC paulista, é de vital importância para a reurbanização que a prefeitura da capital pretende levar a cabo nos próximos anos. O cinturão de antigas indústrias, próximo à linha férrea que fazia a ligação com o porto de Santos, será alvo de análises detalhadas nos próximos meses para delinear o tamanho dos estragos causados por décadas de atividades poluidoras sem controle adequado. "Existem seis estudos relativos ao Projeto Diagonal Sul encaminhados para contratação. Um deles diz respeito à contaminação do solo. O tipo de ocupação que será feito na região vai depender do mapeamento dessas áreas contaminadas. Depois que identificarmos com exatidão onde estão os focos, teremos de fazer o dimensionamento econômico da recuperação", explica José Geraldo de Oliveira, responsável pela Assessoria Técnica de Operação Urbana da Secretaria Municipal de Planejamento de São Paulo.

O cronograma de recuperação da Diagonal Sul prevê 14 meses para a conclusão de todos os estudos. Só depois disso será possível colocar em prática as ações necessárias para que os galpões e chaminés possam ser substituídos por prédios de arquitetura moderna, com piscinas e quadras esportivas. "O passivo por essa ignorância, esse descuido com o espaço urbano, hoje nos causa um atraso enorme", ressalta Oliveira.

A alternativa para acelerar a solução pode estar na parceria entre órgãos públicos de preservação do meio ambiente e empresas privadas, que também acabam prejudicadas pela contaminação e degradação em suas vizinhanças. Essa foi a saída encontrada para sanar os prejuízos causados por um incinerador que funcionou até 1989 no bairro de Pinheiros, uma das áreas mais nobres da cidade. O processo de queima do lixo deixou no solo quantidades de chumbo, cádmio, bário e outros elementos nocivos acima dos níveis considerados seguros. Nas paredes do edifício, que passará por restauração, as análises constataram a presença de furanos e dioxinas, substâncias tóxicas do tipo das que foram usadas para envenenar o atual presidente da Ucrânia, Viktor Yushchenko, durante a campanha eleitoral de 2004 naquele país (o político, que poderia ter morrido, ficou com o rosto temporariamente desfigurado).

O local, depois de tratado com recursos advindos do acordo com uma editora, será transformado, daqui a aproximadamente um ano, numa praça pública, e o antigo prédio passará a funcionar como centro de exposições e atividades culturais. "Devido à contaminação, as paredes serão raspadas e o solo receberá uma cobertura extra de 30 centímetros. Vamos também construir um espelho-d’água em volta do prédio, para evitar o contato da população com os muros", comenta Milton Tadeu Motta, geólogo e coordenador do Grupo Técnico de Áreas Contaminadas da Secretaria Municipal do Verde e do Meio Ambiente. A futura praça terá ainda centro para a terceira idade, pista de caminhada e aparelhos públicos para prática de atividades esportivas, espaço para exposições temporárias abertas e uma arena de jogos com arquibancada. "Até a década de 1970, acreditava-se que o solo tinha um efeito tampão: pensava-se que bastava enterrar, por exemplo, a borra de petróleo, para que tudo ficasse bem. Hoje, sabe-se que um aterro sanitário tem de ser feito com mantas para isolar o solo, camadas de argila, e toda uma engenharia que evite transtornos quando resolverem dar um novo uso ao local", alerta. 

 

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