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Os avanços da cardiologia

O objetivo é tratar sem intervir

ADIB JATENE


Adib Jatene / Foto: Alexandre Almeida

O professor Adib Domingos Jatene, médico cardiologista e ex-ministro da Saúde, esteve presente no dia 11 de outubro de 2007 no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac, onde proferiu uma palestra sobre os avanços na área da medicina cardiovascular. Reproduzimos abaixo sua palestra e o debate que se seguiu.

A máquina humana tem diferenças fundamentais em relação à máquina mecânica, porque esta, quanto mais se usa, mais se desgasta. A humana, quanto mais se usa, mais se regenera. Trata-se de uma regeneração que acontece diariamente. Produzimos aproximadamente 2 bilhões de células por dia, trocamos as da epiderme a cada três dias e as da mucosa do intestino a cada semana. Os glóbulos brancos duram dez dias, as plaquetas 12, os glóbulos vermelhos 120. Ou seja, há uma constante renovação, basicamente feita com aminoácidos, que provêm das proteínas fornecidas pelos alimentos, tanto de origem animal como vegetal. Dos 21 aminoácidos assim obtidos, sete são essenciais porque não são sintetizados pelo organismo, só são fornecidos pelas proteínas de origem animal.

A deficiência de proteína se mostra de forma dramática nas populações de baixa renda, nas quais a alimentação das crianças não contém proteína animal na quantidade necessária. Como o cérebro se desenvolve até os sete anos – em alguns órgãos não há regeneração de células, ou o indivíduo as tem ou não terá mais –, grande número dessas crianças subalimentadas não tem os neurônios e os circuitos necessários para aprender. Quando se fala em dificuldades para ensinar crianças em escolas públicas, pode não se tratar de deficiência do ensino, mas de incapacidade de aprender devido a causas físicas, como acontece com um computador que não tem circuitos suficientes para processar informações.

Outra coisa: no corpo humano não há reserva de gás. Temos água suficiente para dois ou três dias e nutrientes para duas ou três semanas. Mas não temos estoque de gás. Como o oxigênio é absolutamente fundamental para o processo metabólico, a solução que a natureza adotou foi fazer com que todo o sangue circule pelo pulmão. Para isso foi necessário instalar duas bombas. Todo o sangue do corpo é recolhido e jogado no pulmão, onde é oxigenado e segue para uma câmara de recepção, que o lança no ventrículo esquerdo, que é a câmara de ejeção, que por sua vez joga o sangue para o corpo todo através da aorta. Essa combinação de duas bombas, uma lançando sangue no pulmão, outra enviando-o para o corpo inteiro, é que permite utilizar o volume de gás necessário para o processo metabólico. Tanto que no passado a morte era atestada quando o indivíduo deixava de respirar. Se não respira, não há oxigênio. Se não se oxigena, está morto. Depois que se inventaram a sonda endotraqueal e os aparelhos para ventilação, esse critério deixou de servir. Criou-se então o coração artificial, que substitui a função de bomba do órgão natural. E evoluímos para o conceito de morte cerebral. De qualquer jeito, o coração é o elemento fundamental de uma máquina que não pode parar em nenhum momento. Está em atividade constante e alguns de seus processos são independentes da consciência, são automáticos. Por isso o indivíduo pode apresentar morte cerebral e continuar com as funções do fígado, rim, coração etc.

Alta eficiência

Quando me formei, em 1953, a tecnologia disponível era rudimentar. Tínhamos o eletrocardiograma, o aparelho de raios X e pouca coisa mais para avaliar o coração. Com o passar do tempo, a compreensão do funcionamento do órgão foi se ampliando. O coração é um conjunto de cinco sistemas. Ele tem um sistema muscular, que é a parte do coração que se contrai e descontrai. O segundo sistema é o valvar. Como é uma bomba pulsátil, há necessidade de uma válvula de admissão e uma de saída para que a contração tenha conseqüência. A diferença dessa bomba pulsátil para uma mecânica é que esta tem uma fonte externa de energia – pneumática, elétrica ou magnética. O músculo cardíaco gera energia em sua própria parede. É uma bomba de altíssima eficiência.

O terceiro sistema é o automático e de condução. Desde as primeiras semanas de vida intra-uterina há um grupo de células musculares que se diferencia. Sua característica é a instabilidade. Se estimulamos uma fibra muscular, ela se despolariza, se repolariza e fica em repouso. Somente um novo estímulo é que a faz repetir a ação. As células que se diferenciam no sistema automático se despolarizam e se repolarizam automaticamente, até atingir um limiar a partir do qual o movimento se deflagra sozinho. A alteração do limiar é que caracteriza a freqüência cardíaca. O sistema é altamente sensível à temperatura, ao exercício, ao repouso. Ou seja, há uma perfeita adaptação às necessidades de oxigênio do corpo inteiro. Esse sistema é constituído de nodos e feixes que passam pelas câmaras de recepção, ou átrios. Há um nodo sinusal e outro atrioventricular. Entre os átrios e o ventrículo apenas um feixe, chamado de His, leva o estímulo para os ventrículos para provocar a contração automática. É um sistema altamente elaborado para que a bomba funcione de forma adequada.

Tudo isso exige um outro sistema, que é o de nutrição, representado pelas artérias coronárias, que são duas, a direita e a esquerda, com os seus ramos. A esquerda tem dois ramos principais.

Sob o ponto de vista prático, o coração está dividido em três territórios, um irrigado pela coronária direita, um irrigado pela descendente anterior e um irrigado pela artéria circunflexa, estas duas ramos da coronária esquerda. Esses três territórios não são estanques, existe comunicação entre eles, que chamamos de circulação colateral. Quando uma artéria dessas se oclui o que vai acontecer no músculo fica na dependência da existência e do grau da circulação colateral.

O quinto sistema é o nervoso, que não se confunde com o automático e de condução. É um conjunto de mais ou menos 40 mil neurônios localizados na entrada das veias nas câmaras de recepção, cuja função é muito discutível. Costumo dizer que ajustam o débito do ventrículo direito e do esquerdo, porque se o direito lança mais sangue do que o esquerdo, o pulmão se encharca. Quando uma pessoa fora de forma faz um esforço sente grande falta de ar. Por quê? Como o ventrículo direito se esvazia nos pulmões com mais facilidade, porque a resistência do pulmão é menor que a sistêmica, o esquerdo, destreinado, não consegue fazer o ajuste. Por isso a pessoa fica ofegando. E uma insuficiência do ventrículo direito distende o fígado, e é por isso que surge, nesses casos, a dor do lado direito.

Esse órgão, de tal complexidade, foi durante muito tempo considerado intocável. Na vida intra-uterina, ele começa como um tubo reto, fixado nas duas extremidades. Durante a evolução embrionária, vai sofrendo encurvamentos, dilatações, reabsorções, até chegar às quatro cavidades, duas direitas e duas esquerdas. Durante esse desenvolvimento embriológico pode haver distúrbios e interrupções precoces, antes que os dois ventrículos tenham se dividido, antes que a aorta e a artéria pulmonar tenham se diferenciado.

Podemos assim ter corações muito diferentes do normal. Mas pode haver distúrbios de desenvolvimento tardios. Por exemplo, o coração estava pronto, mas ficou um orifício entre os dois ventrículos, entre os dois átrios, uma comunicação entre a aorta e a artéria pulmonar. Uma vez abolidos esses problemas, o coração se torna absolutamente normal. E há as distorções de desenvolvimento. Há casos de corações, por exemplo, que não têm o ventrículo esquerdo. Por quê? Porque, como a criança no útero não respira, o sangue tem que seguir um caminho para desenvolver o ventrículo esquerdo, e por isso o septo atrial é aberto e o sangue passa por ali. Se esse septo fecha precocemente, não se desenvolvem as câmaras esquerdas e a criança nasce sem o ventrículo esquerdo. São cardiopatias complexas. Pode também acontecer de o ventrículo direito ser ligado na aorta e o esquerdo na pulmonar.

Impacto do cateter

Quando se iniciou a cirurgia cardíaca, passou a haver necessidade absoluta de identificação da doença, para saber que tipo de correção seria feita. Cada um desses sistemas pode sofrer processos patológicos. Podemos ter problemas de músculo, as chamadas miocardiopatias. A doença de Chagas é uma miocardiopatia, porque há uma destruição muscular e uma substituição fibrosa. Miocardites e inflamações do coração podem resultar em comprometimento do músculo. O infarto pode levar à destruição de partes do músculo. As valvas podem sofrer processos seja de estreitamento – estenose –, seja de insuficiência. É indispensável identificar a alteração que ocorreu. As coronárias podem sofrer obstruções que produzem sintomas. Lembro-me de que em 1966, quando a cinecoronariografia começou a ser utilizada no mundo, Dante Pazzanese, solicitado a encaminhar alguém para Cleveland, para aprender a técnica, disse: "Mas você está me dizendo que é possível ver a artéria coronária por dentro, com o indivíduo vivo?" Veja, um cardiologista eminente como ele não concebia essa idéia. Foi essa necessidade que, junto com o desenvolvimento tecnológico e científico, trouxe o fantástico arsenal de que dispomos hoje. O estudo do coração sofreu um impacto enorme quando se descobriu a possibilidade de introduzir um cateter na circulação e injetar contraste dentro do órgão para verificar as alterações.

Outra enorme contribuição veio da tecnologia do sonar, o ecocardiograma, a emissão de estímulo para verificar seu retorno. A ecocardiografia conseguia inicialmente, em dois planos, analisar o funcionamento das válvulas. De repente surgiu uma ecocardiografia mais ampliada, com doppler, para calcular a velocidade circulatória etc. E depois a tomografia, que agregou um conhecimento enorme. Inicialmente era um corte por segundo, mais recentemente surgiu a tomografia com quatro cortes por segundo, depois oito, 16, 32, 64, 128 cortes por segundo, tudo sincronizado com o eletrocardiograma, permitindo reconstruir a imagem e ver a circulação coronária sem necessidade de cateter e injeção de contraste.

São novas tecnologias de diagnóstico que permitem avaliar a função do coração. Se existe uma parte do órgão que não se contrai por deficiência circulatória, é possível descobrir se essa porção tem viabilidade ou não. Podemos usar um isótopo, o fluorocarbono, para verificar se aquela região está consumindo glicose ou não. Se estiver consumindo glicose, existe vitalidade do músculo, que pode ser recuperado.

Por ressonância magnética pode-se também identificar se determinada lesão do coração é reversível ou não. E os testes ergométricos permitem identificar se uma pessoa tem obstrução coronária, ainda que não apresente sintoma. É o que chamamos de isquemia silenciosa. Se, num indivíduo com estenose da coronária, em condições de repouso o fluxo que a lesão permite é suficiente para irrigar a área do músculo, o eletrocardiograma não revela alterações. No momento em que é submetido a esforço, o músculo, que necessita de maior fluxo, não o recebendo, altera o eletrocardiograma. O indivíduo pode não ter nenhum sintoma, daí a importância do teste ergométrico periódico depois de certa idade, para avaliar a presença ou não de isquemia silenciosa.

Há indivíduos que têm uma grande circulação colateral, e é quase certo que o exercício contribui para desenvolver essa circulação, daí a insistência dos cardiologistas na prática esportiva. Nesse caso, a obstrução de um ramo arterial passa despercebida. Em indivíduos sem circulação colateral a mesma obstrução causa uma destruição máxima na área irrigada pela artéria obstruída. É o infarto, ou seja, a destruição muscular por falta de circulação. Entre esses dois extremos há muitos graus, como o do indivíduo cuja circulação colateral é suficiente para evitar a destruição muscular, mas não o bastante para evitar dor. Ele tem um quadro típico de infarto, mas não perde músculo. E há indivíduos cuja circulação colateral protege 90% , 80% ou 70% da área, perdem 10%, 20% ou 30%. Então, quando se fala em infarto, é preciso saber qual artéria fechou, em que nível, qual é a circulação colateral, como estão as artérias que fornecem a circulação colateral e somente a partir daí traçar um panorama do risco.

Pontes de safena

Depois desses avanços, ficou fácil programar a terapêutica, porque o sistema circulatório é hidrodinâmico clássico. Então, se há uma obstrução, pode-se fazer um by-pass, tirando o sangue antes e colocando-o depois da obstrução. Isso é feito com veia safena, a famosa ponte de safena. Mas depois se percebeu que as pontes de safena em boa porcentagem fecham depois de 10 ou 15 anos, porque a doença básica se mantém. Começou-se então a utilizar a artéria mamária, a artéria radial, com a idéia de que, sendo artéria, não sofreria o processo degenerativo que atinge a veia. Isso se confirmou. Tenho um paciente que está há quase 40 anos com uma ponte de mamária perfeita, sem nenhum problema.

A cirurgia assumiu um papel muito importante na doença das coronárias. Mas um hemodinamicista na Suíça descobriu que, se há uma obstrução, pode-se fazer um cateter com um balãozinho e chegar à área em questão. Insuflando-se o cateter esmaga-se a placa obstrutiva e resolve-se o problema. Mas o que se verificou é que 40% a 50% dessas angioplastias depois de algum tempo sofriam recolhimento elástico e a lesão se refazia. A pesquisa continuou e inventou-se um tubo metálico de paredes muito finas que, com eletroerosão, cria aberturas, montando uma malha. Insuflando-se um balão dentro dessa malha, ela se arma e impede que ocorra o recolhimento elástico. É o chamado stent. Com o stent, o insucesso caiu para 20% a 25% em seis meses. Mas ainda era uma coisa pouco segura, apesar de ser muito mais fácil para o doente. Então alguém começou a pensar: o que acontece quando se põe um stent? Ocorre um crescimento de tecido na região envolvida. Existem substâncias que impeçam isso? Sim, as drogas para combater o câncer. Começaram então a revestir a malha com aquela substância inibidora do crescimento de tecido. O curioso é que essa experiência com stent, tanto o metálico original como o revestido, começou em São Paulo, no Instituto Dante Pazzanese, com o doutor Eduardo Sousa, que foi quem colocou o primeiro stent no mundo e quem fez também a experiência pioneira com stent revestido. Isso mudou completamente a situação, porque a possibilidade de obstrução em cinco anos, que é o tempo que temos de evolução, é da ordem de 2%. Então é possível que o stent revestido resolva o problema das obstruções coronárias.

Foi assim que a cirurgia, que era absolutamente predominante, começou a perder terreno para o stent. Na equipe que dirijo no Hospital do Coração, revascularizávamos ao redor de 900 doentes por ano, 600 e tantos com cirurgia e menos de 300 por cateterismo, por stent. Hoje 600 e poucos são tratados com stent e perto de 300 com cirurgia. O procedimento não só é mais simples para o doente, como implica menos sofrimento.

Quando se desenvolveu a tomografia de múltiplos detectores, capaz de ver as coronárias e aferir seu grau de calcificação, estava-se substituindo um cateterismo cardíaco por um procedimento absolutamente simples: uma injeção na veia e dois ou três minutos no tomógrafo. Da mesma forma, quando substituímos a cirurgia pelos stents, poupamos o doente de um procedimento agressivo. Ainda há uma discussão se um é melhor que o outro e então caímos em estudos multicêntricos, evidências e procedimentos capazes de determinar a eficiência de um ou de outro. É uma pesquisa clínica que tem suas normas.

Morte súbita

A estratégia de adotar procedimentos cada vez mais simples, não só de diagnóstico como de terapêutica, tem uma grande importância nas doenças coronárias, porque elas, diferentemente de outros males cardíacos, incluem uma coisa que se chama morte súbita. Por quê? Porque, se o indivíduo tem uma obstrução de 90% de uma artéria principal, ela pode se completar pela formação de um coágulo. O coágulo é algo que aparece subitamente, porque o sangue humano está sempre coagulando e descoagulando, tem um mecanismo permanente que mantém o sangue fluido, mas pronto para coagular. Tanto que, quando a pessoa sofre um corte, sangra um pouco, mas pára, o próprio organismo faz com que aquilo se corrija.

Sabendo que o episódio é súbito e com a agregação de um coágulo, temos duas linhas de conduta. Será que não conseguimos dissolver o coágulo agudamente e voltar à condição anterior? A pesquisa caminhou nessa direção, com o objetivo de conseguir substâncias trombolíticas, que lisassem o trombo para desobstruir a artéria. Estabeleceram-se protocolos de atendimento na fase aguda, injetando a substância capaz de desobstruir a artéria.

Hoje temos sistemas, já implantados no país, de telemedicina, em que eletrocardiogramas são tomados em comunidades onde não existem cardiologistas e apreciados em centrais de interpretação. Um dos primeiros serviços está em Uberlândia, Minas Gerais, montado pelo doutor Roberto Botelho. Lá, a CTBC Telecom mantém um call center enorme, com milhares de funcionários. O sistema permite que o eletrocardiograma seja repassado on line, e nessa central há cardiologistas de plantão 24 horas que interpretam o exame, fazem o diagnóstico e indicam o tratamento. Isso já permitiu ajudar muita gente. E teve um impacto na história do infarto do miocárdio. Quando ele ocorre, metade dos pacientes morre antes de chegar ao pronto-socorro – é a morte súbita. Mesmo depois de dar entrada no hospital, com todos os recursos disponíveis, ainda havia um índice de 30% de mortes ou grandes infartos que resultavam em aneurisma de ventrículo esquerdo. Hoje, o índice de mortalidade está ao redor de 5% e o de aneurismas mudou totalmente. Na década de 1980, 13% dos doentes que eu operava para revascularização do miocárdio tinham aneurisma de ventrículo esquerdo associado. Hoje não chegam a 2%, porque essas técnicas de angioplastia, fazer cateterismo e colocar um stent na fase aguda ou usar droga trombolítica alteraram completamente a situação.

Além das coronárias, nas outras doenças também temos modificações importantes. Nas estenoses de valva, em que o cirurgião precisa abrir o coração para tratar a válvula, usando um órgão artificial, já se faz a abertura da válvula por cateterismo. São balões especiais que são insuflados e se rompe a válvula, geralmente onde houve a fusão, que é o ponto mais fraco. Se não sofreu muita calcificação, ela pode ser recuperada sem cirurgia.

Estamos evoluindo, já há experiências de colocar uma prótese valvular por cateterismo. Se isso é feito no local da valva lesada, podemos substituí-la sem abrir o tórax. O maior avanço nesse campo foi o da endoprótese. Trata-se de uma prótese de tecido, de Dacron, com uma armação feita de metais que têm memória. Ela é comprimida e colocada dentro de um tubo de espessura suficiente para ser introduzido pela artéria femural e depois, quando liberada, recupera as dimensões originais. O aneurisma da aorta pode ser tratado dessa forma.

Vejam que a associação do avanço tecnológico com a criatividade trouxe um novo ator para a cena. Hoje a indústria que fabrica próteses tem um poder fantástico, porque há uma valorização muito grande delas. São valores muito altos que alimentam novas conquistas. Um capítulo que tem tido um avanço fantástico é o das arritmias, problemas no sistema automático e de condução. Se normalmente o estímulo nasce naqueles nodos que têm feixes de transmissão, existem várias possibilidades de estímulos extras, que se chamam de extra-sístole. Essas extra-sístoles podem se originar nas câmaras de recepção ou nas de ejeção. O risco é diferente. Quando é da câmara de recepção, é menor. Quando é da de ejeção, é maior, principalmente se houver vários focos e se eles gerarem crises de taquicardia, que podem degenerar em contração anárquica do coração. Ele passa a tremular, mas não tem capacidade de se esvaziar, o que representa a morte.

Arritmias

Vimos ao vivo aquele atleta do São Caetano que teve uma fibrilação ventricular. Não havia um desfibrilador no estádio, não se conseguiu recuperá-lo, e ele morreu. Isso tem acontecido em vários esportes, em diversos países. Tanto que há uma discussão se se deve ou não se deve fazer uma avaliação de todos os indivíduos que praticam esporte. Na Itália é obrigatório pelo menos um eletrocardiograma. Nos Estados Unidos, não. É uma grande discussão. Uma arritmia muito freqüente nas pessoas de idade é a fibrilação atrial. O átrio fibrila, lança estímulos que passam por esse único feixe que faz a comunicação com os ventrículos, que é o feixe de His, e estimula irregularmente a contração ventricular. É uma arritmia arrítmica.

Várias espécies animais, inclusive o homem, além desse feixe de His têm outras conexões da aurícula com o ventrículo, que podem deflagrar arritmias, taquicardias que levam o doente ao pronto-socorro com certa freqüência. Então a primeira coisa que se desenvolveu foi o estudo eletrofisiológico do coração. É possível identificar onde nasce a arritmia, assim como a existência desses feixes anômalos. Então se propôs cortá-los cirurgicamente.

Essa doença se chama síndrome de Wolff-Parkinson-White, a partir do nome dos autores que a descreveram. A Wolff-Parkinson-White, que praticamente não tinha tratamento, uma vez cortado o feixe anômalo identificado no estudo eletrofisiológico, tem cura. Operei mais de 400 doentes de Wolff e há uns cinco anos não opero mais nenhum. Por quê? Porque se desenvolveu uma técnica por meio da qual, uma vez identificado o feixe, se faz uma descarga por radiofreqüência que o corta. Faz-se com cateterismo, sem cirurgia.

A fibrilação atrial favorece a formação de coágulos dentro do coração, que podem se soltar e causar um derrame, e foi sempre considerada uma situação potencialmente capaz de criar problemas. O doente precisa tomar anticoagulante etc. Mas um cirurgião nos Estados Unidos, o doutor Cox, propôs uma técnica em que se fazem cortes nos átrios para inibir a transmissão desses estímulos anormais. Era uma operação complicada, com vários cortes. Operamos um grande número desses doentes. De repente, nunca mais operamos nenhum, porque os pesquisadores conseguiram desenvolver cateteres que identificam o estímulo extra e o eliminam sem cirurgia.

Isso para não falar dos marca-passos, usados quando há um bloqueio do estímulo. Esse fato ocorre porque o coração tem hierarquia, o nó sinusal tem uma freqüência de estímulo e, se está funcionando, o nó atrioventricular, que tem uma freqüência mais baixa, não funciona, é inibido. Se o sinusal é bloqueado, o atrioventricular assume e a freqüência é mais baixa. Se o atrioventricular não consegue fazer passar o estímulo pelo feixe de His porque tem um bloqueio, o ventrículo assume, mas a freqüência deste é mais baixa ainda. Digamos que o nó sinusal tem 80 de freqüência, o nó atrioventricular 60 e o ventrículo 30. Se o indivíduo tem um bloqueio atrioventricular total, ele passa a funcionar com 30 de freqüência. Só que esses estímulos não têm a qualidade do nó sinusal, e o ventrículo pode falhar. Então pára durante três, cinco, dez segundos, e o indivíduo desmaia. Por isso se coloca um sistema eletrônico que leva o estímulo ao próprio coração. Os marca-passos antigos eram do tamanho de um maço de cigarros, com baterias de mercúrio. Hoje são muito pequenos, usam baterias de lítio e duram 15 anos.

Apesar do grande avanço, nessa área de arritmia ficou um problema muito sério, que são as arritmias ventriculares polifocais, capazes de desencadear taquicardia sustentada e evoluir para fibrilação ventricular. Várias pessoas tiveram esse problema, e foram recuperadas por desfibrilador externo. Foi daí que veio a idéia: será que não podemos fazer um desfibrilador implantável? A proposta evoluiu e hoje esse equipamento já existe. Ele capta a arritmia e deflagra o choque automaticamente, e com isso protege o indivíduo do mecanismo de morte súbita. São coisas possíveis num órgão que tem função mecânica e é constituído por cinco sistemas, cada um dos quais pode sofrer comprometimento em graus variados. Podem ocorrer problemas de músculo, mais graves, menos graves, que são analisados com certa facilidade no ecocardiograma, para verificar a fração de ejeção, o quanto consegue se esvaziar. A fração de ejeção normal é acima de 60%. Podemos ter um indivíduo com 30% ou 15% de fração de ejeção. Isso quer dizer que o músculo está muito fraco e, então, é necessário um transplante. Pode haver lesão das valvas, que pode ser estenose ou insuficiência ou dupla lesão de uma valva, de duas valvas, de três valvas, associada ou não a comprometimento do músculo, maior ou menor. Pode haver problemas nas artérias coronárias, com músculo não comprometido, ou lesões nas artérias coronárias em doentes que já tiveram infartos. Pode haver arritmias, que são graves ou menos graves, benignas. Há mecanismos para identificar, por sistema eletrofisiológico, os locais da arritmia, instrumentos para eliminá-la e aparelhos para bradiarritmia etc. Ou seja, o coração, como um órgão que exerce uma função mecânica e vital, tem hoje todos os instrumentos para um diagnóstico absolutamente preciso e para as intervenções, que não são mais, na grande maioria dos casos, cirúrgicas, mas feitas por hemodinâmica intervencionista, por cateterismo e por situações muito mais simplificadas.

Isso sem mencionar o fantástico avanço da farmacologia clínica, o desenvolvimento de drogas capazes de controlar arritmias, de melhorar a eficiência da utilização do oxigênio, para reverter lesões. Em outras palavras, grande parte do tratamento hoje pode ser feito sem intervenção, seja cirúrgica, seja por cateterismo. Na imprensa são publicados estudos que mostram que determinado tipo de lesão coronária pode ser tratado com medicamentos, sem as desvantagens dos procedimentos mais agressivos. Esses estudos estão sendo acompanhados e a evolução vem sendo avaliada. Mesmo para doentes com problemas do músculo, hoje temos inibidores de enzimas, bloqueadores para receptores alfa e beta, drogas anti-hipertensivas. O arsenal medicamentoso hoje é de tal ordem que não tenho dúvida em dizer que é possível que no futuro próximo consigamos resolver os problemas sem nenhum tipo de intervenção. Essa é a meta que buscamos.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – Uma questão importantíssima apresentada em sua palestra é a desnutrição. O professor Nelson Chaves, fundador do Instituto de Nutrição da Universidade Federal de Pernambuco, desenvolveu a tese de que estamos criando uma sociedade de nanicos, anões que não se desenvolvem não só mental mas também fisicamente por conta da desnutrição. Com ele trabalhou o professor Fernando Figueira, que criou o Instituto Materno-Infantil de Pernambuco, uma instituição de referência no tratamento de doenças infantis e que também se ocupa da questão nutricional.
Outro aspecto que gostaria de levantar é a variável política. Ouvi há muitos anos um depoimento do professor Vasconcelos Sobrinho, especialista em meio ambiente do nordeste, já falecido, sobre a desnutrição naquela região. Ele dizia que ela tinha chegado a tal ponto que as políticas públicas já eram incapazes de resolver ou reduzir seu impacto negativo.
O Bolsa Família e o Bolsa Escola, apesar de criticados até pela CNBB [Conferência Nacional dos Bispos do Brasil] como programas que estão induzindo à preguiça, talvez tenham uma função de redução dessa incapacidade futura, pela melhoria da alimentação.
Tenho também um depoimento sobre o Sistema Único de Saúde [SUS]. Recentemente uma pessoa conhecida foi acometida no Recife de síndrome de Guillain-Barré. É uma doença galopante de paralisação que, se chega aos pulmões, leva à morte. O remédio era imunogamaglobulina, produto que faltava em Pernambuco. Conseguimos no Hospital do Coração apenas cinco ampolas, cada uma a R$ 1.700. Ela se propôs a pagar, mas os médicos disseram que precisaria de 20 doses e de imediato. Felizmente encontramos a imunogamaglobulina na farmácia do SUS, onde obtivemos as 20 ampolas gratuitamente e ela foi salva. Sempre pensamos que o SUS não tem recursos para nada, mas nesse caso resolveu o problema.
E finalmente um comentário sobre o financiamento à saúde no Brasil. Os hospitais privados de Pernambuco são conhecidos como "hospitel". Parecem hotéis cinco estrelas, e reclamam que estão ganhando pouco. Pergunto ao criador da CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira]: se a alíquota tivesse sido reduzida para 0,15% e conseguíssemos R$ 15 bilhões ou R$ 16 bilhões só para a saúde, mudaria o panorama?

JATENE – Foi Fernando Figueira quem desenvolveu a "mãe canguru", a que fica com a criança, longe do tradicional berçário. A criança tem de ficar é junto da mãe mesmo. Ele realiza um trabalho fantástico em Pernambuco, um modelo para o país inteiro.
Quanto ao Bolsa Família, também concordo. Numa sociedade em que as pessoas não conseguem nem comer fazer isso é uma primeira coisa. Surge então a grande discussão: de quem é a culpa da desnutrição? Hoje estou desenvolvendo um raciocínio que tenho checado com alguns economistas. Não acho que a carga tributária no Brasil seja elevada. Isso é uma coisa que se difunde, mas precisa ser revista, porque o denominador da equação é o PIB [Produto Interno Bruto] oficial, não o real. Há gente que afirma que a sonegação chega a 60% do PIB oficial, outros dizem que é de 30%. Por outro lado, a contribuição previdenciária, que alcança quase 15% do PIB, não é recurso do governo, é do aposentado e pensionista. O governo arrecada, administra, mas é um fundo de pensão. Então, se tirarmos esses 15% e considerarmos o PIB real, a carga se reduz.
Amir Khair fez o seguinte cálculo: para o indivíduo que ganha dois salários mínimos, a carga tributária é de 48%. Por quê? Por causa de nosso sistema tributário, cuja maior parte incide sobre produtos, bens e serviços. Então o consumidor paga. Aquele que gasta tudo o que ganha para comprar coisas está pagando muito. Já os que ganham muito têm mil mecanismos para não contribuir. Isso é herança da Colônia, do Império, os amigos do rei não pagam.
Hoje penso que o que o governo tem de recursos não é proporcional à riqueza do país. A riqueza é enorme, mas está concentrada. Se a carga tributária fosse elevada, não haveria essa concentração de renda, como não há no Japão, na Holanda, na Bélgica. Então alguém diz que nos outros países as pessoas pagam porque têm retorno. Os países onde existe retorno foram os beneficiários da Primeira Revolução Industrial, e nós estamos 200 anos atrasados em relação a ela. Quando iniciamos nossa revolução industrial, na década de 1950, tínhamos 18 milhões de pessoas em todas as cidades brasileiras somadas. Hoje são 150 milhões, crescemos 800%. Não tínhamos colônias, não tínhamos dinheiro de fora, tivemos que trazer multinacional para produzir desenvolvimento, e os resultados desse crescimento voltaram para a origem. Então não tivemos recursos para atender as demandas que o aumento populacional criou, levando ao caos das regiões metropolitanas.
Aqui em São Paulo temos 25 distritos com 1,8 milhão de pessoas, com média de 13 leitos por mil habitantes. Mas temos 74 distritos com mais de 8 milhões de pessoas, com média de 0,6 leito por mil habitantes. Por que isso não é resolvido? Porque não há dinheiro. Mas por outro lado aparece dinheiro para comprar remédios, porque há pressão, os juízes obrigam o secretário da Saúde, sob pena de prisão, a fornecer o remédio. Vou fazer uma palestra no Tribunal de Justiça sobre o financiamento da saúde, e vou dizer que o juiz deveria responsabilizar o secretário da Fazenda, para que este oferecesse recursos ao secretário da Saúde para comprar os remédios.
Quanto à CPMF, quando assumi o ministério da Saúde, mostrei ao presidente Fernando Henrique Cardoso uma série de situações, e a principal era um tipo de fraude: internava-se na época 10% da população por ano, o que não é uma coisa fora de propósito. Separando por municípios, descobrimos que a cidade de São Paulo internava 6,2% da população por ano. Isso porque aqui há muitos planos de saúde, convênios, seguros-saúde etc. Mas havia municípios que internavam 10%, 12%, 15%, 20%, 30%, 40%, 50% da população por ano. Isso só poderia ser fraude. Para mim era muito claro, então, que era necessária uma ação para eliminar essas irregularidades.
Por outro lado, o valor das consultas e dos procedimentos era muito baixo, e precisávamos corrigi-lo, porque isso levava à fraude. O doente com gripe era internado como se tivesse pneumonia. Como o sistema paga por pacote, detectamos que havia casos de broncopneumonia com alta em um dia, pura fraude. Pagava-se parto em homem. Esse deve ter sido erro de digitação, porque um fraudador que se preza não cometeria esse engano. Mas o sistema não detectava isso. Existiam empresas que produziam prontuários fantasmas, apresentavam-nos e recebiam. Colocamos 135 críticas no sistema de processamento de contas, e hoje ninguém se refere a fraude. Fala-se em filas, demora de atendimento, falta de leitos, mas não em fraude.
Precisávamos eliminar o Aedes aegypti, porque eu acreditava que a dengue seria um problema, morreria gente. Era preciso reduzir os casos de malária para os números que havia na década de 1980, que eram de 100 mil por ano, e estávamos com 600 mil. Tínhamos de reduzir a mortalidade infantil à metade. Com os recursos de que o ministério dispunha, no entanto, não havia como levar adiante essas ações. Só para a erradicação do Aedes aegypti, calculamos que, com as ações que precisavam ser deflagradas no mesmo dia em todos os municípios que tinham o mosquito, seriam gastos R$ 4 bilhões. Não havia esses recursos. Conheço orçamento público e verifiquei que, depois que se tira o Fundo de Participação dos Estados, o Fundo de Participação dos Municípios, os recursos vinculados para a educação e o salário dos funcionários, do que sobrava o Ministério da Saúde recebia 51% e os outros 19 ministérios de então os 49% restantes. Então não havia de onde tirar.
Minha proposta foi criar um recurso novo, porque o ministro da Fazenda, Pedro Malan, me disse que dali a três anos, com a reforma tributária, se aumentaria a arrecadação etc. Foi quando propus buscar um recurso provisório por três anos para completar o orçamento, até que a reforma se consolidasse. E coloquei um pré-requisito: ninguém mexeria nas fontes que o ministério já tinha, ou seja, seu orçamento ia aumentar de acordo com o crescimento da inflação, mantendo as fontes.
Eu tinha 67% da Cofins [Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social], 83% do PIS/Pasep [contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público], então conservaria essas fontes mais a CPMF. Essa contribuição começou a ser arrecadada no final de 1996 e, no ano seguinte, o Planejamento e a Fazenda já tinham tirado do orçamento da Saúde mais do que ela havia trazido. Então o total ficou menor e fui falar com o presidente. Eu disse: "Presidente, no Congresso me diziam que isso iria acontecer mas eu acreditava que não porque tinha sua palavra. Se o senhor não consegue cumpri-la, até entendo sua dificuldade, mas terá de pôr outra pessoa no meu lugar. Se ficar, fico desmoralizado, não vim aqui para isso".
Mas a CPMF teve uma coisa muito interessante. Na regulamentação entrou um artigo que dizia mais ou menos o seguinte: a Receita Federal fica proibida de utilizar as informações da CPMF para efeito de imposto de renda. Por que não tenho nenhuma dúvida de que a sonegação é muito grande? Porque isso foi posto na lei, é uma coisa inconcebível: vou sonegar e a Receita está proibida de me fiscalizar. Everardo Maciel, então secretário da Receita, demonstrou que, dos cem maiores contribuintes da CPMF, 62 nunca tinham pago imposto de renda. Havia microempresa, que por definição não pode movimentar mais que R$ 120 mil por ano, que movimentava R$ 100 milhões. Com a CPMF, a arrecadação federal, que era de R$ 6,5 bilhões a R$ 7 bilhões por mês, passou para R$ 20 bilhões, R$ 30 bilhões. Não posso afirmar, mas desconfio que a CPMF trazia muito desconforto para manejar as coisas. Dava muito trabalho, era melhor acabar com ela.

MOACYR VAZ GUIMARÃES – Vivemos no Brasil uma era de descrédito e pessimismo. Em sua palestra vi otimismo, segurança e esperança. Isso para nosso estado de espírito é extraordinário. Que fiquem as preocupações de ordem material, mas, naquilo que é mais precioso para a vida, sua palestra trouxe uma dose muito grande de otimismo. Ainda há esperança de superarmos a doença coronária, que há algum tempo era uma condenação à morte, um fantasma. Ficamos com a convicção de que é um caminho progressivo que vai sempre melhorando.

ISAAC JARDANOVSKI – As doenças cardiovasculares ainda ocupam o primeiro lugar como causa mortis no Brasil?

JATENE – Ocupam, e com vantagem. Em segundo estava o câncer, hoje está a violência. Não só a violência clássica, mas a que ocorre no trânsito também. Temos um estímulo para ser otimistas pelo que se avançou na profilaxia, no entendimento dos fatores de risco, mas a dificuldade é seguir isso, porque a prevenção das doenças do coração é diferente daquela da poliomielite, do sarampo, em que bastam umas gotinhas ou uma injeção. Aqui não, é preciso mudança de hábitos, atividade proativa, e isso é muito difícil. Sei por mim, porque sou diabético e volta e meia me pego comendo doces. Como ser humano não sou uma máquina programável, tenho condicionantes que me orientam.

LUIZ GORNSTEIN – Segundo comentários na imprensa, o treinador Telê Santana foi vítima de um conflito de competência e sofreu acidente vascular cerebral que deixou seqüelas. Isso é comum na medicina?

JATENE – O acidente vascular cerebral tem várias etiologias. São dois tipos de acidente. Um é isquêmico ou embólico, em que um trombo oclui uma artéria e destrói uma parte do cérebro; é um infarto do cérebro. O outro é hemorrágico, o paciente sofre uma hemorragia. O tratamento é oposto. No primeiro caso se usa droga para dissolver o trombo. No segundo, hemorrágico, se usarmos drogas para dissolver o trombo, a situação piora. Essa é uma área onde se avançou muito e nela o cardiologista, como o neurologista, tem muito envolvimento pessoal, porque uma das fontes de coágulos que causam o acidente vascular cerebral é o coração. Não sei detalhes do caso de Telê Santana, mas o que temos hoje é o seguinte: quando ocorre um acidente vascular cerebral, deveríamos ter condições de atender no curtíssimo prazo. O indivíduo deve ter a noção do sintoma e ser imediatamente submetido a uma ressonância nuclear magnética para distinguir se o infarto é hemorrágico ou embólico. Se for embólico, deve-se dar imediatamente a droga para dissolver o coágulo. Alguns lugares no mundo têm um stroke center – alguns hospitais de São Paulo estão tentando montar isso –, que permite acesso à ressonância 24 horas por dia. É preciso ter um neurologista disponível e uma estrutura adequada. Esse é um campo que ainda está aberto. Mas estamos caminhando. E existe o oposto, o excesso de exames. Os planos de saúde tentam coibir, mas aí as pessoas dizem que estão interferindo na liberdade do médico. Há um verdadeiro desperdício.

ISAAC – Falando em planos de saúde, você acha razoável a atitude das seguradoras de não pagar os stents nas operações?

JATENE – É um problema. Eles pagam o stent metálico, mas não o revestido, que chega a custar R$ 10 mil ou R$ 12 mil.

MUSSALÉM – Quanto custa o metálico?

JATENE – Custa R$ 800, a diferença é muito grande. O argumento dos planos é que existem terapêuticas novas que foram introduzidas, mas que não estão suficientemente comprovadas, aceitas e consolidadas. Dizem que não foi feito o cálculo atuarial disso e então não têm como cobrir. Não sei bem como fazem esses cálculos.

EDUARDO SILVA – Tenho consultado cardiologistas e uma coisa me chama a atenção. A médica que me orienta diz que a nutrição precisa ser muito controlada, não se pode comer determinados alimentos. A pressão arterial também tem de ficar sob controle. Dizem que o povo em geral se alimenta de modo errado ou come coisas que comprometem a saúde. Nos Estados Unidos, por exemplo, a grande maioria das pessoas está com excesso de peso. Creio então que o mais difícil para a população, de modo geral, se quisermos cuidar do coração, é saber o que se pode comer. E, para minha surpresa, também para muitos médicos é difícil manter uma alimentação e peso adequados. O senhor pode comentar isso?

JATENE – Esse é um problema. Por exemplo, a chamada gordura trans. Antigamente era utilizada a banha de porco. A população foi se urbanizando e não houve mais porco que chegasse para fornecer tanta gordura. Além disso, agora o porco não tem banha. Então descobriram que se podia fazer gordura de origem vegetal. Só que ela é líquida, e para ficar sólida precisa ser hidrogenada. E, no processo de hidrogenação, se criou a chamada gordura trans, que tem sido mostrada como nociva, inadequada.
O problema é que há três tipos de alimento: a proteína, o hidrato de carbono e a gordura. O que faz a reposição das células – praticamente 2 bilhões delas por dia – é a proteína e alguns aminoácidos que são encontrados somente na proteína de origem animal: leite, ovo, carne. Isso significa que esses alimentos precisam estar na dieta, mas não em quantidade excessiva. E não se pode ingerir a gordura associada a eles. Uma bela picanha é uma delícia, mas é preciso tirar aquela gordura. O hidrato de carbono e a gordura são responsáveis pela produção de energia, como o carvão numa caldeira. Acontece que desses três elementos o mais caro é a proteína de origem animal. Então, grande parte da população consome predominantemente hidrato de carbono e gordura. Veja as mulheres da periferia, quase sempre gordas. Não comem proteína, apenas hidrato de carbono e gordura. Esses elementos, se forem ingeridos em excesso, vão sobrar e se depositar no organismo. Quando se é jovem, pratica-se esporte etc., de tal forma que é raro ver um moço muito gordo, porque ele queima os excessos. Agora, se alguém está acima do peso, e lhe pedem para cuidar da alimentação, ele não consegue, porque está habituado ao sistema. Levou 50 anos se alimentando de uma forma, não consegue mudar. Por isso nunca digo a um doente: "Você vai ter de emagrecer". Prefiro dizer: "Você vai ter de lutar para emagrecer". Isso é uma batalha, a pessoa ganha, perde, ganha, perde, mas o importante é que continue lutando. Por isso é que há vários médicos gordos. Eles sabem que aquilo é ruim, só que não conseguem mudar. O sistema nervoso é complicado, está acima das forças da própria pessoa. É um processo de autodisciplina, auto-sugestão, complicado como o diabo.

MOACYR – Penso que realmente é uma questão de hábito e que falta no processo educacional essa preocupação. Não há no currículo escolar nada que fale disso. É preciso educar para bons hábitos.

JATENE – Vocês se lembram de que no passado havia um concurso de robustez para bebês, patrocinado pela Nestlé? Acabou.

NEY PRADO– Vou colocar um ingrediente jurídico nesse assunto, levando em conta as últimas ponderações. Sempre entendi que o Estado tem uma posição muito proeminente na questão da saúde, mas hoje estou convencido de que, mais do que um direito, a saúde é um dever do cidadão, para falar exatamente nesse envolvimento pedagógico. A Constituição, ao dizer que saúde é um direito do cidadão e um dever do Estado, cria uma situação utópica, porque na verdade não temos educação alimentar e outras que permitam ao indivíduo construir a própria higidez física. Como há conseqüências jurídicas, e já foi levantada aqui a possibilidade de prisão do secretário da Saúde por insuficiência de meios, penso que, levando stricto sensu aquele preceito constitucional, em vez de criarmos condições para aprimorar a saúde, estamos produzindo um problema, porque as pessoas que não se cuidam e não têm nenhuma preocupação com a saúde estão se valendo, quando a perdem, do preceito constitucional, um ônus para os contribuintes.

JATENE – Concordo. E não é só o capítulo da saúde na Constituição, como também o da criança e do adolescente. No meio rural há adolescentes e jovens de 15 anos que numa parte do dia vão para a escola mas no restante não podem trabalhar, é proibido.

SAMUEL PFROMM NETTO – Há uma longa e já antiga linha de contribuições científicas, notáveis aliás, sobre os efeitos do estresse, o impacto de estados emocionais adversos, contrariedades e tensões no contexto familiar ou no âmbito do trabalho. A quantas anda a avaliação empírica dos especialistas e estudiosos na área da cardiologia e das cardiopatias em relação a essa influência lesiva na doença de natureza cardiovascular?

JATENE – Uma vez o deputado Ulysses Guimarães sofreu um pequeno infarto e se internou no InCor [Instituto do Coração do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo]. Quando saiu, eu o acompanhei, e a imprensa me perguntou se ele podia voltar para o trabalho normal. Disse uma frase que ficou e tem sido repetida: o trabalho não mata ninguém, o que mata é a raiva. A tristeza mata. Vejam o caso do marido que perde a mulher ou da esposa que perde o companheiro. Não tenho dúvida de que isso tem importância e está demonstrado que influi até no sistema imunológico.
Como controlar essa variável? Dizem que é preciso dominar ou diminuir o estresse. Mas como? Eu sempre parto do pressuposto de que não podemos eliminá-lo. Esse também é um processo de auto-sugestão, é aprender a reagir de uma forma mais equilibrada às tensões da vida moderna.
Trabalhei com Dante Pazzanese muitos anos, ele era um filósofo. Dizia que boa parte do estresse se deve a dois sentimentos que ele chamava de menores: inveja e vaidade. A vaidade deixa o indivíduo preocupado com o que os outros pensam a seu respeito. É algo que intranqüiliza as pessoas e é um dos componentes da reação inadequada ao estresse. Quanto à inveja, ele dizia assim: é muito difícil alguém não se sentir diminuído com o sucesso alheio, especialmente se for em seu campo de atividade. E acrescentava que é preciso se acostumar com o fato de que existe gente melhor que você.
Esse é o contexto do estresse, um problema sério. É um componente fundamental que precisamos aprender a administrar. Brinco com alguns doentes, dizendo-lhes que precisam ser um pouquinho, mas só um pouquinho, irresponsáveis, para não sofrer muito.

PFROMM NETTO – Um especialista disse há pouco tempo que precisamos voltar a ser civilizados. Está faltando civilização no sentido nobre, autêntico, verdadeiro da palavra. Essa conduta civilizada seria, na verdade, um antídoto para tudo isso.

JATENE – O que mais causa desconforto, em minha avaliação, é que os padrões éticos se perderam, e assim surgem os conflitos entre as pessoas diante de uma situação qualquer, porque vale tudo. O vale-tudo não deixa ninguém confortável.

MÁRIO AMATO – Sou um médico frustrado, pois queria estudar medicina. Não consegui por razões várias, mas o problema de saúde sempre me preocupou muito. Criei o Hospital Sepaco, em cuja administração atuei. Também estive na Beneficência Portuguesa, na Santa Casa, e fiz o curso de administração hospitalar. Confesso que sua palestra me deixou aturdido. O corpo humano realmente é uma máquina maravilhosa. Nasci em 1918 e diziam que eu não poderia sobreviver. Aos 14 anos, fui ao médico e ele disse a minha mãe: "Seu filho é fraco, fisicamente tem dificuldades". Aos 18 anos lutei contra isso, ou seja, existe uma força indômita dentro das pessoas.

JATENE – Nós, do InCor, montamos um serviço de cardiologia no Sepaco e operamos lá mais de mil doentes, é um hospital realmente modelar. Para uma entidade de classe construir um hospital daquela categoria é preciso haver alguém que acredite.
Digo sempre a meus doentes que, independentemente do nível cultural, econômico e financeiro, diante da doença todos ficam aflitos, angustiados e sentem medo. O oposto do medo não é a coragem, é a fé. É preciso acreditar. Madre Teresa de Calcutá dizia às freirinhas que a ajudavam com dificuldade, lá na Índia, e às vezes ficavam meio desanimadas: "Vocês precisam ter fé, porque sem fé não existe amor, sem amor não existe a entrega de si e quem não é capaz de entregar-se não está preparado para tratar dos que sofrem". 

 

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