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Rio Madeira: a porteira já está aberta
Hidrelétricas em Rondônia podem consolidar exploração energética da Amazônia
ALBERTO MAWAKDIYE
Arte PB
Se a pressão dos ambientalistas está conseguindo barrar, pelo menos em parte, o avanço das plantações de soja, das madeireiras e da pecuária extensiva sobre a Amazônia – perto de 75% das áreas desmatadas da floresta estão ocupadas por gado –, o mesmo não se pode dizer em relação ao uso dos recursos da região para a geração de energia.
Tido como igualmente danoso pelos ecologistas, o processo de implantação de megausinas hidrelétricas nos caudalosos rios amazônicos – a menina-dos-olhos do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), do presidente Luiz Inácio Lula da Silva – já começou, para todos os efeitos práticos. Apesar dos protestos cada vez mais ruidosos dos ambientalistas, tudo leva a crer que o plano deverá seguir adiante nos próximos anos.
As projeções indicam a exploração de pelo menos 43 mil MW na região na próxima década, o equivalente à energia gerada por três usinas do tamanho de Itaipu, ainda a maior hidrelétrica do mundo (vai ser superada em breve por Três Gargantas, na China), localizada na fronteira entre Brasil e Paraguai.
É quase um terço do potencial hidrelétrico da região. O Plano Nacional de Recursos Hídricos estima em pouco mais de 132 mil MW a capacidade de geração de energia dos rios amazônicos, se incluída a bacia do Tocantins, que se estende também pelas regiões nordeste e centro-oeste. "O Brasil está sabidamente carente de energia, e para suprir-se vai ter de abrir as portas da Amazônia", resume Mauricio Tolmasquim, presidente da Empresa de Pesquisa Energética (EPE), subordinada ao governo federal.
A primeira usina a ser tirada do papel, dentro desse processo de avanço, foi a Hidrelétrica de Estreito, no rio Tocantins, na fronteira entre os estados de Tocantins e Maranhão. Com 1.087 MW de potência, a usina deverá entrar em operação em 2010. O polêmico e combatido Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira, no estado de Rondônia, deverá ser o próximo da lista. O complexo deverá gerar 6.450 MW, seis vezes mais que Estreito.
O leilão para a construção da primeira das duas grandes usinas previstas para o Madeira – a Hidrelétrica de Santo Antônio, com potência de 3.150 MW – foi concluído no final do ano passado, depois de uma barulhenta briga pela imprensa envolvendo as empreiteiras interessadas. Saiu vencedor o Consórcio Madeira Energia, que ofereceu a menor tarifa pela energia a ser gerada: R$ 78,90 por MW/h, 35% abaixo dos R$ 122 do teto estabelecido pelo governo.
O compromisso do consórcio, que investirá R$ 9,5 bilhões nas obras sob o guarda-chuva financeiro do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), é colocar em funcionamento as duas primeiras turbinas, de um total de 44, no final de 2012. As demais entrarão em operação no ritmo de uma por mês – ou seja, a usina só estará inteiramente concluída em 2016. "Vamos cumprir o cronograma estabelecido, desde que as autoridades ambientais nos dêem a licença de instalação em tempo hábil", garantiu Irineu Meirelles, diretor-presidente do consórcio, que acredita que os trabalhos devem começar até outubro deste ano.
Está nas intenções do governo promover o segundo leilão do rio Madeira, para a construção da Hidrelétrica de Jirau (3.300 MW), ainda neste semestre. A idéia é colocar em operação essa segunda usina, que também terá 44 turbinas, pouco depois de Santo Antônio começar a fornecer energia.
Apesar do porte gigantesco, as usinas do rio Madeira, no entanto, estão longe de constituir as maiores a ser implantadas na Amazônia. Também está incluída nos planos a construção, no estado do Pará, em prazo mais elástico, da Hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu, com capacidade de geração de 11 mil MW – quase o dobro do Complexo do Madeira – e da Hidrelétrica de São Luís, no rio Tapajós, com 9 mil MW. O Pará deverá receber ainda a usina de Marabá, no rio Tocantins, com capacidade instalada de 2.160 MW.
Rios do Amazonas, Roraima e Mato Grosso também poderão receber usinas, assim como outros situados no Pará e em Rondônia. Os planos, até agora, são de construir na Amazônia nada menos que dez usinas de grande porte ou de porte médio para grande. Já há previsão de leilões (para a escolha das construtoras, fornecedoras e operadoras) para todas essas obras, até 2010.
Santuário
Diga-se que, de um ponto de vista estritamente técnico, parece ser plenamente justificável o que os ambientalistas têm classificado como uma "obsessão" do governo federal em multiplicar as hidrelétricas no que já foi chamado de último grande santuário ecológico do mundo.
De fato, a Amazônia guarda de 65% a 70% do potencial remanescente do país e tem apenas uma usina considerada de grande porte, a de Tucuruí, no Pará, construída nas décadas de 1970 e 80. Praticamente todos os outros grandes rios brasileiros já foram explorados para finalidades hidrelétricas (como o São Francisco, no nordeste, e o Paraná, no centro-sul).
É óbvio que o Brasil precisa dispor de mais energia. Com um parque com potência instalada de 101 mil MW, distribuídos por 1,5 mil usinas de todas as modalidades – embora a geração hidrelétrica responda por 70% do total –, o país vai necessitar, segundo projeções, de quase o dobro de energia até 2030 para atender ao aumento da demanda, caso continue a crescer a taxas próximas a 5%, como aconteceu em 2007 e deverá se repetir neste ano. Ou seja, a implantação de algo em torno de 4,5 mil MW por ano.
Mesmo hoje, a oferta mal está dando para o gasto. O país voltou a conviver neste início de ano com a possibilidade de racionamento (já passou por essa situação depois do "apagão" da virada do ano 2000), devido à falta de chuvas, que reduziu o volume de água para geração de energia em várias hidrelétricas. A quantidade armazenada nos reservatórios do sudeste caiu, por exemplo, para 44,9%, deixando uma folga de apenas 5,6% em relação ao mínimo fixado pelo governo.
As usinas térmicas, a segunda modalidade em importância no parque energético brasileiro, têm se mostrado insuficientes para cobrir eventuais "buracos" na geração hidrelétrica. O país tem capacidade para produzir até 12 mil MW nas térmicas, mas a geração efetiva tem ficado em torno de 4,5 mil MW, por falta de gás natural. É o equivalente a menos de 10% do consumo médio nacional, que é de cerca de 52 mil MW.
E não há como aumentar a oferta de energia proveniente das térmicas em curto prazo. Dependente em boa parte do gás importado da Bolívia – um fornecimento que se tornou problemático com a instabilidade política naquele país –, o Brasil terá de esperar que as enormes reservas de gás descobertas na bacia de Santos, na costa do estado de São Paulo (cerca de 400 bilhões a 500 bilhões de m³), possam ser exploradas em todo o seu potencial, o que deve acontecer apenas no final da próxima década, pelo menos, para que essa modalidade de geração se torne realmente alternativa à hidrelétrica.
De qualquer modo, mesmo que se torne auto-sustentável, a geração térmica é uma modalidade mais cara e mais poluente que a hidrelétrica. Além disso, o gás que alimenta as usinas tende a ser disputado cada vez mais intensamente por vários segmentos industriais, que o utilizam como insumo na produção.
A indústria já responde por cerca de 55% do consumo nacional de gás, e esse índice só não é maior por causa do cenário de pequena oferta e também por razões logísticas. A rede brasileira de gasodutos tem apenas 8 mil km e está concentrada nos estados do sudeste e do sul, embora haja vários projetos à espera de verbas para sair do papel ou ser concluídos, inclusive na Amazônia, onde existem alguns poços de grande valor comercial, como o de Urucu.
"Para um país como o Brasil, privilegiado em termos de recursos hídricos, seria um desperdício não gerar o grosso da energia em usinas hidrelétricas, mesmo que essa modalidade dependa, em boa parte, do regime de chuvas", diz Miracyr Marcato, diretor do Departamento de Energia Elétrica do Instituto de Engenharia (IE), sediado em São Paulo. "O sistema elétrico brasileiro é totalmente interligado por linhas de transmissão. Com uma quantidade maior de hidrelétricas espalhadas pelo país, o impacto das secas diminuiria muitíssimo, pois uma usina acabaria compensando outra."
Marcato reconhece que o fato de as reservas hídricas brasileiras estarem hoje quase todas centradas na Amazônia é uma desvantagem, não apenas porque os projetos terão de adotar cuidados extremos no tratamento ambiental – o que sai caro, e se reflete no bolso do consumidor – como também porque a distância entre a Amazônia e os grandes centros produtivos, como São Paulo, é imensa – para a energia das usinas do rio Madeira chegar ao estado, serão necessários 2 mil km de linhas de transmissão, por exemplo. "Possuímos, no entanto, capacitação técnica para construir hidrelétricas sem destruir o meio ambiente e sem elevar em demasia o preço da tarifa", afirma o diretor do IE. "O que não podemos é ficar parados esperando a chegada do racionamento. Temos de encarar esse desafio."
As resistências que o governo federal enfrentará para iniciar a construção de todas as usinas planejadas para a Amazônia, de qualquer modo, serão enormes – e devem se avolumar à medida que os leilões forem sendo promovidos e se tornar claro para a sociedade brasileira que a ocupação da Amazônia por hidrelétricas faz parte de um programa que se quer irreversível. É mais do que certo que a grita dos ecologistas – tanto brasileiros como do exterior e mesmo dentro do governo –, hoje já bastante forte, aumentará de intensidade.
O caso do Complexo Hidrelétrico do Rio Madeira é uma amostra das dificuldades que o governo terá pela frente. Tido pelos empresários em geral como um reduto de ambientalistas "chapa-branca" capitaneado pela ministra Marina Silva, do Meio Ambiente, a quem está subordinado, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), por exemplo, só concedeu a licença prévia para os dois empreendimentos em julho do ano passado, quase 15 meses depois de o relatório de impacto ambiental ter sido concluído pelo Consórcio Madeira Energia, que também acabaria por se sagrar o vencedor do leilão.
A demora deveu-se à série de questionamentos e pedidos de complementação feitos pelo Ibama. A licença acabou saindo, mas com nada menos do que 33 condicionantes, que modificaram bastante o projeto original. De fundo eminentemente tecnológico-construtivo, as condicionantes teriam tornado o projeto, segundo os técnicos do órgão, menos agressivo ao meio ambiente da região, classificado por eles como "frágil".
Mesmo assim, a decisão do Ibama não agradou nem um pouco os ecologistas. "O projeto não atende a legislação ambiental, e a licença prévia só foi concedida porque o Ibama sofreu pressões políticas", dispara Gustavo Pimentel, gerente da entidade ambientalista Amigos da Terra, que no último dia 5 de dezembro moveu uma ação judicial que solicita a suspensão do leilão, com base no questionamento da legalidade da licença ambiental. "Os estudos avaliaram uma parte muito pequena do rio, a do trecho imediatamente afetado pelas usinas, e não permitem antever os efeitos que as obras terão no ecossistema da região", explica Pimentel. O Consórcio Madeira Energia afirma que os levantamentos seguiram o que era determinado por lei.
A ação dos Amigos da Terra – aliás, apenas uma dentre as muitas movidas por entidades ambientalistas – está sendo analisada pela Justiça de Rondônia, embora tenha sido apresentada à Justiça Federal, em Brasília. Para Pimentel, essa transferência seria apenas uma das provas da existência de fortes interesses políticos a cercar as obras no rio Madeira. Por causa da mudança de competência e jurisdição, a ação não pôde ser julgada em tempo hábil para suspender o leilão, e agora só poderá exercer efeito retroativo.
A nomeação de uma nova diretoria para o Ibama poucos meses antes da realização do leilão e a criação do Instituto Chico Mendes a partir das entranhas daquele mesmo órgão – absorvendo parte de seu pessoal e de suas atribuições e "quebrando a unicidade da gestão ambiental" – seriam, na opinião de Pimentel, outras provas de que o governo começa a jogar pesado para viabilizar o programa de aproveitamento energético da Amazônia.
De fato, há alguma coisa no ar. O anúncio do Ibama, feito em janeiro, de que pretende reduzir em até 70% o tempo de tramitação dos pedidos de licenciamento ambiental inquietou ainda mais os ecologistas. O aumento na velocidade de avaliação vai se dar por meio de melhor integração das superintendências regionais do Ibama e de parcerias com universidades. Hoje, uma tramitação pode demorar anos.
Os ambientalistas duvidam que essa decisão objetive apenas permitir ao órgão ter uma atuação mais eficiente. Para a célebre organização não-governamental Greenpeace, por exemplo, o estabelecimento de uma via mais rápida de aprovação pode até responder aos anseios desenvolvimentistas do governo brasileiro, mas provavelmente deixará a desejar no atendimento dos interesses da sociedade e do meio ambiente.
À primeira vista, o projeto do Complexo do Rio Madeira parece mesmo bastante invasivo do ponto de vista ambiental. Tanto que o próprio governo reconhece que a preocupação dos ambientalistas com o futuro das regiões envolvidas nem de longe é supérflua ou fruto de algum preciosismo dogmático – até porque existem precedentes de usinas hidrelétricas construídas na Amazônia que se constituíram em autênticos desastres ambientais.
Mau exemplo
Idealizada durante o regime militar (1964-85) e inaugurada em 1989, a usina de Balbina é um caso emblemático: inundou nada menos do que 2,6 mil km² de matas nativas ao norte de Manaus, no estado do Amazonas, sacrificando milhões de árvores, e produz hoje apenas cerca de 120 MW de energia. É tida como a hidrelétrica mais ineficiente do mundo. A razão do desastre está na escolha de uma área excessivamente plana para sua instalação, na negligência em relação à possibilidade de assoreamento e na implantação de equipamentos pouco adequados às necessidades intrínsecas do projeto.
No Complexo do Madeira, prevê-se a inundação de 529 km², dos quais 271 km² para a operação da Hidrelétrica de Santo Antônio, a ser implantada a 10 km de Porto Velho, a capital de Rondônia – perigosamente perto, em se tratando de uma hidrelétrica desse porte – e 258 km² para a usina de Jirau, que ficará a cerca de 130 km da cidade. Pelo menos 3 mil pessoas serão removidas das áreas inundadas. Dois povoados – Teotônio e Mutum-Paraná – serão simplesmente eliminados do mapa.
De acordo com os ecologistas, as usinas podem, ainda, fazer desaparecer várias espécies de peixes – desequilibrando todo o ecossistema da bacia do Madeira –, influir negativamente nas rotas migratórias de outras, como a dos bagres, e prejudicar a pesca e a agricultura praticadas pelas populações ribeirinhas, devido ao acúmulo de sedimentos nas represas. O governo da Bolívia – país que faz fronteira com Rondônia – também se queixou dos possíveis impactos ambientais que a obra provocaria sobre a flora e a fauna locais.
"O segredo do sucesso técnico e ambiental de hidrelétricas como as do Madeira está no projeto, que no caso me parece bastante bom, e na capacidade dos executores de colocá-lo em prática com o máximo rigor", diz José Roberto Bernasconi, presidente do Sindicato Nacional das Empresas de Arquitetura e Engenharia Consultiva (Sinaenco). "O Brasil é um dos poucos países onde a tecnologia de construção de hidrelétricas é plenamente dominada. A obra só causará danos ambientais e sociais de monta se houver incúria ou descuido."
De fato, não por acaso, as recomendações agregadas pelo Ibama ao relatório de impacto ambiental tentam minimizar justamente os problemas apontados pelos críticos, adotando todos os cuidados imagináveis. O Consórcio Madeira Energia teve, por exemplo, de retirar do projeto original de Santo Antônio um paredão de contenção, que seria feito de concreto e impediria a passagem de detritos como galhos de árvores e pedras pelas 44 turbinas do equipamento.
No entender dos técnicos do Ibama, a ensacadeira, como é denominado tecnicamente o muro de contenção, também reteria a terra carregada pelas águas, provocando assoreamento em pontos próximos das barragens e aumentando, aos poucos, a área inundada pela hidrelétrica. Além disso, a ensacadeira acabaria interferindo na passagem de ovas e larvas de peixes rio abaixo.
Outras recomendações técnicas do Ibama já teriam sido previamente atendidas, segundo o consórcio, pela própria configuração do projeto, que é diferente dos de outras hidrelétricas implantadas no país. Na tecnologia a ser empregada no rio Madeira, a de "usinas a fio d’água", as turbinas, do tipo bulbo e de tamanho menor que as convencionais, são "deitadas" no leito do rio e as pás movidas pela própria correnteza, e não por quedas-d’água. Em vez de formarem um lago, as águas avançam apenas 500 metros em cada margem do rio durante as cheias. O gerador fica dentro do equipamento e a água passa ao redor.
De acordo com o consórcio, nessa tecnologia a velocidade das águas continua praticamente inalterada, e os riscos de assoreamento e do acúmulo de mercúrio (que é usado por mineradoras na região) são bastante reduzidos. No entanto, esse sistema implica uma óbvia perda em geração de energia quando o rio apresenta menor vazão, já que nesses períodos o volume e a força da correnteza são menores.
"As turbinas que entregaremos para a Hidrelétrica de Santo Antônio são de alta tecnologia e contemplam as exigências de preservação ambiental do entorno onde será construída a usina", diz Aloísio Vasconcelos, presidente da Alstom, multinacional de origem francesa que vai fabricar 22 turbinas em sua unidade de Taubaté, interior de São Paulo.
Há um tipo de impacto, no entanto, que nem o consórcio vencedor da Hidrelétrica de Santo Antônio nem o Ibama, com suas exigências, parecem capazes de conjurar: as transformações econômicas que a implantação de usinas já começou a provocar em Rondônia e, especificamente, na capital Porto Velho. Segundo estimativas da Federação das Indústrias do Estado de Rondônia (Fiero), Porto Velho deverá atrair cerca de R$ 2,5 bilhões por ano, entre investimentos públicos, privados e aqueles gerados pelas próprias obras, as quais, sozinhas, devem responder por mais de R$ 1 bilhão por ano ao longo dos oito anos de construção.
Por conta dessa movimentação, é esperado um enorme afluxo de migrantes para Porto Velho, algo em torno de 100 mil, para uma população atual de cerca de 400 mil habitantes. As obras deverão empregar 20 mil pessoas diretamente e criar outros 40 mil a 60 mil empregos indiretos. Esse acréscimo repentino de gente redundará em sérios problemas urbanísticos para a cidade, bastante desprovida de moradias e de saneamento básico, e que apresenta periferias para lá de inchadas. O governo federal acena com investimentos da ordem de R$ 645 milhões para habitação e saneamento em Porto Velho, dentro dos marcos do PAC, de modo a colorir um pouco esse cenário previsivelmente sombrio.
De qualquer forma, nem tudo em Porto Velho será problema. O avanço imobiliário já se faz presente. Pelo menos 30 prédios e dois shopping centers estão sendo construídos na capital, que até há pouco tempo contava, praticamente, só com construções horizontais. Estão sendo erguidos também cerca de 20 condomínios residenciais.
A oferta de empregos industriais deve igualmente aumentar. O Grupo Votorantim já comprou um terreno nas imediações da cidade para construir uma fábrica de cimento, de modo a atender a demanda das usinas. A expectativa é de que a unidade, avaliada em R$ 300 milhões, produza 1 milhão de toneladas de cimento por ano e atraia, no seu rastro, outras indústrias para Porto Velho.
Uma cidade, aliás, onde as obras do rio Madeira são mais do que bem-vindas e estão sendo consideradas pela maioria dos moradores – certa ou erradamente – antes um fator de progresso do que de destruição.
Ambientalistas têm propostas alternativas
Para muitos ambientalistas, o crescimento da demanda de energia pelo Brasil não é obra da natureza, mas fruto de uma opção político-econômica. A seu ver, o país poderia tentar alterar seu perfil produtivo, abandonando a vocação de fornecedor de bens primários e reorientando a produção para artigos de maior valor agregado e baixo consumo energético, a exemplo das nações industrialmente avançadas.
A mudança gradual do perfil produtivo do Brasil não é a única opção proposta pelos ecologistas para evitar futuros racionamentos de energia. A entidade ambientalista WWF-Brasil desenvolveu, por exemplo, um trabalho sobre repotencialização de hidrelétricas com mais de 20 anos de operação e que envolveu 67 usinas.
De acordo com a pesquisa, se apenas essas unidades fossem repotencializadas através da troca de equipamentos, o acréscimo de potência ao parque gerador brasileiro seria de 8 mil MW, a um custo de US$ 5,6 bilhões. Para obter essa mesma capacidade em usinas novas, o investimento variaria de US$ 8,1 bilhões a US$ 16,2 bilhões, dependendo da localização dos equipamentos.
A dificuldade dessas duas estratégias é que elas vão realmente contra a atual opção do governo brasileiro de alavancar as exportações de grãos e minérios – que, sem dúvida, vêm trazendo ótimos resultados para a balança de pagamentos – e, no caso específico da Amazônia, a de integrar a região num projeto não apenas energético, mas também macroeconômico, de modo a deter, até por indução, o próprio processo de desmatamento.
O Complexo do Rio Madeira, por exemplo, está inserido nos projetos da Iniciativa para a Integração da Infra-Estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA). O acordo foi firmado em 2000 pelos presidentes dos 12 países do continente para incentivar a integração física e econômica da região.
Além das duas hidrelétricas, o rio Madeira deverá receber, por exemplo, uma hidrovia que ligará a Amazônia à Bolívia e, por extensão, ao Pacífico, servindo como estratégica via de escoamento de grãos, minérios e produtos metálicos semi-acabados.
A implantação de gasodutos na região, que futuramente serviriam como entroncamentos para a distribuição de gás natural através de toda a América do Sul, faz parte desses planos.
Programa vai beneficiar eletrointensivas
O avanço das usinas hidrelétricas na Amazônia não beneficiará apenas as indústrias de transformação do centro-sul, mas também as eletrointensivas que planejam ampliar sua produção na Amazônia, com vistas principalmente à exportação. Elas estão representadas por setores produtores e transformadores de metais como alumínio, ferro-liga, aço e níquel, entre outros.
Essas indústrias consomem cerca de 8% da energia elétrica produzida no país (em sua maior parte hidrelétrica) e respondem por quase a metade do consumo industrial. Várias delas produzem a própria energia, também principalmente na modalidade hidrelétrica, e detêm, somadas, uma capacidade instalada próxima de 7 mil MW. Possuem projetos de construção de novas usinas, mas a maioria está parada nas gavetas do Ibama.
A tendência é de uma enorme ampliação do consumo de eletricidade por parte dessas empresas nos próximos sete anos, em função do crescimento de sua capacidade instalada. Até 2015, a produção de alumínio primário deverá ter uma elevação de 686 mil toneladas, a de ferro-liga aumentará em 284 mil toneladas e a siderúrgica (tida como uma eletrointensiva apenas de nível médio) em 24 mil toneladas.
Calcula-se que seriam necessárias usinas hidrelétricas com uma capacidade conjunta de 8,7 mil MW para atender apenas esse crescimento da demanda. O gasto com energia para produzir alumínio, por exemplo, equivale a 30% a 40% do custo total.
"Hoje exportamos 900 mil toneladas de alumínio e ainda abastecemos o mercado interno com uma quantidade aproximada, sendo que até 1980 o Brasil era importador desse produto", diz Aldo Albanese, coordenador da Comissão de Energia Elétrica da Associação Brasileira do Alumínio (Abal). "Vemos com muito bons olhos a construção de hidrelétricas, pois isso vai ancorar nossa expansão e trazer mais divisas para o país."
Para Albanese, são injustas as críticas que associam a instalação de novas hidrelétricas apenas às necessidades dos setores eletrointensivos. "Quem não sabe que a indústria como um todo precisa de mais energia?", questiona. "Quanto aos eventuais danos ambientais que as obras podem provocar na Amazônia, eles serão firmemente reduzidos se existir a preocupação de evitá-los. Basta fazer como a indústria do alumínio: nosso setor é, faz tempo, um dos que mais investem na preservação e na recuperação ambiental."