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Doutor em Samba


Com interpretações inovadoras e refinadas, Mario Reis levou elegância ao batuque e fez história na música brasileira
 


Mario Reis é apontado como um inovador no canto brasileiro ao “emprestar a ele uma bossa que ainda não existia”, afirma o jornalista e escritor Ruy Castro. A novidade foi, na década de 1920, também uma ousadia: no lugar do vozeirão impostado, interpretações mais contidas, naturais, quase faladas, e que rompiam com os paradigmas criados, na época, por cantores como Vicente Celestino e Francisco Alves. Até mais importante que isso, porém, foi sua capacidade de aliar, de forma até então inédita, duas faces tão distintas quanto características do Rio de Janeiro do início do século 20: o “refinamento” europeizado e branco da alta sociedade burguesa e a pujança do samba negro nascido e criado nos morros cariocas. Mistura que deu origem, muitos anos depois, à bossa nova. De uma maneira ou outra o intérprete ajudou a emprestar ao samba uma condição social até então negada ao ritmo – vale lembrar que a polícia constantemente era chamada a dispersar grupo de sambistas, cujas canções estimulavam passos tidos como excessivamente sensuais. Herdeiro milionário, Reis é dos primeiros de sua classe a legitimar o gênero criado por negros na periferia pobre do Rio.


Mario da Silveira Meirelles Reis foi um legítimo representante da aristocracia carioca. Nascido em 31 de dezembro de 1907, foi o segundo filho do comerciante Raul Meirelles Reis e de Alice da Silveira Reis, irmã de Guilherme da Silveira, presidente da Fábrica Bangu de Tecidos, um dos destaques da indústria brasileira nos anos de 1920.


Com ótima condição financeira, teve vida confortável na infância e na adolescência, conciliando os estudos com a prática de esportes. Em 1924, iniciou os estudos de música, com o violonista popular Carlos Lentini.


Olha o breque

A morte do pai em um acidente de trem, em 1925, mudou a vida do futuro artista, então com 17 anos. Ele e o irmão mais velho, João, foram informalmente adotados pela família da mãe. O tio, Guilherme da Silveira, foi uma espécie de novo pai para o jovem órfão. Em 1926, influenciado pelo tio, Mario ingressou na Faculdade de Direito do Distrito Federal, mas continuou estudando violão. Foi o jornalista Brício de Abreu quem aconselhou o jovem a procurar um novo professor, já que Lentini não poderia mais desempenhar a função devido a outros compromissos profissionais. Sugeriu Sinhô, um dos pioneiros do samba carioca. “Sinhô ficou fascinado com as habilidades vocais do Mario”, contou Brício em uma entrevista ao Jornal da Tarde, em 1971. O letrista Carlos Rennó também garante que o que mais chamou a atenção de Sinhô em Reis foi a forma de interpretar. “Com ritmo, malícia e maleabilidade – a adequação era perfeita”, diz Rennó.


Apadrinhado por Sinhô, Mario Reis revolucionou a música brasileira ao fazer interpretações de um jeito distinto do tom impostado e solene adotado pelos cantores de samba. “O que o diferenciava de seus contemporâneos era sua maneira intimista, sua voz suave, sem o vibrato típico dos artistas de sua época”, afirma o pesquisador musical Luiz Américo. “Ele fundou um novo estilo, com uma emissão vocal reduzida e a capacidade de falar a letra dentro da melodia.” Segundo o historiador e professor de música Evandro Pichirilli, a interação que Reis promovia entre a divisão das sílabas e a rítmica do samba – resultando no famoso “breque” – era outro ponto importante em sua inovadora forma de interpretação.


A tecnologia também contribuiu para que Reis fizesse tanto sucesso. O surgimento do sistema elétrico de gravações no Brasil, em 1927, trouxe uma grande novidade: o uso do microfone. “No início dos anos de 1920, os discos eram registrados por meio do autofone, um gramofone ao contrário”, explica o cantor e compositor Carlos Navas, idealizador do show Ases do Samba – baseado em show homônimo realizado em 1931  – em tributo a Mario e a Francisco Alves (veja boxe Parceria inesquecível). “Nesse processo, os cantores precisavam ter uma emissão de voz potente para pressionar a cera que registrava os sons”, diz. “Com o novo modelo, a voz era captada de maneira mais sensível, possibilitando que o timbre fosse ouvido claramente, e o volume, dosado, propiciando maior variedade à interpretação. Mario foi quem melhor se adaptou a esse formato e, por isso, é considerado o primeiro artista ‘microfônico’ da canção brasileira.”

 

 

Começo, meio e fim

O primeiro disco de Mario Reis foi lançado em agosto de 1928, tendo Sinhô como seu grande padrinho. Apresentou o novato à gravadora Odeon, forneceu as duas músicas do compacto De Que Vale a Nota sem o Carinho da Mulher? e Carinhos de Vovô, e ainda deu a canja ao violão. A “bolachinha” vendeu bem. Surgia, então, um novo talento: “O simpático amador canta a primeira peça de modo muito original, dando-lhe interpretação digna de nota”, escreveu o crítico Cruz Cordeiro na revista Phono-Arte de 30 de agosto daquele ano. O cantor continuou gravando músicas de Sinhô nos álbuns seguintes. Duas delas, Jura e Gosto Que Me Enrosco, ambas de 1928, renderam-lhe grande êxito. “O disco bateu recordes de vendagem”, conta Rennó. “Mario passava a disputar com Francisco Alves e Vicente Celestino a liderança entre os ídolos populares do cenário musical.” O sucesso de suas canções fez com que ele abraçasse a carreira artística, mesmo após a formatura em direito, em 1930. Não deu outra: ganhou o apelido de doutor do samba.


Ainda no ano em que concluiu a faculdade, Mario começou a gravar duetos com o próprio Francisco Alves, um dos grandes representantes do chamado bel-canto (leia-se, o famoso vozeirão). A parceria foi um acontecimento para a música nacional. “Até 1933, os dois gravaram juntos, em duetos históricos”, explica Rennó. “Foram 12 discos que tiveram papel importante no processo de cristalização do samba moderno – nascido no Estácio e posterior ao feito por Sinhô, falecido em 1930.” Entre as canções que lançaram, e que se tornaram hits, aparecem Marchinha do Amor (1932), composta por Lamartine Babo, e Fita Amarela (1933), de Noel Rosa. De tão bem-sucedidas, as gravações levaram à criação do show Ases do Samba, versão original de 1931, apresentado com sucesso em excursões por todo o Brasil, chegando à Argentina. A turnê era estelar: participaram dela Noel Rosa e Carmem Miranda – com quem Mario Reis fez par romântico no filme Estudantes, de 1935, um dos três em que atuou. Ainda nesse período, foi contratado pela Rádio Mayrink Veiga, na qual ficou conhecido como bacharel do samba. Em 1936, Cadê Mimi foi o único sucesso em sete discos lançados por ele.


Chegava ao fim a carreira de músico. “Foi aí [no mesmo ano de 1936] que Reis optou por deixar de lado a música. Ele dizia que achava que já tinha feito tudo o que podia”, diz Carlos Rennó na biografia presente no site oficial do cantor (www2.uol.com.br/marioreis).



O adeus

Depois de pendurar as chuteiras, Mario foi convidado pela primeira-dama, Darcy Vargas – de quem tinha se aproximado por conta do cargo de oficial de gabinete na prefeitura do Rio de Janeiro, uma de suas ocupações fora dos negócios da família –, a participar do musical, produzido por ela, Joujoux e Balangandans, realizado no Teatro Municipal carioca em 1939. Em plena ditadura do Estado Novo, o intérprete não viu clima político para recusar à convocatória. Um segundo retorno foi ensaiado no início dos anos de 1950, quando lançou um álbum pela gravadora Continental com seis músicas, Jura, Sabiá, Fala Meu Louro, Gosto Que Me Enrosco, Ora Vejam Só e A Favela Vai Abaixo. Para o Carnaval de 1952, Mario Reis gravou Flor Tropical, de Ary Barroso, e Saudade do Samba, de Paulo Soledade e Fernando Lobo, pela mesma gravadora.


Após mais um hiato de dez anos, voltou pela terceira vez, em 1961, agora pela Odeon, que lançou o LP Mario Reis Canta Suas Criações em Hi-Fi. O último disco, no entanto, foi em 1971 e levou seu nome. No repertório, além dos compositores que sempre gravou (Sinhô, Noel Rosa, Lamartine Babo, entre outros), está uma música criada especialmente para ele por um fã muito especial: Chico Buarque, que deu ao ídolo outro clássico, A Banda. Ainda no mesmo ano, uma canção a ser lançada em um compacto, Bolsa de Amores, também de Chico, foi censurada. No seu lugar, Mario fez questão de deixar uma faixa em branco. “Recuso-me a colocar outra em seu lugar”, afirmou o cantor numa entrevista ao Jornal do Brasil na ocasião. Para lançar o LP, Mario quebrou o jejum de quatro décadas longe dos palcos, apresentando-se em três dias (2 a 4 de setembro de 1971) no hotel Copacabana Palace, onde morava sozinho desde 1957. Segundo registra o site Dicionário Cravo Albin de Música Popular Brasileira (www.dicionariompb.com.br), o show teve “casa lotada, tendo sido aplaudido de pé por mais de dez minutos”. Ao mundo, o cantor carioca disse adeus em 5 de outubro de 1981, por complicações surgidas em decorrência de um aneurisma.


Os estudiosos identificam Mario Reis como um dos fundadores do moderno canto brasileiro, com originalidade e criatividade. Ele seria uma ponte entre Noel Rosa, que na década de 1920 gravou seus próprios sambas com uma voz pequena, porém afinada e característica, e João Gilberto, que no final da década de 1950 irrompeu no cenário com Chega de Saudade, marco inaugural da Bossa Nova, com uma interpretação até considerada revolucionária.



Parceria Inesquecível

Cantores homenageiam trabalho conjunto de Mario Reis e Francisco Alves
 
Mario Reis e Francisco Alves foram parceiros entre 1930 e 1933. Apesar da curta duração, a dobradinha causou impacto na música popular brasileira, não apenas porque reunia dois dos principais artistas da época. “Chamou a atenção, principalmente, por juntar escolas muito diferentes de canto”, explica o cantor e compositor Carlos Navas, em alusão à interpretação cool e sossegada do primeiro, em oposição ao vocal impostado e quase operístico do segundo.

No intuito de recriar essa atmosfera, ele convidou Eduardo Dussek, Marcos Sacramento e Zé Luiz Mazziotti para protagonizarem o show Ases do Samba, realizado no dia 31 de outubro no Sesc Pompéia. O segundo trabalho do compositor em tributo ao doutor em samba, como era chamado Reis, tem o nome “emprestado” de um espetáculo realizado em 1931, em decorrência do sucesso da parceria entre Mario Reis e Francisco Alves. No ano passado, Navas lançou o CD Quando o Samba Acabou, no qual canta músicas imortalizadas na voz do mestre. “Fiz dois shows dessa turnê [do CD de 2007] em unidades do Sesc, mas queria fazer um tributo maior ao Mario. Achei que ficaria melhor se o juntasse ao Francisco Alves, que tem igual importância”, afirma. Os outros três cantores de Ases do Samba foram escolhidos em razão das afinidades entre suas propostas artísticas. “Os três possuem grande versatilidade e também reverenciam, assim como eu, Mario Reis e Chico Alves”, explica Navas. No espetáculo, ele e seus companheiros apresentaram-se em números individuais, duos e quartetos, interpretando músicas que entraram para a história da MPB na voz dos homenageados. Estavam lá Sabiá e Jura (ambas de 1928), de Sinhô; Voltei a Cantar (1939) e Linda Morena (1933), de Lamartine Babo; Quando o Samba Acabou, de Noel Rosa (1933); e A Banda (1971), de Chico Buarque. O show teve direção musical do pianista Hanilton Messias, que também faz parte da banda que acompanha os cantores, com Douglas Alonso (percussão), Evandro Gracelli (violão) e Beto Sporleder (sopros).