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Ovinocultura: um mercado em expansão

Rebanho brasileiro de ovinos cresce, mas está longe dos concorrentes mundiais

MIGUEL NÍTOLO

As projeções eram de 17, 19 e até 20 milhões de cabeças, mas o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgado semanas atrás, jogou um balde de água fria sobre os cálculos mais otimistas referentes à expansão da ovinocultura no Brasil. O rebanho brasileiro de ovinos é, segundo o recenseamento oficial (ano base: 2006), de 13,8 milhões de animais, um resultado que distancia o país ainda mais dos grandes criadores mundiais. É claro que brotaram vozes discordantes, notadamente de pessoas que labutam há anos no ramo e que aguardavam números mais encorpados, mas os dados estão na mesa e é com eles que os inconformados terão de trabalhar a partir de agora. Quanto a outros aspectos, confirmou-se o que já se sabia: o nordeste concentra o maior rebanho (só a Bahia reúne 2,66 milhões de animais), o Rio Grande do Sul continua forte no ramo (3,3 milhões de cabeças) e São Paulo vai avançando paulatinamente, com um plantel constituído de quase 500 mil ovinos. A aparente decepção com o total divulgado pelo IBGE, segundo os responsáveis pela ovinocultura brasileira, não muda em nada a firme decisão dos criadores de conduzir o país aos primeiros lugares na classificação mundial do setor. E de continuar mirando, mesmo que a longo prazo, a formação de um plantel de 100 milhões de animais.

Os especialistas em ovinos informam que a Austrália e a China detêm os maiores rebanhos do mundo, seguidos por Índia, Nova Zelândia, África do Sul e Reino Unido, e que o Brasil corre atrás na expectativa de elevar sua participação e assim poder dar conta da crescente demanda interna pela carne de cordeiro (animais de até 120 dias com peso vivo ao redor de 35 quilos). "A ovinocultura talvez seja um dos segmentos que mais avançam no país, do Oiapoque ao Chuí", afirma Paulo Afonso Schwab, presidente da Associação Brasileira de Criadores de Ovinos (Arco), entidade estabelecida em Bagé, no Rio Grande do Sul. Ele lembra que o Brasil tem hoje uma multiplicidade de grupos de ovinos que variam de acordo com as regiões, despontando, dentre eles, as raças border, corriedale, île-de-france, morada-nova, santa-inês, suffolk e texel.

A seriedade com que a ovinocultura tem sido tratada no Brasil pode ser medida pelo afinco com que a Arco trabalha para levar adiante o registro genealógico dos animais com o objetivo de melhorar o padrão racial do rebanho e, assim, permitir ao setor saltos de qualidade. A entidade opera nacionalmente por meio de uma centena de inspetores técnicos, incluindo agrônomos, veterinários e zootecnistas, profissionais que se empenham no aperfeiçoamento genético do ovino brasileiro, seguindo os passos já tomados por outros segmentos do agronegócio.

Genética

"A ovinocultura precisa trabalhar intensamente com vistas a implementar um programa de melhoramento genético, a exemplo do que já fizeram a Associação Brasileira dos Criadores de Zebu (ABCZ) e a Associação Nacional de Criadores Herd-Book Collares, com o Programa de Melhoramento de Bovinos de Carne (Promebo)", comentou em novembro passado Luiz Felipe Reimann, chefe da Divisão de Fiscalização do Serviço de Registro Genealógico do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, durante o Encontro Nacional dos Inspetores Técnicos, promovido pela Arco no município paulista de Avaré. "Estou falando de uma medida importante que objetiva a uniformização de rebanhos. Seria meio caminho andado para a formatação de uma cadeia produtiva unida, no tocante à lã, à carne e à pele", salientou Reimann. O Brasil tem-se socorrido da importação para atender a suas necessidades, incluindo ainda, além daqueles três itens (especialmente a lã mais fina), também os produtos derivados do leite de ovelha, um consumo que anda muito à frente da capacidade de fornecimento pelo mercado interno.

Especula-se que 60% da carne de ovino consumida no Brasil venha de fora, notadamente do Uruguai. "Ou seja, temos uma longa estrada pela frente", comenta Schwab, acentuando que o consumo per capita no país é de apenas 800 gramas ao ano, algo irrisório ante os números tornados públicos por outras nações (42,2 kg na Nova Zelândia e 20,2 kg na Austrália). Embora a carne de cordeiro seja ainda desconhecida de boa parte da população brasileira, o consumo vem aumentando gradativamente. "Desde 1998, ela começou a ganhar adeptos no país", diz Robson Leite, da Agrosavana, empresa com foco na ovinocultura, especializada na comercialização de carne e pele. Ele esclarece que no começo havia demanda apenas por parte de restaurantes e hotéis, depois cantinas, churrascarias e bares, mas agora a carne de ovinos já começa a fazer parte da mesa da família brasileira.

"Pessoalmente, acredito que a atividade esteja num período de grande expansão", afirma Solange Pellicci, da empresa Ovobom e criadora de ovelhas em São Manuel, no interior de São Paulo. "Há alguns anos, poucas pessoas conheciam a carne de ovino e raros eram os estabelecimentos comerciais que tinham o produto para oferecer a seus clientes. Hoje, a realidade é bem diferente." Dona de um rebanho composto de 800 matrizes da raça île-de-france e com um negócio que inclui o abate de cordeiros próprios e de terceiros, Solange lastima a falta de entrosamento maior entre os elos que compõem a ovinocultura, talvez o maior dos obstáculos que ainda não foram transpostos.

"O grande empecilho à ovinocultura diz respeito à falta de organização da cadeia produtiva", assevera Eneas Reis Leite, pesquisador da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Caprinos. O setor cobra uma presença maior dos frigoríficos no negócio, mas, observa ele, isso é uma falácia. "Mais de 20 dessas plantas foram construídas no nordeste e outras tantas estão sendo erguidas nas demais regiões. Infelizmente, os agroindustriais ainda não atentaram para a necessidade de participar do processo de organização da produção, estabelecendo contratos com cotas de entrega etc. Esse fator, aliado aos tributos que comprimem as margens de lucro, estimula o abate clandestino e o baixo consumo. É necessária uma conscientização de todas as partes envolvidas para que a informalidade seja restringida."

Círculo vicioso

A lacuna mencionada por Eneas Leite também é apontada por Raimundo Lôbo, pesquisador da área de genética e melhoramento animal da Embrapa Caprinos. Ele afirma, no entanto, que há, sim, interesse dos frigoríficos na comercialização da carne de ovinos. O que não há, diz, é produção em escala e regularidade da oferta. "O consumo não é tão baixo, pois se fosse assim não estaríamos importando tanta carne. Apenas no primeiro semestre de 2007, o setor acusou um déficit de US$ 17,898 milhões na balança comercial." Lôbo salienta também que o mercado de "genética" – venda de reprodutores, sêmen etc. – é absurdamente alto e não pode ser suportado pela produção atual de carne. "Isso cria um círculo vicioso. A seleção dos animais não atende as demandas dos produtores e consumidores. E, assim, continuamos na mesma, com toda a desorganização." O técnico da Embrapa diz que, como afirma Eneas Leite, o abate clandestino é uma questão séria que precisa ser resolvida e que a solução passa pela criação de incentivos, a fim de oficializar a atividade. É corrente entre as pessoas envolvidas que o "frigomato" (nome dado aos abatedouros que atuam na clandestinidade), que não está sujeito a nenhum tipo de fiscalização sanitária, representa parcela considerável da produção nacional de carne de ovinos. "Não é a exclusão desses agentes que resolverá o problema, mas, sim, sua inclusão no mercado formal", raciocina Lôbo.

A verdade é que a implantação de empresas legalmente constituídas e dedicadas ao abate e à comercialização de carne de ovinos se espalha pouco a pouco pelo país. Um bom exemplo disso é dado pelo Cordeiro Brasileiro, um projeto que envolve 62 municípios num raio de 200 quilômetros ao redor de Presidente Prudente, na região oeste do estado de São Paulo, e que inclui um frigorífico com capacidade para abater até 400 cordeiros por dia e uma central de produção. "Começamos em outubro de 2004, por meio de parcerias com universidades, e envolvemos muitos técnicos de diversas áreas do agronegócio para tirar o projeto do papel. E, em 18 de abril de 2005, fizemos o primeiro abate", conta Oswaldo Athia Filho, titular do empreendimento. "Tudo foi feito com recursos próprios", adianta, informando que, de lá para cá, o Cordeiro Brasileiro vem ganhando maior volume. "Ampliamos o frigorífico, triplicamos nossa capacidade de resfriamento e estamos prestes a inaugurar uma indústria de conservas que chegará ao mercado por meio da oferta de hambúrgueres, espetinhos, caftas, almôndegas, embutidos e pratos prontos", revela o empresário, esclarecendo que o número de abates cresceu 500% em 2007. Na realidade, essa expansão podia ter sido bem maior, segundo Athia. "Não temos oferta suficiente de ovinos. Tanto que estamos encontrando dificuldades para conseguir um número de animais que acompanhe nossa demanda de vendas. Gostaríamos de nos abastecer somente com fornecedores do estado de São Paulo, mas somos obrigados a trazer animais de Mato Grosso do Sul, do Paraná e do Rio Grande do Sul", comenta o fundador do Cordeiro Brasileiro.

A par da incapacidade de suprir as necessidades de abate, São Paulo é o maior consumidor de carne de cordeiro do país. E é também um estado onde o setor tem encontrado terra fértil para crescer. O presidente da Associação Paulista de Criadores de Ovinos (Aspaco), Arnaldo dos Santos Vieira Filho, conta que somam 11 mil os estabelecimentos paulistas dedicados à criação de ovinos e que, graças ao avanço acelerado do setor em território paulista, a entidade que dirige opera por meio de 16 núcleos regionais. "São Paulo, assim como outros estados, passou a enxergar a ovinocultura de corte como negócio apenas de uns dez anos para cá. Foi quando os animais de elite começaram a ganhar terreno e a ser valorizados", explica Vieira Filho, que também preside a Câmara Setorial de Caprinos e Ovinos do Estado de São Paulo e cria ovelhas em Araçatuba (300 cabeças das raças suffolk e dorper). Não há números conclusivos, mas apenas palpites sobre a demanda de carne de cordeiro pelos paulistas. Acredita-se que esse consumo seja de 500 toneladas por mês, mas que o estado responda por apenas 30% disso. O que falta, em torno de 350 toneladas a cada 30 dias, é suprido pelo Mercosul. "Isso sem mencionar que há uma demanda reprimida", observa o presidente da Aspaco. Por essa razão, ele afirma, é crescente o interesse manifestado pela ovinocultura no país.

Vieira Filho comenta que o setor amadureceu e está decolando, em contraste com o que ocorreu em anos recentes, quando curiosos investiram na criação de ovinos e acabaram por transformar a atividade num negócio sem sustentação. "Houve uma euforia muito grande em 2004 e 2005, mas tudo passou. Posso dizer que apenas os profissionais estão ficando no ramo, aqueles criadores afeitos de fato às coisas da ovinocultura", ele informa. Robson Leite, da Agrosavana, por sua vez, ressalva que, para ganhar com a ovinocultura, "temos de pensar grande, mas, infelizmente, em São Paulo trabalha-se com pequenos plantéis, em áreas modestas". Ele argumenta que os frigoríficos encontram dificuldades para reunir esses produtores, a fim de estimular a formação de rebanhos com 4 mil ou até 5 mil cabeças, organizar estações de monta e, assim, "alcançar um volume logístico viável, ou seja, a produção e o transporte de uma quantidade de cordeiros compatível com as necessidades do mercado".

Modismos

O zootecnista João Ricardo Alves Pereira, professor adjunto da Universidade Estadual de Ponta Grossa, no Paraná, e consultor técnico em nutrição de ruminantes, pensa de modo diferente. "Acredito que deveríamos focar nossos esforços mais no aumento da eficiência do que, propriamente, no incremento do rebanho – até porque o segundo é conseqüência do primeiro. E nossos ganhos poderiam ser superiores e oferecer maior solidez", assevera. Ele afirma que a ovinocultura, finalmente, está sendo valorizada de maneira técnica e muito profissional. "Devemos aproveitar o momento para que os novos investimentos se dêem de forma consistente, evitando que ‘modismos’ ou a ‘expectativa de grandes lucros’ frustrem potenciais investidores e a própria atividade." Pereira destaca que a ovinocultura deve ser encarada como um negócio como outro qualquer, pois tem riscos e rentabilidade proporcional aos investimentos. "O produtor brasileiro vai ter que mudar muito. Sem organização, o rebanho vai continuar do tamanho que está, simplesmente porque a moda vai passar – e olha que eu sou o maior entusiasta da ovinocultura, pois há 16 anos, quando comecei a estudar o assunto, era considerado um louco pelos colegas de faculdade", diz Octávio Rossi de Morais, veterinário e doutor em zootecnia/melhoramento genético animal pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Morais afirma que "a cadeia produtiva da ovinocultura precisa ser organizada a partir dos produtores, por iniciativa deles próprios. Isso não vai acontecer de modo automático; se observarmos o que sucede no nordeste ou no sul, onde a ovinocultura é tradicional, veremos que não é o que ocorre". Morais, que é pesquisador da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Pecuária do Estado de Minas Gerais (Epamig), presidente da Comissão Técnica de Caprinos e Ovinos da Federação da Agricultura e Pecuária do Estado de Minas Gerais e criador de ovelhas leiteiras, afirma que o mercado é ávido pelos diversos produtos da ovinocultura, mas, frisa, "não há mais espaço para o amadorismo". Ele comenta que o mercado internacional paga menos que o interno devido à competitividade dos países produtores. "Qualquer um que tenha a oportunidade de conhecer a ovinocultura em nações onde ela é desenvolvida vai se deparar com a organização dos produtores. O restante da cadeia já existe e se estrutura a partir do momento em que a produção permite e estimula seu desenvolvimento. Com a falta de organização temos um círculo vicioso que bate sempre na mesma tecla: a clandestinidade", observa ele.

Seja como for, o fato é que – mesmo que a duras penas – o setor está se impondo e aumentando sua presença. "O Brasil tem muito potencial na área, basta saber explorá-lo de maneira eficiente", garante Décio Ribeiro dos Santos, diretor da Agrocentro, empresa que realiza anualmente a Feira Internacional de Caprinos e Ovinos (Feinco), em São Paulo, uma das mais destacadas do gênero e prova incontestável da importância assumida pela ovinocultura no país. "Temos mercado consumidor, espaço, matéria-prima abundante e melhores custos de produção comparados a outros países. Se houver investimento, organização e incentivos públicos o sucesso será garantido", assevera ele. A quarta edição da feira, realizada no período de 13 a 17 de março do ano passado, registrou números recordes "e revelou definitivamente a vocação do estado de São Paulo como pólo produtor de caprinos e ovinos", segundo Francisco Pastor, diretor da Feinco. Ele conta que cerca de 30 mil pessoas marcaram presença e que 150 expositores e 200 criadores, reunidos em uma área de aproximadamente 22 mil m2, fizeram a exibição de 3,5 mil animais de 20 diferentes raças. "Se o estado desse um apoio mais efetivo ao setor, ele cresceria mais rapidamente", raciocina Pastor.

Isso, porém, não é tudo. "Ainda enfrentamos problemas relacionados com a falta de informação, que impede um crescimento mais sustentado da atividade, mas o cenário vem mudando com a entrada em ação de algumas entidades de extensão rural, tais como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (Senar)", acentua Antonio Augusto Coutinho, gestor de Negócios Eqüídeos e Pequenos Ruminantes da Tortuga Cia. Zootécnica Agrária, fabricante de produtos de nutrição e saúde animal. Há mesmo quem enxergue na extensão rural – aquela que faz a ponte entre a pesquisa agropecuária e o produtor rural – o combustível que poderá levar a criação de ovelhas às alturas. Esse é o raciocínio do engenheiro agrônomo Edson Ramos de Siqueira, professor da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Botucatu. "Não adianta o país dispor de pesquisas avançadas na área se a extensão rural não caminhar no mesmo passo". De fato, é sabido, apenas a harmonização e a conseqüente aplicação em conjunto de três princípios básicos – ensino, pesquisa e extensão – têm a capacidade de melhorar o negócio agropecuário. O Brasil já provou isso, assim como basicamente todas as nações altamente desenvolvidas, e o incremento de nossas exportações de grãos e suco de laranja, por exemplo, não deixa dúvidas quanto às virtudes dessa estratégia. Basta, no entender do professor, que esse tripé também seja observado pelo setor. Siqueira alerta, no entanto, que isso requer, necessariamente, a participação da família ruralista e dos líderes da comunidade e o apoio das autoridades locais. Como diz ele, "já é passada a hora de a ovinocultura ser inserida nas estatísticas do agronegócio". 

 

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