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Uma luz para a cidade

Projeto tenta recuperar área mais deteriorada do centro de São Paulo

HENRIQUE OSTRONOFF


Rua Santa Ifigênia / Foto: Paulo Mariano

Está em andamento em São Paulo um plano urbanístico ousado. O Projeto Nova Luz, concebido e administrado pela prefeitura, pretende transformar radicalmente uma região cuja fama se deve tanto aos valiosos bens do patrimônio histórico e cultural que abriga como a seu estado de degradação, que a fez tornar-se conhecida pelo triste apelido de Cracolândia.

Apenas um trecho do bairro da Luz recebe na verdade essa designação. O termo vem de crack, um derivado da coca mais barato que ela e com grande poder viciante. O local passou a ser chamado desse modo devido à presença constante de traficantes e consumidores da droga. Alguns advertem que o apelido é pejorativo, marca negativamente a região e generaliza, já que obviamente nem todo mundo que mora ali ou freqüenta o lugar é usuário de crack. No entanto, quem já passou por lá e viu adultos e crianças jogados nas calçadas enrolados em cobertores imundos, ou zanzando pelas ruas vestindo andrajos, compreende logo por que o nome se popularizou.

A área, cuja degradação se deu ao longo de décadas de abandono por parte do poder público, não ficou tristemente famosa, no entanto, apenas em função da droga. Pequenos hotéis com quartos minúsculos, sujos e abafados, freqüentados por consumidores de sexo barato, também contribuíram para essa condição. A baixa prostituição sempre foi uma de suas marcas. E por isso, durante muito tempo, a região foi conhecida por outro apelido não menos difundido – Boca do Lixo.

A Boca do Lixo já abrigou também um centro de produção cinematográfica. Essa versão empobrecida de Hollywood ficou célebre principalmente nos anos 1970, com as pornochanchadas, filmes de baixo orçamento que exploravam um erotismo escrachado, permitido pela censura antes da popularização do cinema pornô.

Essa parte do centro de São Paulo foi durante muito tempo a principal porta da cidade para os que chegavam e partiam, a princípio de trem e posteriormente de ônibus. A Estação da Luz, inaugurada no final do século 19, fazia parte da São Paulo Railway, a primeira estrada de ferro construída no estado de São Paulo, que ligava o interior ao porto de Santos, transportando café e passageiros. Até hoje partem dali trens com destino a estações de subúrbio e localidades da Grande São Paulo, mas as viagens de longa distância por essa linha terminaram em 1997. A Estação Júlio Prestes, da antiga Estrada de Ferro Sorocabana, desde o final dos anos 1930 serviu a um grande contingente de pessoas que viajavam entre a capital e o interior do estado, mas em 1999 passou a operar apenas vagões de carga e trens de subúrbio. Também a principal estação rodoviária da cidade funcionou até 1982 nas imediações – em frente à Estação Júlio Prestes. Enquanto isso, o sistema de circulação viária, baseado na construção de grandes avenidas construídas a partir dos anos 1960, isolou a Luz, transformando-a em um mero ponto de articulação de transportes.

Esse pólo de estações provocava – e em parte ainda é assim – um intenso vaivém de pessoas na região. O comércio de artigos baratos se expandiu, pequenos hotéis foram erguidos, assim como restaurantes e bares populares e outros serviços para atender os passantes. Com o correr do tempo houve queda no preço dos imóveis e terrenos, seguida do abandono por parte do poder público. Conseqüentemente, surgiram inúmeros cortiços – instalados nos antigos sobrados –, que também deram cara ao lugar.

Lugar antigo

É certo também que a Luz nem sempre foi assim. O bairro passou por diversas fases e já teve sua época áurea. De acordo com Eudes Campos, em artigo publicado no Informativo Arquivo Histórico Municipal, do Departamento do Patrimônio Histórico de São Paulo, as primeiras notícias a respeito da região datam dos anos 1500, quando era conhecida por Guaré ou Guarepe. "Ainda no século 16, uma pequena ermida foi construída à beira da trilha indígena que seguia em direção ao norte. Como sua invocação era de Nossa Senhora da Luz, essa denominação acabou estendida a toda a circunvizinhança", explica Campos.

"Situado no norte da cidade e limitando-se a leste com o rio Tamanduateí e ao norte com o Tietê, no século 19 o bairro da Luz mantinha-se com uma acentuada configuração semi-rural", afirma Campos. O local já contava com alguns equipamentos significativos, como o Recolhimento da Luz, de 1773, o Jardim Público, a Casa de Correção, o Seminário Episcopal, todos erguidos durante o século 19 na estrada que levava ao sul de Minas, a atual Avenida Tiradentes. Na época, a área era considerada adequada à expansão urbana da cidade, pois ficava perto da Cidade Nova, no morro do Chá.

O desenvolvimento da região, no entanto, viria apenas com a construção da ferrovia de Santos a Jundiaí, entre 1860 e 1867. A proximidade da estação de trem e das sedes de governo funcionou "como um significativo fator de atração, fazendo com que os fazendeiros do interior cogitassem em manter uma residência na Luz", afirma Campos.

Ergueram-se então as primeiras obras residenciais importantes, como a do conselheiro Fidélis Nepomuceno Prates, terminada em 1860, na atual Avenida Tiradentes. Mas foi somente depois que Antônio Pais de Barros, o barão de Piracicaba, um dos maiores fazendeiros de café, mudou-se para lá por volta de 1870 que a região começou a ser ocupada por outras importantes famílias do interior.

Com a ampliação do prédio da Estação da Luz, no final do século 19, aumentou a circulação de pessoas pelo local. Ao mesmo tempo, os abastados da época começaram a buscar locais mais distantes do centro para erguer suas mansões, como o bairro de Higienópolis e a região da Avenida Paulista. Já durante a primeira metade do século 20, afirma o artigo de Campos, a Avenida Tiradentes começa a alterar sua vocação, com a implantação de pequenas fábricas e a intensificação do transporte motorizado. A partir dessas mudanças graduais, os moradores ricos foram abandonando o lugar, dando início ao processo de deterioração.

Recuperação

O bairro começou a chamar a atenção e a mobilizar o poder público com o programa Luz Cultural, desenvolvido em 1984 pela Secretaria de Estado da Cultura com o objetivo de tornar a área um pólo turístico. Foi somente com o projeto Pólo Luz, realizado pelos governos estadual e federal, no entanto, que a restauração de equipamentos culturais ganhou impulso. Em 1997, a Pinacoteca do Estado passou por uma grande reforma. Dois anos depois, era inaugurada a Sala São Paulo, um moderno teatro de concertos instalado na antiga Estação Júlio Prestes e que exigiu cerca de R$ 45 milhões de investimento. Entre 2004 e 2006, foi a vez da Estação da Luz. Seu prédio restaurado recebeu o Museu da Língua Portuguesa a um custo, compartilhado com a iniciativa privada, de cerca de R$ 40 milhões.

Em 2002, os governos municipal e estadual já haviam assinado convênio para receber recursos do Programa Monumenta, do Ministério da Cultura, que conta com financiamento do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e cujo objetivo é promover a recuperação do patrimônio histórico em todo o país. O bairro da Luz foi escolhido como um dos locais a receber os benefícios. Em outubro de 2007, foram terminadas as obras no Mosteiro da Imaculada Conceição da Luz. E outras ações estão previstas para a região, como a restauração do Edifício Ramos de Azevedo.

A Cracolândia, contígua aos monumentos do patrimônio histórico, não poderia continuar na situação em que estava. Milhões de reais haviam sido gastos nos edifícios históricos, museus e teatros para torná-los atraentes. Era preciso, então, promover um acesso mais seguro e agradável aos visitantes.

O Projeto Nova Luz, lançado pela prefeitura em setembro de 2005, durante a gestão do então prefeito e atual governador José Serra, está intervindo na região de forma drástica. Numa área de 269 mil metros quadrados, dentro do perímetro formado pela Rua Santa Ifigênia, Avenida Duque de Caxias, Rua Mauá, Avenida Cásper Líbero e Largo de Santa Ifigênia, quadras inteiras estão sendo desapropriadas, com a demolição de inúmeros imóveis e a instalação de equipamentos urbanos com o objetivo de alterar totalmente o perfil urbano do local.

Paralelamente, desde 2005 foram realizadas dez megaoperações de fiscalização na região. Segundo o balanço da subprefeitura da Sé, durante as 500 vistorias em estabelecimentos, houve "212 fechamentos [alguns locais podem ter sido fechados mais de uma vez]; 21.450 pessoas abordadas pelas polícias civil e militar e cerca de 130 fugitivos recapturados". Na última operação, que durou um mês, "84 crianças foram encaminhadas ao Centro de Referência da Criança e do Adolescente (Creca), 4 mil adultos foram levados a albergues e 117 receberam atendimento médico".

A prefeitura está investindo também para se instalar na área, por meio da construção da sede da subprefeitura da Sé ou de alguma secretaria municipal, e da Empresa de Tecnologia da Informação e Comunicação do Município (Prodam), além da reforma de um prédio desapropriado que abrigará a Guarda Civil Metropolitana.

Outras instâncias governamentais darão também sua contribuição ao projeto. Com recursos provenientes do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC), de iniciativa federal, a empresa estadual de habitação – Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU) – deve construir, até o final de 2008, dois prédios com 170 apartamentos de 50 m2, no modelo de habitação de interesse social (HIS), para pessoas com renda de três a seis salários mínimos. Na mesma área, desapropriada pela prefeitura e doada ao estado, será instalada também uma Escola Técnica Estadual (Etec) para cerca de mil alunos.

Incentivos

O objetivo mais importante do Nova Luz, no entanto, é atrair a iniciativa privada. De acordo com o secretário municipal de Coordenação das Subprefeituras, Andrea Matarazzo, com o projeto a região "muda radicalmente, passa a ter um perfil mais ligado às atividades culturais e de TI [tecnologia da informação], em função principalmente dos incentivos fiscais dados à área".

Os incentivos a que o secretário se refere serão concedidos a empresas de acordo com o tipo e valor dos investimentos que fizerem. No final do processo de escolha das que terão direito aos benefícios fiscais, foram anunciadas em outubro de 2007 as 23 habilitadas. São dos setores de informática, call center, cultural, de publicidade e imobiliário. Segundo a Secretaria de Coordenação das Subprefeituras, elas poderão ter o Imposto sobre Serviços (ISS) diminuído de 5% para 2%, abatimentos que chegam a 50% no Imposto Predial e Territorial Urbano (IPTU) e converter até 80% do valor investido no imóvel em um Certificado de Incentivo ao Desenvolvimento (CID), que poderá ser usado para descontos adicionais no ISS – mesmo para filiais localizadas fora da área do Nova Luz –, no IPTU e inclusive para a compra de bilhete único – o cartão eletrônico de passagens de ônibus e metrô utilizado na cidade de São Paulo.

A prefeitura calcula que as 23 empresas escolhidas invistam R$ 752 milhões e gerem cerca de 27 mil empregos. Uma delas é a gigante Microsoft, que, segundo seu diretor de Marketing e Negócios no Brasil, Luiz Marcelo Marrey Moncau, "mantidas todas as condições do edital, tem a intenção de expandir sua área de serviços e desenvolvimento de software para a região em 2010".

A Fess’Kobbi Comunicação, uma das habilitadas, está na Cracolândia há mais de um ano, antes mesmo de o projeto ser colocado em prática. A empresa alugou um antigo galpão que servia de depósito de revistas na Rua do Triunfo e investiu pesado em uma grande reforma. "Ficamos sabendo do desenvolvimento do projeto pelo [secretário] Andrea Matarazzo e tínhamos de mudar nossa sede. Naquele momento definimos que íamos fazer esse investimento – essa aposta, já que era uma coisa ainda passível de não acontecer", afirma o proprietário da agência, Eduardo el Kobbi. "Agora nossa expectativa é que o projeto vá em frente."

A Atento, uma das grandes do setor de call center, deve ter uma unidade funcionando na região até 2009. A principal motivação para o investimento foram os benefícios dos incentivos fiscais, que poderão ser utilizados inclusive nos seus outros oito centros de atendimento que mantém na cidade. Para isso, segundo seu diretor de Relações Institucionais, Luís Alcubierre, a empresa aplicará, em conjunto com a parceira que ficará encarregada de construir o prédio, entre R$ 70 milhões e R$ 90 milhões. Alcubierre acredita também na renovação urbana da área. "Acho que isso vai fazer muito bem à cidade, e não só em termos de arrecadação de impostos, porque o dinamismo econômico gerado vai atrair muito mais gente de fora de São Paulo, com comércio e serviços", afirma. E conclui: "O Nova Luz abre uma janela para deixar o centro da capital mais bacana".

Caráter imobiliário

O projeto, porém, não é unanimidade. Ao contrário, tem recebido muitas críticas. O arquiteto Paulo Bastos, docente da Universidade Católica de Santos e ex-professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), desenvolveu um projeto para a região em 2003, ainda na gestão da ex-prefeita Marta Suplicy. Sua proposta previa a utilização dos imóveis existentes, que seriam reformados para servir de habitação para os moradores de baixa renda. Duas grandes praças, "pulmões verdes", seriam abertas com a demolição de prédios não-tombados e receberiam equipamentos instalados pela prefeitura.

Segundo Bastos, em troca da valorização decorrente da renovação urbana, os proprietários dos imóveis da região investiriam na revitalização da área, diminuindo os custos públicos. Para o arquiteto, o que faltou ao Nova Luz foi levar em consideração a Cracolândia como um todo, pois não incluiu a questão da moradia para os que vivem lá. Ele acredita que a principal motivação do plano atual é a transação de caráter imobiliário. "O que se vê é uma licitação na qual ganha quem paga mais", afirma.

O arquiteto Rafael Mantovani Esposel, pesquisador do Curso de Arquitetura e Urbanismo da Escola de Engenharia de São Carlos (CAU-Eesc), unidade da USP localizada no interior paulista, aponta a falta de participação no processo de moradores, ou ex-moradores, da região como um dos principais problemas do projeto, na medida em que, garante, em nenhum momento se procurou ouvi-los. Com isso, acredita, o Nova Luz não atende às demandas sociais dessa população. "Enquanto as empresas do setor imobiliário têm um fórum específico para isso, nada foi elaborado para a população que ali habita", afirma. Esposel critica também a falta de abrangência do projeto, que estaria apenas deslocando os problemas, como o do tráfico e uso de drogas, para as áreas adjacentes. A seu ver, o Nova Luz tem como objetivo maior gerar uma imagem simbólica da cidade. "Seria uma apresentação do centro de São Paulo que na verdade não corresponde à realidade. Basta olhar em volta para perceber que a degradação e todos os problemas sociais dessa população continuam existindo", afirma.

Autor da dissertação de mestrado Da Imagem da Cidade à Cidade-Imagem: Reflexões sobre o Projeto Nova Luz, o arquiteto diz ainda que, depois de anos de abandono pelo poder público, a população que vive ali vai ser expulsa, embora a prefeitura queira trazer mais moradores para o centro. "Já está definida qual classe social se pretende ter nessa região: uma que possa trazer certa movimentação econômica, uma vitalidade comercial diuturna para a área. A idéia é fazer a substituição da população existente por uma nova, que estaria mais apta a consumir, ou seja, dar origem a esse dinamismo que se pretende", explica ele.

"A partir do momento em que se usa um decreto de utilidade pública para facilitar a cessão dessas áreas ao setor privado, nota-se algo questionável quanto à finalidade do projeto. Está se provocando um grande problema para quem habita na região, com o objetivo de favorecer apenas alguns interessados e poucas empresas do setor imobiliário. Dessa maneira, caminha-se para uma privatização do centro", diz Rafael Esposel.

O secretário Andrea Matarazzo, confrontado com a idéia de privatização, porém, rebate: "Fazer o quê, então? Deixar como está? Tem gente que prega esse caminho. Abandonar o lugar, permitir que o tráfico se instale, retirar o serviço público de limpeza, como tinham feito. A verdade é esta: por que estamos desapropriando? Porque a maior parte daqueles terrenos pertencem a espólios, faltam documentos, e portanto não há possibilidade de comercialização. Então o que acontece? A área vem se deteriorando porque os imóveis estão abandonados". E conclui: "O objetivo da prefeitura não é privatizar, é apenas estancar um processo de deterioração do entorno. E, ao contrário, eliminar alguma coisa que irradiava problemas, implantando algo que passe a gerar renda e emprego". 

 

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