Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Desaparecidos: uma busca sem fim

Todos os anos 4 mil crianças e adolescentes desaparecem no Brasil

MARCELO SANTOS


Luiz Henrique Oliveira: campanhas educativas 
Foto: Arquivo pessoal

Desde a noite de 23 de dezembro de 1995, Ivanise Espiridião da Silva já gastou mais de R$ 20 mil com investigadores particulares na esperança de reencontrar sua filha Fabiana, desaparecida após ter participado de uma festa de aniversário de uma amiga, quando tinha apenas 13 anos. Outros milhares de reais foram necessários para custear as constantes viagens em busca de pistas, revirando hospitais, necrotérios, praças e abrigos.

Foram três infartos, diversos quilos perdidos e um casamento desfeito até que ela fundasse, em 1996, a Associação Brasileira de Busca e Defesa a Crianças Desaparecidas (ABCD), também conhecida como Mães da Sé, uma organização não-governamental que, ao mesmo tempo em que trabalha para solucionar casos de desaparecimento, também cobra do poder público políticas mais eficazes e a aplicação da lei 11.259, de 30 de dezembro de 2005, a única em vigor específica sobre a questão e que determina a investigação imediata em casos que envolvam crianças ou adolescentes, além da notificação instantânea de portos, aeroportos, polícia rodoviária, companhias de transportes interestaduais e internacionais. "Infelizmente, essa lei é pouco conhecida no país. Ainda imperam nas delegacias conselhos como: ‘Mãe, aguarde pelo menos um dia para fazer o boletim de ocorrência’. Isso é errado, as primeiras horas após o desaparecimento são as mais importantes", explica Ivanise. "Até hoje o Estado me deve essa resposta, e não vou descansar até descobrir onde está minha filha."

O drama de Ivanise ganhou projeção em 1996, logo após sua história ser relatada na televisão, na novela "Explode Coração", escrita por Glória Perez e transmitida pela rede Globo. A idéia, que deu início ao chamado merchandising social – uma estratégia dos novelistas para discutir algumas questões e problemas em meio às tramas televisivas –, conseguiu mobilizar diversas pessoas que procuravam seus filhos desaparecidos. Ao final do último capítulo da trama global, contabilizava-se um saldo positivo de 150 crianças localizadas, além de diversos trabalhos, como o de Ivanise, que pipocavam por todo o país. O Brasil descobria, enfim, o drama das crianças desaparecidas.

Mais de dez anos depois, o trabalho das Mães da Sé continua. Ivanise não encontrou sua filha, mas conta com a solidariedade de outras mães, também vitimadas pela ausência de seus filhos. Todos os domingos elas se reúnem nas escadarias da Igreja da Praça da Sé, na região central da cidade de São Paulo, com cartazes com fotos das crianças desaparecidas.

Segundo a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (Sedh), órgão da presidência da República, cerca de 40 mil crianças e adolescentes desaparecem todos os anos no Brasil. "Destes, de 10% a 15% permanecem por um longo período longe de casa ou simplesmente não são mais localizados", explica Mariza Tardelli, coordenadora da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos (ReDesap), da Sedh.

Cadastro integrado

Criada em 2002 com o objetivo de integrar organizações e delegacias especializadas de todo o território nacional num esforço único de identificar e localizar os desaparecidos, a ReDesap ainda não produziu muitos frutos. "Adoraríamos ser um cadastro nacional, mas isso não acontece. Somos uma rede de entidades, com fomento do governo federal, mas não conseguimos nos constituir como cadastro", explica Mariza. Segundo ela, isso ocorre porque nenhuma das 45 agências executoras que formam a rede, em sua maioria delegacias especializadas em busca de desaparecidos ou de proteção às crianças e aos adolescentes, é subordinada ao órgão federal. "Cabe às delegacias, vinculadas ao governo estadual, investigar e incluir as informações na rede. Nós, da Secretaria dos Direitos Humanos, não temos como obrigar as delegacias a cadastrar todos os casos. É um trabalho feito de forma voluntária."

Mariza Tardelli explica que o papel principal da ReDesap é "manter aquecido o debate" sobre os desaparecidos. Para isso, no final de março deste ano, realizará o segundo Encontro da Rede Nacional de Identificação e Localização de Crianças e Adolescentes Desaparecidos, na cidade do Rio de Janeiro. De sua primeira edição, ocorrida em novembro de 2006, no Distrito Federal, resultaram boas idéias, registradas num documento conhecido como "Carta de Brasília", mas quase nenhuma ação concreta. "Nossa intenção é tirar o foco só da questão de que temos de aprimorar e financiar equipamentos para as delegacias. Desejamos fazer com que a rede consiga se articular e tornar esse tema mais popular entre os conselhos tutelares, a promotoria pública e as delegacias especializadas."

Segundo Ariel de Castro Alves, advogado, coordenador do Movimento Nacional de Direitos Humanos e membro do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), é urgente a necessidade de implementar um banco de dados nacional com informações sobre todos os casos de crianças desaparecidas. "O que existe [a ReDesap] está muito aquém das necessidades do país", afirma. Castro Alves acredita que esse banco de dados facilitaria a resolução de diversos casos. "É inaceitável, por exemplo, que uma criança passe por uma instituição pública e não seja identificada", diz, citando os casos de menores que chegam a casas de passagem, prontos-socorros, institutos médico-legais e delegacias ou mesmo que estão institucionalizados.

De acordo com um levantamento realizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e pelo Conanda, 7% dos 80 mil menores que vivem em abrigos no país não têm suas famílias identificadas, ou seja, ao mesmo tempo em que 40 mil crianças e adolescentes desaparecem por ano, cerca de 6 mil estão nos abrigos à procura de seus parentes. "Necessitamos de instrumentos de busca mais fáceis. Precisamos contar com a informática e com o desenvolvimento que já tivemos nessa área e que infelizmente não estão disponíveis para questões tão importantes como o desaparecimento de pessoas, principalmente de crianças e adolescentes."

Na opinião de Castro Alves, uma saída seria a criação de legislação específica sobre a temática do desaparecimento de pessoas, "até mesmo para se ter uma definição conceitual e jurídica dos desaparecidos civis. Além disso, a lei deveria estabelecer as formas de atuação do Estado".

"Um problema social"

Com o Código Penal em mãos, o delegado Francisco de Assis Camargo Magano, da Delegacia de Pessoas Desaparecidas do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa (DHPP) de São Paulo, afirma que a dificuldade não está na lei, na falta dela e muito menos no seu braço forte, a polícia. "É um problema social. Normalmente isso ocorre com pessoas muito pobres, que vivem em lares desestruturados. A maioria dos casos são fugas", diz, ao mesmo tempo em que aponta os artigos que tratam das questões do abandono material, intelectual e moral. "É claro que há crimes como seqüestro e homicídio. Mas muitas vezes acontece de os pais nos procurarem contando uma história e, depois, verificarmos que o menor era maltratado em casa e, por isso, fugiu."

No último ano, em todo o estado de São Paulo houve o registro de 9.232 boletins de ocorrência relativos ao desaparecimento de adolescentes e crianças. Destas, 377 tinham idade inferior a oito anos. "É difícil precisar o número exato de casos solucionados, uma vez que a pessoa faz o boletim na delegacia e, quando retorna para casa, pode já encontrar o desaparecido. O certo é que mais de 80% são resolvidos rapidamente."

De fato, estudos mostram que a principal razão para o desaparecimento infanto-juvenil é a fuga. Uma pesquisa feita pelo Projeto Caminho de Volta, da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), em parceria com a Delegacia de Pessoas Desaparecidas, ouviu 302 famílias de crianças e adolescentes que retornaram espontaneamente ou foram localizados e concluiu que 73% dos casos referem-se a fugas, enquanto um número dez vezes inferior, de 7,7%, se deve à subtração, feita por conhecidos, familiares ou estranhos. Além disso, segundo a mesma pesquisa, houve reincidência em 47% das ocorrências, e em alguns casos (14,6%) as crianças já possuíam um histórico de mais de 15 fugas. "Identificamos, como fator de risco para o desaparecimento, crianças descritas como mentirosas, agressivas, tristes e que se isolam. Quanto ao ambiente familiar, os maus-tratos, a presença de uma família não-nuclear, violência doméstica, incesto e tráfico de drogas são agravantes e, de certa forma, até propiciam o desaparecimento de crianças e adolescentes", afirma Claudia Figaro Garcia, psicanalista da equipe do Caminho de Volta e do Centro de Ciências Forenses da FMUSP.

Ela explica que o projeto tem quatro eixos principais. "Queremos identificar as causas dos desaparecimentos, dar suporte psicossocial às famílias, capacitar profissionais para o atendimento e criar um banco de DNA de pais e irmãos." A idéia é dispor de dados com todas as informações dos desaparecidos. "Imagine que uma criança seja localizada em outro estado. Através de uma simples amostra genética poderemos comprovar se ela é, de fato, a mesma que está sendo procurada." Isso, segundo a psicanalista, evitaria deslocamentos desnecessários. "É muito traumático para a família ter de realizar uma viagem para tentar encontrar o filho desaparecido e, ao chegar, perceber que foi um engano."

Além disso, o projeto procura cadastrar em seu banco de dados informações genéticas de crianças que estão em abrigos ou mesmo de corpos sem identificação. "Dependemos de autorizações judiciais para obter algumas amostras, mas aos poucos vamos avançando."

Outro estado que adotou o trabalho com o DNA foi o Paraná. Lá, no último semestre de 2007, o Caminho de Volta firmou uma parceria com o Serviço de Investigação de Crianças Desaparecidas (Sicride), da Secretaria de Estado da Segurança Pública. "Já coletamos o material genético de algumas famílias e enviamos para análise em São Paulo. Esperamos solucionar os casos mais antigos, que são de 21 crianças que ainda não foram encontradas", explica a delegada titular do Sicride, Daniele de Oliveira Serigheli.

Em 2007, foram registrados 71 casos de desaparecimento de crianças no Paraná. "Todos foram solucionados", afirma Daniele, em cuja delegacia há um departamento para a criação de cartazes com fotos dos desaparecidos, além de um serviço para a progressão digital da idade, usado nas fotografias dos casos mais antigos. "Os pais já saem daqui com todo o material impresso", explica.

A estratégia é semelhante à utilizada pelo SOS Crianças Desaparecidas, da Fundação para a Infância e Adolescência (FIA), vinculada à Secretaria de Assistência Social e Direitos Humanos do governo do estado do Rio de Janeiro. De acordo com o gerente do departamento, Luiz Henrique Oliveira, outro aspecto importante é investir na prevenção. "Em épocas como as festas de fim de ano e o carnaval, o número de desaparecimentos de crianças e adolescentes aumenta bastante. Por isso trabalhamos com campanhas educativas, inclusive distribuindo kits com pulseiras de identificação", explica.

Mesmo já tendo localizado, nos últimos 11 anos, mais de 2 mil crianças através do SOS Crianças Desaparecidas – outras 500 não foram encontradas –, Oliveira vê com pessimismo a atual situação no país. "Temos uma série de dificuldades. Uma questão importante é: por que a criança, logo ao nascer, não recebe uma identificação civil única? Isso evitaria trocas de bebê e a subtração", diz. Sua crítica refere-se à falta de uma "unificação" dos registros civis. "Há um cadastro nacional para os veículos, mas, no que é mais fundamental, o próprio ser humano, o brasileiro, isso não existe. O registro civil é um em São Paulo e outro aqui no Rio", exemplifica.

Outros recursos

É na troca de informações através da internet que reside grande parte dos esforços na busca de pistas sobre os desaparecidos. Um dos trabalhos pioneiros nessa área surgiu em 1997, por intermédio da ONG americana Missing Kids, um dos braços filantrópicos da multinacional Computer Associates (CA). A idéia era colocar o Brasil na rede mundial, ao lado de mais de dez países, com informações sobre crianças e adolescentes desaparecidos e serviços como o envelhecimento digital. O projeto começou por São Paulo, onde a empresa doou os equipamentos e a tecnologia, enquanto a Secretaria Estadual de Assistência e Desenvolvimento Social (Seads) cedia o local e os funcionários. Logo foi estendido para o SOS Criança, no Distrito Federal, onde ajudou a solucionar o caso mais conhecido de uma criança desaparecida no país, o seqüestro de Pedro Rosalino Braule Pinto, o Pedrinho, que fora levado do Hospital Santa Lúcia, em Brasília, em 1986. Foi através das informações e fotos no site do Missing Kids que ele foi reencontrado, na época com 16 anos. "Dezenas de crianças foram localizadas por meio do programa. O único gasto que o Estado tinha era com o pagamento de nosso salário, uma vez que a CA bancava os equipamentos e a capacitação", relembra o ex-coordenador do programa em São Paulo, José Manuel de Souza Agrela.

Inaugurado numa badalada cerimônia realizada no Palácio dos Bandeirantes, sede do governo paulista, com a presença do então governador Geraldo Alckmin e do ex-presidente e fundador da companhia, Charles Wang, o programa foi sendo esquecido até ser desativado, em 2003. Segundo a assessoria de imprensa do Seads, o governo decidiu descentralizar as ações, deixando sob a responsabilidade dos municípios a tarefa antes exercida pelo órgão. "É uma pena. Fazíamos um trabalho pioneiro, principalmente em relação ao envelhecimento das imagens, algo até então inédito no país", lamenta Agrela.

Pelo direito de enterrar os filhos

Outro projeto pioneiro na procura por desaparecidos obrigado a reduzir atividades foi o das Mães de Acari, que atua na busca por vítimas da violência, nas periferias da capital fluminense. Lá o problema não foi apenas uma "canetada" política. "A partir do momento em que assassinaram Edméia [da Silva Euzébio, morta em 1993 enquanto investigava o desaparecimento de sua filha], morreu também a esperança no coração das outras mães", relembra Marilene Lima e Souza.

Inspirada no grupo de mulheres da associação Mães da Praça de Maio, que desde 1977 se reúne em Buenos Aires, em frente à sede do governo argentino, em busca de informações sobre os filhos desaparecidos durante a ditadura militar naquele país (1976-1983), a luta de Marilene, Edméia e de outras mães começou com a intenção de localizar os corpos dos 11 adolescentes vítimas de uma chacina em Acari, subúrbio do Rio de Janeiro, em julho de 1990. Na ocasião, um grupo de homens armados que se identificaram como policiais militares invadiu um sítio na periferia carioca à procura de jóias e dinheiro roubado. Os adolescentes que estavam no local foram jogados dentro de uma kombi, mais tarde encontrada queimada, com vestígios de sangue. Os jovens nunca mais foram vistos. "Eu tenho a certidão de nascimento, mas não a de óbito de minha filha."

Marilene também acredita que o problema seja social e econômico. "Quando o filho do rico é seqüestrado, merece uma complexa investigação até que se tenha uma resposta definitiva. Se for de família pobre, apenas desaparece e assim fica para sempre. Não é justo nos tirarem o direito de enterrar nossos filhos com dignidade."

 

Comentários

Assinaturas