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Serra da Bodoquena protege mas não esconde seus inigualáveis atrativos

HERBERT CARVALHO


Rio da Prata / Foto: Herbert Carvalho

A serra da Bodoquena, como é mais conhecida, é na verdade um planalto que se estende por 300 km no sudoeste do estado de Mato Grosso do Sul, com altitudes médias entre 400 e 650 metros, abrangendo os municípios de Bonito (a 272 km da capital, Campo Grande), Jardim, Bodoquena e Porto Murtinho, nas proximidades da fronteira com o Paraguai.

Última área remanescente de mata atlântica no interior do Brasil, esse estreito e longo bloco rochoso onde confluem o Pantanal, o Cerrado e o Chaco foi reconhecido como único no mundo pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), que o classificou como reserva da biosfera.

Seu relevo, constituído por rochas calcárias que se formaram há 500 milhões de anos, é responsável pelas mais de 30 atrações que fizeram de Bonito e seus vizinhos um dos mais cobiçados destinos de ecoturismo do país: rios de águas cristalinas e coloração verde ou azulada, límpidas mesmo quando chove, que desaparecem pelo solo nos chamados sumidouros e tornam a aparecer em ressurgências, às vezes dentro de cavernas como a gruta do Lago Azul e dolinas (formação geológica semelhante a caverna, mas sem o teto) como o Buraco das Araras.

Desfrutar toda essa beleza, à qual se agregam cachoeiras de todos os tamanhos, matas ciliares e uma rica fauna com 340 espécies de aves, 60 de mamíferos e 50 de peixes – como piraputangas, dourados e pacus, que podem ser observados em flutuações organizadas para turistas –, é, porém, um privilégio de poucos, por duas razões.

A primeira está no custo: além dos gastos com passagens, hospedagem e alimentação, o ecoturista deve estar preparado para pagar preços que vão de R$ 20 (em balneários e praias) a R$ 350 (rapel, flutuação ou mergulho no Abismo Anhumas) por pessoa. Isso porque a quase totalidade das atrações está dentro de propriedades privadas, em geral fazendas. E como estas ficam a distâncias que variam de 5 a 60 km da sede do município de Bonito, onde se localizam a maioria dos hotéis e pousadas e o único aeroporto da região, acrescente-se mais uma taxa que pode ultrapassar R$ 100 para o transporte em táxis ou vans, caso o viajante não disponha de carro ou não queira arriscá-lo em precárias estradas de terra.

A outra razão é a preocupação quase que obsessiva com a sustentabilidade: para evitar o afluxo de turistas sem consciência ecológica, que destruíram em tempos passados outros paraísos semelhantes, o número de visitantes nas principais atrações é limitado, e o seu comportamento estritamente vigiado por guias e monitores atentos e preparados. Bonito, em resumo, é um modelo elitista e empresarial de ecoturismo, que entretanto se revelou uma alternativa eficiente de preservação ambiental e de geração de empregos, que merece ser analisada. É o que faz Problemas Brasileiros nesta reportagem, que também conta a história "da fronteira onde o Brasil foi Paraguai", como diz a música Sonhos Guaranis, de Almir Sater.

Guerra do Paraguai

Durante 400 anos o planalto da Bodoquena – palavra que em idioma indígena significa "atoleiro em cima da serra" – foi cenário de disputas. Primeiro entre o homem branco e os índios cadiuéus, célebres por sua destreza como cavaleiros, que obtiveram notável sucesso na resistência aos colonizadores e até hoje vivem em uma reserva no município de Porto Murtinho, garantida após sua participação, ao lado dos brasileiros, na Guerra do Paraguai. Pioneiros na América do Sul no uso de cavalos, que continuam a criar, destacam-se pela qualidade de seu artesanato em cerâmica, que pode ser encontrado nas lojinhas de Bonito.

Outros conflitos na região aconteceram entre espanhóis e portugueses, entre ambos e os jesuítas, expulsos no século 18, acusados pelos reinos ibéricos de fomentar uma República Guarani independente, e, finalmente, a guerra que de 1864 a 1870 colocaria o Brasil, o Uruguai e a Argentina (a Tríplice Aliança) contra o Paraguai de Solano López. A Retirada da Laguna, epopéia descrita no livro homônimo do visconde de Taunay, que dela participou, começou na Fazenda Laguna, em território paraguaio, e terminou na Fazenda Jardim, onde chegaram os sobreviventes da tropa de 1.680 brasileiros guiados por José Francisco Lopes, o Guia Lopes. A fazenda daria origem a dois municípios, separados apenas pelo rio Miranda: Jardim e Guia Lopes da Laguna, por onde passa quem vem de Campo Grande por estrada asfaltada, com destino a Bonito.

Após o final da Guerra do Paraguai, multiplicam-se pela serra da Bodoquena fazendas dedicadas à produção agrícola – inicialmente erva-mate, depois café – e à pecuária de corte, principalmente da raça nelore, atraindo investimentos estrangeiros e migrantes oriundos do sul do país. Uma dessas fazendas chamava-se Rincão Bonito e pertencia ao capitão Luiz da Costa Leite Falcão, desbravador e primeiro tabelião de Bonito, que então fazia parte de Miranda, uma das mais antigas e maiores cidades do atual estado de Mato Grosso do Sul (separado de Mato Grosso em 1977).

Na década de 1930 começa a cristalizar-se o núcleo habitacional que daria lugar à sede do município (criado em 1946), sob os auspícios do então prefeito de Miranda, coronel Pilad Rebuá, que empresta seu nome à rua principal de Bonito, onde se situam as agências de turismo e de onde partem os caminhos para os diferentes passeios.

Minas de dinheiro

É apenas no final dos anos 1970 que os grandes fazendeiros de gado da região passam a se dar conta do fantástico potencial turístico e econômico dos recursos hídricos de suas propriedades, até então desfrutados quase que exclusivamente por moradores locais. E começam a perceber, também, que a continuidade da derrubada de matas ciliares para a criação de pastos poderia acabar com as verdadeiras minas de dinheiro, que passaram a brotar, como as águas, do fundo dos rios.

O primeiro atrativo turístico a receber infra-estrutura para o lazer foi a ilha do Padre, ponto final do passeio de bote de 6 km pelo rio Formoso – principal curso de água de Bonito –, passando por uma corredeira e descendo por três cachoeiras, até hoje um dos programas mais procurados. Emocionante, a aventura não chega a ser perigosa, e atrai de crianças a idosos. O limite de 12 pessoas nos botes de borracha é cuidadosamente observado, assim como a colocação dos coletes salva-vidas. Na maior parte do percurso o bote desliza por águas tranqüilas, e o que se deve fazer, apenas, é seguir as instruções dos experientes guias de modo a evitar que o joelho se choque com as pedras, único perigo real nas quedas de 2,5 metros. Na ilha o turista encontra mais cachoeiras, piscinas naturais, araras, redes e um restaurante onde pode saborear, entre outros pratos, uma iguaria típica da culinária sul-mato-grossense: a lingüiça de Maracaju, feita apenas com carne bovina.

Outros – e até hoje tradicionais – passeios de Bonito também surgiram ao longo do rio Formoso e seus afluentes, como o Formosinho e o Anhumas. É o caso do Balneário Municipal – uma das poucas atrações que dispensa guia ou reserva (mas não o pagamento de taxa) – e da Reserva Ecológica Baía Bonita. Nesta os proprietários construíram um centro de visitantes em forma de pássaro (em uma clareira, sem desmatamento, como fazem questão de esclarecer), onde o turista recebe instruções, máscaras, snorkel e roupas de neoprene para, depois de uma ducha destinada a tirar os vestígios de repelente e protetor solar (que poderiam turvar as águas), se aventurar numa flutuação em meio a cardumes coloridos do aquário natural. No preço de R$ 125 por pessoa está incluído o almoço e um passeio pela Trilha dos Animais, onde podem ser observados espécimes da fauna local, como jacarés, emas, sucuris, uma jaguatirica, um tamanduá e um cervo-do-pantanal.

Apesar de ser uma galinha dos ovos de ouro e ter apenas 100 km de extensão, com trechos de rara beleza cênica entre sua nascente, na serra da Bodoquena, e a foz, no rio Miranda, o Formoso não contava, até 2003, com um diagnóstico ambiental completo de suas margens, capaz de detectar potenciais áreas degradadas.

Os órgãos ambientais agiam somente com base em denúncias recebidas e requisições do Ministério Público até que, em março daquele ano, teve início o Projeto Formoso Vivo, por iniciativa da Promotoria de Justiça de Bonito, que, por meio de indenização ambiental por danos pretéritos decorrentes da exploração de calcário por uma empresa de médio porte do município, angariou recursos para viabilizar a contratação de uma equipe especializada em diagnósticos ambientais, para proceder a um levantamento total das condições das áreas localizadas numa faixa de até 150 metros a partir das margens do rio Formoso.

Destinado a promover a adequação ambiental das propriedades rurais ao regime jurídico de preservação, o projeto foi estruturado em três fases. Na primeira, de diagnóstico, constatou-se a existência de pontos sensíveis de assoreamento, decorrentes da falta de manejo adequado do solo em vários locais, que, somados, poderiam causar grandes impactos ambientais. Em seguida elaboraram-se planos de recuperação das áreas degradadas. O projeto, que se conclui com a assinatura de termos de ajustamento de conduta entre os proprietários rurais e o Ministério Público, hoje já expandiu sua execução para outros rios da bacia hidrográfica do Formoso, com a parceria de ONGs e a ação integrada da prefeitura de Bonito, da Secretaria Estadual do Meio Ambiente, do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e da Polícia Militar Ambiental.

Cavernas

Quanto às cavernas, o outro grande atrativo de Bonito, as primeiras medidas de preservação tomadas pelo poder público remontam ao final da década de 1970, quando a gruta do Lago Azul, a principal delas, foi tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Em seguida o Projeto Grutas de Bonito, coordenado pelo espeleólogo Clayton Ferreira Lima, possibilitou a abertura dessa e de duas outras grutas – a de São Miguel e o Abismo Anhumas – à visitação turística.

Descoberta por índios terenas em 1924, a gruta do Lago Azul recebe entre 40 mil e 50 mil pessoas por ano. Desde 1993 sua visitação, administrada pela prefeitura de Bonito, é permitida somente a grupos de no máximo 15 pessoas, acompanhadas por guia especializado. O visitante recebe um capacete e deve seguir em fila indiana por degraus de pedra, parando em patamares para observar os espeleotemas (estalactites, penduradas no teto, e estalagmites, que partem do chão).

Após uma descida de 80 metros, encontra-se o lago subterrâneo, que tem outros 55 metros de profundidade, no fundo do qual mergulhadores brasileiros e franceses encontraram, em 1992, ossos de uma preguiça-gigante e de um tigre-de-dente-de-sabre, mamíferos de grande porte que habitaram a região há milhares de anos. A coloração azul intensa da água é resultado da incidência dos raios solares que penetram por vinte minutos, durante a manhã, nos meses de dezembro e janeiro, pela grande entrada da gruta. A visitação custa R$ 50 por pessoa e ocorre durante o ano inteiro, com limitação de no máximo 305 pessoas por dia, o que torna recomendável fazer a reserva com bastante antecedência.

Se, entretanto, o turista tiver recursos e apetite por emoções fortes, a pedida pode ser o Abismo Anhumas, considerado um programa de arrepiar. A descida de 72 metros é feita por rapel negativo, sem contato com o paredão, até o lago de águas transparentes onde é possível, ao custo de R$ 350 por pessoa, praticar flutuação ou mergulho autônomo.

Modelo

A exploração comercial do turismo em Bonito completa um quarto de século acumulando prêmios, como o de Melhor Destino de Ecoturismo do Brasil, concedido pela revista "Viagem e Turismo", e Melhor Projeto Sustentável, do "Guia Quatro Rodas". Esses títulos representam o ápice de um processo iniciado em 1983, quando a prefeitura local editou o primeiro folheto que identificava Bonito como um município com vocação turística. Foi então que se construíram as primeiras escadas e deques de acesso aos rios e começaram a surgir os pioneiros hotéis e agências de turismo, que hoje se contam às dezenas.

No final de 2007 a prefeitura de Bonito recebeu o prêmio Top de Turismo da Associação dos Dirigentes de Vendas e Marketing do Brasil (ADVB) pelo case "Modelo de Gestão Ambiental e Turística: Voucher Único". Por meio desse modelo, o voucher, ou ingresso, sem o qual não se pode visitar nenhuma atração, é vendido exclusivamente pelas agências mediante consulta prévia a uma central informatizada da prefeitura, que libera o acesso dentro de limites preestabelecidos, que garantem o manejo sustentável da natureza.

Os passeios aos atrativos naturais são organizados por empresas, que têm a missão de preservar o meio ambiente e estimular a interação do turista com o ecossistema. Ao lado das agências, hotéis, restaurantes e lojas, elas participam do Conselho Municipal de Turismo (Comtur), criado em 1995 para congregar empresários, comunidade e poder público na organização da atividade turística.

Como resultado desse esforço, que incluiu a introdução nas escolas municipais da matéria Turismo e Noções Ambientais, com o objetivo de formar cidadãos conscientes da importância da sustentabilidade, Bonito rapidamente se tornou o segundo pólo turístico de Mato Grosso do Sul, atrás apenas do Pantanal, que ainda detém a liderança em razão do afluxo de praticantes da pesca esportiva.

A cidade hoje conta com aeroporto – que está sendo preparado para colocar Bonito entre as rotas aéreas do país – e rede hoteleira com 4,3 mil leitos para atrair os visitantes, que gastam cerca de R$ 30 milhões por ano, ajudando a criar 4,6 mil empregos diretos.

Apesar de todo esse avanço do turismo, a pecuária ainda está muito presente na cultura e na economia do município. Na maior parte das fazendas as atrações convivem com o gado, e os peões entram na folha de pagamento ao lado dos guias. Um subproduto dessa realidade são as cavalgadas e passeios a cavalo oferecidos aos turistas. Outra circunstância que o visitante não deve estranhar é a de encontrar bois e vacas pelos caminhos, e até mesmo boiadas inteiras, que são chamadas de comitivas e acontecem quando um rebanho é levado para engordar nas invernadas. Nesse caso basta ter calma, e os experientes vaqueiros conduzirão o veículo incólume por entre um mar de rabos e chifres.

Justa homenagem

Novas atrações surgem em Bonito a cada ano, e uma das mais recentes é a praia da Figueira, uma antiga área de extração de calcário que se transformou em fina faixa de areia em torno de uma represa, na qual é possível nadar e brincar em meio a peixes grandes e pequenos. Além de opções como caiaque, pedalinho, cama elástica, tirolesa e biribol, o turista pode saborear seus aperitivos em quiosques dentro da água.

No centro da cidade, no ano passado, uma fonte luminosa foi inaugurada com a escultura gigante de um par de piraputangas fazendo piruetas, justa homenagem ao peixe de rabo avermelhado que atrai tantos turistas.

A fama de Bonito e sua localização estratégica no centro do planalto da Bodoquena fazem com que se contabilizem para a cidade alguns pontos turísticos de grande interesse que, na verdade, ficam em municípios vizinhos. É o caso da cachoeira Boca da Onça, em Bodoquena, ao norte, a mais alta de Mato Grosso do Sul (156 metros). A trilha pela mata para alcançá-la tem piso de madeira e passa por outras cachoeiras cristalinas do rio Salobra. Uma curiosidade: o proprietário, amante de poesia, gravou versos em placas feitas com troncos ao longo do caminho.

No município de Jardim, ao sul, destaca-se o Recanto Ecológico do Rio da Prata, por duas vezes eleito a melhor atração de ecoturismo do Brasil pelo "Guia Quatro Rodas". A propriedade, pertencente a Eduardo Coelho, de tradicional família de pecuaristas, é a única da região a ter parte (300 hectares em um total de mil) reconhecida como reserva particular do patrimônio natural (RPPN). Essa área, que passa a ser isenta de impostos, deve entretanto permanecer intocada, podendo ser usada apenas para pesquisa ou turismo. Flutuando ou navegando pelo rio da Prata, o turista, se tiver sorte, pode ver até lontras. 


Serviço

Um pacote turístico das principais agências de viagens para Bonito, partindo de São Paulo, sai em média por R$ 2,5 mil (via aérea) ou R$ 2 mil (rodoviário). Inclui hospedagem por cinco dias, traslados e ingressos para os principais passeios. Há vôos fretados da TAM. De carro: estrada asfaltada de Campo Grande até Porto Murtinho, com acesso para Bonito em Guia Lopes da Laguna (após Sidrolândia e Nioaque). É recomendável fazer reserva antecipada para as principais atrações, o que pode ser providenciado pela internet. É necessária vacina contra a febre amarela, dez dias antes da viagem.

 

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