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A impunidade alimenta a tortura

Violência contra detentos resiste a iniciativas oficiais de combate efetivo

ANDRÉ CAMPOS


Presos em delegacia / Foto: Arquivo Acat

Em novembro de 2007, diretamente da sede da Organização das Nações Unidas (ONU), ouviu-se mais uma vez uma denúncia recorrente sobre a realidade brasileira: a da existência, segundo a própria ONU, de "tortura generalizada e sistemática" para milhares de detentos do país. Baseadas na visita de especialistas em 2005, as alegações fazem parte de um amplo relatório, ainda não totalmente divulgado, que enfatiza também aspectos discriminatórios da violação, que atinge principalmente os afrodescendentes.

Há sete anos, a noção de "tortura sistemática" já estava presente em outro estudo da ONU, produzido a partir de inspeções realizadas no ano 2000. O documento descreve nada menos que 348 alegações concretas de tortura, ocorridas em 18 estados ao longo da década de 1990. Chama a atenção também para um extenso rol de omissões e irregularidades, que tornam a prática dessa violência um ato de responsabilidade partilhada entre altos escalões e a figura do carrasco.

Assim como as denúncias, também não são novidade políticas federais para o problema. Ainda em 2001, nasceu o SOS Tortura, um disque-denúncia extinto pelo governo Lula menos de três anos depois. No mesmo ano surgiu o Plano Nacional de Combate à Tortura – que, no entendimento da gestão atual, apresentou resultados insatisfatórios por focar-se excessivamente na punição, em vez de buscar mudanças de procedimentos e práticas.

Tais transformações são o objetivo do Plano de Ações Integradas para Prevenção e Controle da Tortura, apresentado em dezembro de 2005. Última aposta do governo federal, ele se baseia em articulações com os estados para alcançar resultados efetivos. Passados mais de dois anos, no entanto, a iniciativa esbarra num velho problema: falta de compromisso de amplos setores da segurança pública e do sistema de Justiça. Em diversas instâncias, prevalece o silêncio sobre o assunto.

As causas

Entre outubro de 2001 e julho de 2003, mais de 25 mil ligações foram atendidas pelo SOS Tortura. Elas deram origem, após filtragem, a 2,2 mil denúncias encaminhadas às autoridades competentes. Em nada menos do que 85,8% dos casos, os acusados eram agentes públicos. Entre eles, a Polícia Civil responde por 31,4% das alegações, a Polícia Militar por 30,6% e os agentes penitenciários por 14%.

E por que o Estado tortura? Para Luciano Mariz Maia, procurador regional da República na 5ª Região, permanece ainda uma forte noção do uso da violência como forma de punição. "A idéia de castigar é tão presente que, muitas vezes, a polícia nem tem indícios concretos, mas percebe alguém em ‘situação suspeita’ e dá o bote. A pessoa, assustada, tenta correr, mas é alcançada, e a polícia começa a bater sem nem saber exatamente o porquê", descreve.

Além disso, diz ele, outra face da tortura é a sua adoção como "método investigativo" para que supostos criminosos confessem delitos ou dêem pistas que ajudem a solucionar casos. Nesse contexto, ressalta o procurador, reside uma realidade cruel: a da tortura como um ato que se perpetua justamente porque produz resultados efetivos. "Não é feita por psicopatas, nada disso", explica. "É uma escolha racional, que fará com que aquele profissional ganhe credibilidade e passe a ser visto como eficiente em sua instituição."

O SOS Tortura dá suporte a essa visão ao indicar, em suas estatísticas, as delegacias de polícia como os locais onde se torturou com mais freqüência (47,2% das denúncias). É nas carceragens da Polícia Civil que muitos suspeitos ficam presos durante o inquérito policial, à mercê justamente de quem vai investigar o crime – e, não raro, em total incomunicabilidade com o mundo exterior.

Unidades para condenados ou acusados que aguardam julgamento também surgem em destaque no panorama do disque-denúncia (26,9% dos casos). Segundo o padre Gunther Zgubic, coordenador nacional da Pastoral Carcerária, a tortura é uma realidade histórica nas relações de poder que permeiam esses locais. Para exemplificar, ele relata um caso ocorrido no Complexo do Carandiru poucos anos antes de sua implosão, após um detento atacar um funcionário. "Levaram-no do Pavilhão 9 até a sala da diretoria, espancando-o com canos de ferro", diz. Lá, descreve o padre, foram convocados os agentes novatos para uma espécie de ritual de batismo. "Isso era uma tradição", afirma. "O novo funcionário tem medo dos outros, e, depois que bate uma vez, nunca mais pode abrir a boca, porque também é torturador."

Políticas públicas

Atualmente, uma das principais propostas do governo federal para mudar essa realidade é a saída dos institutos médico-legais (IMLs) do organograma das secretarias de Segurança Pública. A importância da perícia médica para obter provas em casos desse gênero é ressaltada por Pedro Montenegro, da Secretaria Especial de Direitos Humanos (Sedh) – órgão que coordena o Plano de Ações Integradas. Ele afirma que a medida fortalecerá a independência desses institutos. "Se há uma denúncia de tortura em uma delegacia, é o próprio delegado quem vai ter de requisitar a perícia. Veja só que contradição."

Luiz Carlos Galvão, presidente da Associação Brasileira de Medicina Legal, é favorável à separação. Ele afirma ser o Brasil um dos seis países do mundo em que a perícia está vinculada ao poder repressor (somente no Amapá e no Pará há IMLs autônomos). "Existe interferência direta, de intimidação mesmo", queixa-se. Além disso, diz ele, o órgão é financeiramente desvalorizado na atual estrutura, o que leva a seu sucateamento.

No sistema prisional, sempre que alguém entra, sai ou é transferido precisa passar pelo exame de corpo de delito. Durante esses procedimentos, são freqüentes os relatos sobre policiais que ficam na sala do médico, inibindo denúncias da vítima. Galvão defende ainda a necessidade de exames periódicos nas pessoas privadas de liberdade. "Eles fazem o legista de palhaço", reclama. "Levam o camarada para você atestar que não há lesão e depois espancam, escondem, transferem de uma delegacia para outra. Depois, deixam-no incomunicável até que desapareçam as lesões."

Outra crítica diz respeito à lacuna de investimentos em policiamento investigativo. Luciano Maia lembra que há falta de treinamento e de agentes – e que, nesse contexto, "o suspeito torna-se fonte preciosa de informação". A valorização da perícia criminal, importante inclusive para solucionar casos de tortura, é defendida por Antonio Funari Filho, ouvidor da Polícia de São Paulo. "É preciso punir severamente a não manutenção do local do crime", afirma. "Desde que estou nesta função, não recebi nenhuma notícia de perícia feita no local de tortura", completa Montenegro, que cita dados do Fundo Nacional de Segurança Pública para exemplificar a falta de atenção à área. Em 2006, diz ele, o montante destinado à perícia foi de apenas 4% dos recursos repassados aos estados.

Realidade opaca

Se, por um lado, as deficiências na perícia dificultam a produção de provas, a falta de monitoramento surge como um dos principais obstáculos para a denúncia de ocorrências de tortura. Nas palavras de Montenegro, os locais onde há presos no Brasil são "muito opacos" – quem deveria fiscalizar não o faz e quem quer fazer isso é barrado.

Desde fevereiro de 2007, vigora no país o Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes – documento da ONU que prevê a criação de um órgão de visitas independente, com acesso livre a centros de detenção. Ele estabelece prazo de um ano – já estourado – para a criação dessa entidade. Tal incumbência está sendo capitaneada pela Sedh e, segundo Montenegro, a plena implantação ocorrerá ainda em 2008.

Fernando Salla, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP), mostra ceticismo quanto à possibilidade de uma nova estrutura responder por uma função de fiscalização que, de certa forma, já está prevista na legislação. "As coisas são criadas por lei, mas as condições para que funcionem não são dadas", diz. Segundo ele, um exemplo é a própria Lei de Execução Penal, que delega a uma série de instituições o papel de vistoriar unidades prisionais, incluindo órgãos federais, estaduais, Ministério Público e varas de execução penal. A negligência dessas autoridades, contudo, é motivo de constantes queixas.

Ainda de acordo com essa lei, sancionada em 1984, deve haver em cada comarca do país um conselho com representantes da comunidade incumbido de fiscalizar as prisões. No entanto, tal órgão ainda não foi constituído em grande parte delas. Dados coletados pela Secretaria da Administração Penitenciária paulista indicam que o estado tinha, em 2004, 97 desses conselhos instalados – em menos da metade das 225 comarcas de então.

"A grande dificuldade é conseguir que a vítima tenha um mínimo de esperança de Justiça", desabafa Paulo Sampaio, da Ação dos Cristãos para a Abolição da Tortura (Acat). Além de visitar locais de detenção, a entidade presta assistência jurídica a pessoas que sofreram abusos. Sampaio descreve um cenário de grandes empecilhos para as organizações que monitoram presídios e delegacias de polícia brasileiros. A burocracia imposta para dificultar sua entrada nesses locais e a freqüente intimidação por parte de policiais e agentes, que evitam deixar os integrantes dessas entidades sozinhos com os presos, são alguns deles.

No tribunal

Em 1997, após anos de reivindicações, foi aprovada a Lei de Tortura, que torna a prática dessa violação um crime inafiançável, com reclusão mínima de dois anos. Porém, em casos que envolvem lesão corporal grave, morte ou outros agravantes, a pena pode chegar a mais de duas décadas. A lei identifica como tortura, entre outras circunstâncias, o emprego de violência e ameaças graves para obter informação, castigar ou obrigar alguém a cometer atos ilícitos.

Passados mais de dez anos, contudo, o balanço é geralmente negativo quando se analisa sua aplicação. "Ela não está resultando em condenações", atesta Antonio Funari. As estatísticas da ouvidoria paulista indicam que, desde 2004, ao menos 89 denúncias de tortura foram levadas ao órgão. No entanto, segundo ele, há informações sobre apenas duas condenações entre os casos acompanhados pela entidade.

Gorete Marques, pesquisadora do NEV-USP, é autora de um estudo baseado em cerca de 60 processos de tortura localizados em varas da capital paulista entre 2000 e 2005. Uma de suas constatações é justamente a maior impunidade dos agentes públicos em relação a outros réus. Em 68% dos casos analisados, os supostos agressores eram agentes do Estado. Entretanto, entre os que geraram condenação, apenas um terço envolveu esses profissionais – sendo o restante dos processos, em sua maioria, relacionados a violência doméstica ou vingança.

Quando existe a absolvição, Gorete verificou a prevalência de duas situações: se há poucos indícios de marcas na perícia médica – lembrando que, muitas vezes, ocorre demora para o IML fazer o exame –, questiona-se a falta de provas. Já quando há fortes indicadores de lesões, a autoria é posta em xeque. "Em algumas sentenças, a defesa alegava que o preso se autoflagelou para incriminar o funcionário da penitenciária, por conta de rixas. E a justificativa era acolhida pelo juiz", conta. Também há situações em que o magistrado não considera ter acontecido tortura, mas delitos como o de lesão corporal – cujas penas são sensivelmente mais brandas.

Outra polêmica que envolve o Judiciário diz respeito à freqüente aceitação, perante os tribunais, da confissão de crimes que o réu afirma ter sido induzida por tortura. O Plano de Ações Integradas do governo federal defende, nesses casos, a inversão do ônus da prova – para que essas confissões tenham validade, caberia à promotoria provar que não foram obtidas por meios ilícitos.

Nesse contexto, Luciano Maia ressalta a importância de medidas que legitimem os interrogatórios, como o estímulo à sua gravação em vídeo e a garantia de que ocorram somente com um advogado de defesa no local. A presença de um defensor, diz ele, já está prevista no Código de Processo Penal, e a gravação tem sido adotada em todas as grandes investigações da Polícia Federal – que envolvem, em geral, crimes do colarinho branco. "Fazem isso para se preservar, pois sabem que esses graúdos têm advogados poderosos para argumentar contra eles", explica.

Luz no horizonte

Apesar dos inúmeros obstáculos, algumas ações pontuais indicam caminhos possíveis no combate à tortura. Em São Paulo, Funari vislumbra uma diminuição dos casos que envolvem policiais por conta da desativação das celas nas delegacias e da realocação dos presos que nelas se encontravam em centros de detenção provisória (CDPs). Iniciada na gestão de Geraldo Alckmin, a política já foi aplicada na grande maioria das unidades de polícia da capital, e agora se expande pelo interior. "Aquele que prende não deve guardar o preso", reitera o ouvidor. No Rio de Janeiro, o Programa Delegacia Legal, que também prevê a desativação das carceragens, é outra iniciativa elogiada.

Em relação à aplicação da Lei de Tortura, Maia vislumbra progressos nos últimos meses, com mais condenações no país, inclusive em segunda instância. A seu ver, é possível perceber, ao menos em alguns estados, uma melhor compreensão da dinâmica desse crime como algo feito às escondidas, e normalmente sem provas. Por isso, ressalta o procurador, é preciso muito respeito pelo relato da vítima, especialmente se corroborado por outros indícios.

O padre Gunther, da Pastoral Carcerária, acredita que, em algumas regiões do Brasil, como São Paulo, há de fato uma diminuição da tortura no sistema penitenciário. Entre as razões, ele destaca o crescimento das denúncias e a melhor abordagem do tema na Escola de Administração Penitenciária, responsável pela formação de agentes.

No entanto, na opinião de Gunther, essa mudança não deriva basicamente de políticas públicas, mas da falta delas. O padre diz estar convicto de que, nessa equação, o fortalecimento de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) desempenha papel fundamental. "Desde a megarrebelião de 2001 [quando ocorreram levantes em 29 presídios], os funcionários morrem de medo de mexer com o preso", ressalta.

Nesse contexto, diz ele, surgiram novos meios de coerção, que, ironicamente, se valem da própria organização dos encarcerados em facções: a ameaça sistemática de transferência para presídios comandados por inimigos, onde o risco de morte é a conseqüência mais óbvia. "São novos mecanismos de tortura", analisa.


"Não à emancipação dos IMLs"

Situações eventuais. É assim que Carlos Eduardo Benito Jorge, presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol), classifica as ocorrências de tortura perpetradas por policiais durante o exercício de sua profissão. A idéia do uso sistemático dessa prática como meio de investigação é, para ele, uma visão de quem não conhece a realidade. "Eventualmente pode vir a acontecer, mas, via de regra, os casos colhidos são apurados pelas administrações superiores, a quem cabe fiscalizar", afirma.

Segundo o presidente da Adepol, também não é verdade que a polícia trabalha apenas com interrogatórios. "De cada cem inquéritos, 99 são feitos por meio de provas, perícias e outros fundamentos", diz. Benito Jorge critica ainda a proposta de emancipação dos IMLs – que, em sua opinião, tende a consumir recursos num cenário onde a falta deles já é o grande entrave das polícias. Ele afirma não haver problema de autonomia e que a separação compromete as investigações. "Se o perito não me entrega o laudo, como é que vou concluir o inquérito?", questiona. "O que se vê, no Brasil inteiro, são inúmeros laudos atrasados."

"As maiores vítimas de tortura nas prisões hoje são os funcionários", afirma João Rinaldo Machado, presidente do Sindicato dos Funcionários do Sistema Prisional do Estado de São Paulo (Sifuspesp), citando como exemplo situações vividas por reféns em rebeliões. Segundo ele, o que pode ocorrer são casos isolados, inclusive por conta do estresse e do medo relacionados às péssimas condições de trabalho. "A principal tortura hoje é a do Estado, que não fornece condições decentes para presos e funcionários."

 

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