Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

O sucesso do caixa 2 na terra da propina

De como o combate à corrupção não consegue passar dos discursos e promessas

JÚLIA TAVARES


Simpatizantes da Amarribo, de Ribeirão
Bonito / Foto: Divulgação

Em época de campanhas eleitorais, a ladainha do combate à corrupção por parte dos candidatos é velha conhecida dos brasileiros. Neste ano de eleições municipais, quem pretende alcançar o posto de prefeito e vereador encontrará eleitores ainda mais descrentes quanto à veracidade desse discurso. Após escândalos recentes, como a dupla absolvição de Renan Calheiros no Senado e a formalização das denúncias de mensalão nos dois principais partidos brasileiros, tem ficado evidente que práticas consideradas corruptas e corruptoras do ponto de vista jurídico muitas vezes são moralmente aceitáveis no universo político. E por isso são tão vigorosas.

O alerta quanto à incorporação de padrões de relações pessoais no modo de atuar do Estado foi dado há 20 anos pelo antropólogo Marcos Otávio Bezerra, da Universidade Federal Fluminense, quando analisou escândalos de corrupção da ditadura militar. Após a redemocratização, as práticas de apropriação indevida do dinheiro público vêm sendo amplamente divulgadas pela imprensa, com maior pressão social para que sejam combatidas. Na própria legislação brasileira, porém, há brechas que dificultam o controle social e permitem o nepotismo e o jogo espúrio de favores.

Organizações não-governamentais de combate à corrupção destacam que os verdadeiros escândalos do caso Renan Calheiros consistiram em procedimentos teoricamente legais, como a votação realizada em sessão secreta e a permanência de Renan no cargo de presidente do Senado. Dessa forma, ele pôde influir no próprio processo. "O episódio transmite a sensação de que o Senado não se interessa pela opinião da sociedade e enfraqueceu ainda mais a confiança que o brasileiro já não tem no Legislativo", observou Claudio Weber Abramo, diretor da ONG Transparência Brasil.

Felix Garcia Lopez, professor de ciências sociais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, reforça que a comoção nacional causada pelo mensalão não alterou em nada procedimentos políticos que favoreceram a compra de votos de parlamentares feita por integrantes do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Uma dessas práticas, segundo Lopez, é a barganha política em torno do preenchimento de postos de confiança. "A quantidade de cargos continua a mesma, e um dos critérios para indicação é que a pessoa arrecade dinheiro para o caixa 2 de eleições", constata o pesquisador, lamentando que o governo Lula tenha mantido os cerca de 20 mil postos dessa natureza.

Como não há lei que regulamente funções de confiança e cargos em comissão na Constituição Federal, a punição torna-se impossível mesmo em situações óbvias de apropriação política. Em sua tese de doutorado, Lopez detectou inúmeros abusos na Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro no período de 1999 a 2004. Segundo o professor, os vínculos de lealdade são muitas vezes mais importantes que a subordinação aos superiores hierárquicos da instituição, o que causa ineficácia de programas e falta de planejamento de longo prazo.

Os excessos ligados à livre nomeação acontecem inclusive em órgãos com função de fiscalizar gastos da administração pública, como o Tribunal de Contas do Estado de São Paulo (TCE-SP). Em dezembro de 2007, a Promotoria de Justiça da Cidadania de São Paulo instaurou investigação para apurar denúncia de nepotismo por parte dos sete conselheiros do TCE, que nomearam filhos, irmãos e noras. Em média, o salário desses parentes era de R$ 12 mil.

Combate à impunidade

Após acatar denúncia contra os 40 acusados no caso do mensalão petista, o Supremo Tribunal Federal começou o julgamento dos 15 envolvidos em suposto esquema de caixa 2 para a campanha de reeleição do então governador de Minas Gerais, Eduardo Azeredo (PSDB), em 1998. Mesmo reconhecendo que é cedo para prever o resultado efetivo desses processos, sociólogos e cientistas sociais vêem com bons olhos um possível combate à impunidade, considerada o principal fator para o alastramento da corrupção em todos os níveis sociais.

Bolívar Lamounier, do Instituto de Estudos Econômicos, Sociais e Políticos de São Paulo (Idesp), acredita que a sociedade começa a perceber que o desenvolvimento do país não depende exclusivamente de investimentos materiais e formação especializada, como pregaram os governantes ao longo do século 20. "Agora estamos correndo atrás do prejuízo", diz o cientista político.

O engajamento do governo e do setor privado no combate à corrupção também cresce à medida que se detecta que, por causa dela, há um imenso desperdício de dinheiro. Uma das estimativas mais recentes sobre o gasto decorrente dessa prática no Brasil foi divulgada em 2007 por Axel Dreher, professor do centro de pesquisas de conjuntura do Instituto Econômico Suíço. Os cálculos mostram que a média anual de custos indiretos no país chega a 0,08% do PIB, ou US$ 715 milhões em valores de 2006. Atualmente, a quantia equivale a cerca de R$ 1,2 bilhão.

Já na pesquisa "Corrupção no Brasil: A Perspectiva do Setor Privado", realizada em 2003 pelo braço no país da Kroll – empresa de consultoria em gerenciamento de riscos – e pela Transparência Brasil, cerca de 70% das 78 empresas consultadas disseram gastar até 3% de seu faturamento com o pagamento de propinas. Para 74% delas, a corrupção é um dos principais obstáculos ao desenvolvimento empresarial. Dados como esses estimularam a criação do Pacto Empresarial pela Integridade e contra a Corrupção, lançado em 2006 por iniciativa do Instituto Ethos de Empresas e Responsabilidade Social, da Patri Relações Governamentais & Políticas Públicas, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, do Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime e do Comitê Brasileiro do Pacto Global.

A iniciativa contabiliza a adesão de 439 companhias. Segundo Caio Magri, gerente de Parcerias para Transformação do Instituto Ethos, houve avanços em relação ao financiamento de campanhas e à revisão do código de ética das empresas. Em 2008, o desafio será firmar acordos setoriais do pacto para construir um "mapa de riscos", com o objetivo de identificar possíveis ocorrências de suborno de agentes públicos para a venda de material para o Estado, por exemplo. O primeiro acordo desse tipo será firmado entre fabricantes de tubos e conexões para saneamento básico, adianta Magri.

Do micro para o macro

Na pequena Iati, cidade pernambucana com 17 mil habitantes, os fiscais da Controladoria Geral da União (CGU) constataram diversas irregularidades no repasse de verbas federais. Além de duplicidade de recursos para construção de uma barragem, a CGU apontou desvios que atingem quem mais precisa das políticas sociais do governo. Salta aos olhos o completo descaso da prefeitura de Iati com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti). A fiscalização comprovou total desvio de finalidade na execução do programa por meio de parceria firmada com uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip). Houve atrasos e irregularidades nos pagamentos realizados a seus beneficiários e interrupção das atividades educativas previstas no período de férias escolares.

Em Pirapora do Bom Jesus (SP), de 14 mil habitantes, os problemas na execução do Peti voltaram a aparecer, com indícios de fraude em emissão de notas fiscais para comprovação de despesas do programa. Entre outras, o relatório aponta falhas na área da saúde, como a compra de medicamentos superfaturados.

Iati e Pirapora do Bom Jesus foram duas das 60 cidades de até 300 mil habitantes sorteadas na 22ª edição do Programa de Fiscalização de Municípios, apresentado pela CGU como uma medida de bons resultados na identificação de esquemas de desvio de recursos federais. Segundo o órgão, os relatórios são primeiramente encaminhados aos ministérios e outras instâncias federais responsáveis pela transferência dos recursos. Depois seguem para o Tribunal de Contas da União, para o Ministério Público e, em alguns casos, para a Polícia Federal, dando origem a operações que já trouxeram à tona, por exemplo, a máfia das sanguessugas – que fraudava licitações para a compra de ambulâncias superfaturadas com dinheiro do orçamento da União.

A CGU também é responsável pelo acompanhamento da implementação de três convenções internacionais de combate à corrupção assinadas pelo Brasil – Convenção Interamericana contra a Corrupção, Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e Convenção sobre o Combate à Corrupção de Funcionários Públicos Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais. Para dar conta de tantas atribuições, o total atual de fiscais do órgão – 2,1 mil – não é suficiente, como admite o secretário executivo, Luiz Navarro. "O número previsto na lei da carreira de finanças e controle, de 1995, é de 5 mil auditores, entre analistas e técnicos", afirma.

No relatório de avaliação mais recente da Convenção Interamericana contra a Corrupção, a Organização dos Estados Americanos (OEA) recomenda maior cooperação entre autoridades das três esferas de governo na aplicação de mecanismos de combate à corrupção, entre eles a capacitação de servidores públicos. Segundo a CGU, que desenvolve o Programa de Fortalecimento da Gestão Municipal, uma das principais deficiências encontradas no preparo dos gestores públicos se refere ao desconhecimento da legislação sobre licitações públicas.

Indicadores de corrupção

Reconhecendo a complexidade do fenômeno da corrupção, tanto a OEA como a Transparência Internacional sugerem a criação de indicadores que permitam a identificação das áreas mais críticas no aparelho de governo e o acompanhamento das melhorias ao longo do tempo. Um diagnóstico nacional desse porte nunca foi feito no Brasil. Bruno Speck, professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e conselheiro da Transparência Internacional na América Latina, sugere a realização de estudo nos moldes do Índice Nacional de Corrupção e Bom Governo, feito em todos os estados do México em 2001, 2003 e 2005.

As 32 perguntas do questionário aplicado nos lares mexicanos quantificam os níveis de corrupção no âmbito nacional quando alguém utiliza um dos 35 serviços públicos considerados. Além de medir a chamada "percepção da corrupção", esse índice aponta quanto do orçamento doméstico é gasto em propinas para evitar multas de trânsito ou para acelerar registros de nascimento e casamento, por exemplo. Em lares com orçamento de até um salário mínimo, o "imposto regressivo" (a propina) chega a representar 24% da renda familiar, como mostraram os últimos resultados.

Enquanto não há interesse em patrocinar pesquisas desse tipo, de alto custo, uma das referências que servem de parâmetro para o Brasil é o Índice de Percepções de Corrupção (IPC), levantado anualmente desde 1995 pela Transparência Internacional. As ressalvas quanto à metodologia adotada referem-se à subjetividade das perguntas e ao público entrevistado no questionário – majoritariamente investidores ligados ao mundo dos negócios, que nem sempre residem no país. De qualquer forma, o IPC 2007 mostrou que o Brasil continua classificado entre 3 e 5 pontos, intervalo que indica séria percepção de corrupção no setor público. A escala vai de 10 (altamente transparente) a zero (altamente corrupto).

Apesar do aumento do índice em dois décimos em relação a 2006 – quando o Brasil registrou o pior nível desde o início do levantamento –, o país ficou em 72º lugar no ranking de 180 países, com 3,5 pontos, empatado com Marrocos, Índia, China, Peru, México e Suriname. No final da lista, em 179º lugar, estão Somália e Mianmar (antiga Birmânia), com 1,4 ponto. No topo, aparecem Nova Zelândia, Finlândia e Dinamarca, com 9,4 pontos. Segundo o relatório do estudo, continua evidente uma forte relação entre corrupção e pobreza. Uma das recomendações para países em desenvolvimento que querem reforçar a responsabilidade do governo é o estabelecimento de parcerias entre o poder público e a sociedade civil.

Controle social

A experiência da ONG paulista Amigos Associados de Ribeirão Bonito (Amarribo), fundada em 1999, tornou-se referência no controle da gestão municipal. Em 2002, o ex-prefeito Antônio Sérgio de Mello Buzzá (PMDB) foi cassado após investigação da entidade, que o apontou como mandante de esquema que desviou R$ 1,2 milhão dos cofres públicos. Em cartilha publicada em parceria com a Transparência Brasil e o Instituto Ethos, a ONG ensina a identificar os principais sinais de irregularidades na administração pública. Entre eles, estão a existência de histórico comprometedor da autoridade eleita e de seus auxiliares, a falta de transparência nos atos administrativos do governante, o apoio de grupos suspeitos de prática de crimes e irregularidades e a subserviência do Legislativo e dos conselhos municipais de políticas públicas ao Executivo.

Previstos na Constituição de 1988, os conselhos municipais devem ser criados pelas prefeituras para funcionar como uma ponte entre governo e sociedade civil. Com a responsabilidade de formular e acompanhar políticas em várias áreas, na prática esses espaços ainda têm sido bastante pautados pelos interesses do Estado, segundo afirma em um artigo a professora Luciana Tatagiba, do Departamento de Ciência Política da Unicamp.

Uma das principais dificuldades encontradas por grupos que pretendem fiscalizar governos está na falta de acesso a informações públicas. Como o Brasil ainda não tem uma legislação específica sobre o tema, impera a ausência de transparência. Após muita resistência, a Mesa Diretora do Senado aprovou proposta de Tião Viana (PT-AC), em outubro de 2007, que autoriza a divulgação pela internet dos gastos mensais dos senadores com a verba indenizatória, de R$ 15 mil. Até fevereiro de 2008, no entanto, não havia previsão oficial para a implantação do sistema.

Segundo Claudio Abramo, um anteprojeto de lei de acesso à informação pública foi elaborado pelo Conselho de Combate à Corrupção da CGU em setembro de 2006. À época, o presidente Lula havia prometido enviar o documento para votação no Congresso. "Obviamente é algo que fere inúmeros interesses", aponta o especialista, que constatou obstáculos até mesmo para consulta pública nos Diários Oficiais dos estados brasileiros. Segundo o estudo "Gutenberg em Bits", do ano passado, cinco estados – Goiás, Roraima, Rondônia, Santa Catarina e Sergipe – nem sequer disponibilizam a versão eletrônica dos jornais na internet. Em Minas Gerais, outro caso crítico: o site do governo estadual não proporciona acesso gratuito a nenhuma edição do jornal, permitido apenas para assinantes. 


O impacto dos "mensalões"

Enquanto redes de relações de amizade, parentesco e patronagem estão sempre na base de escândalos de corrupção, inclusive os da época da ditadura, como identificou Marcos Otávio Bezerra no livro "Corrupção – Um Estudo sobre o Poder Público e Relações Pessoais no Brasil" (ed. Relume Dumará/Anpocs, 1995), o mensalão petista traz um aspecto singular: a conexão com o elemento ética. É o que pensa o professor da Universidade Federal de Minas Gerais Fábio Wanderley Reis. "A questão da ideologia era forte no PT, que se sentiu autorizado a fazer o que fosse preciso para assegurar a administração do país", afirma.

Na comparação entre os impactos das denúncias de corrupção relativos ao alto escalão do PT e do PSDB, o peso negativo do mensalão petista junto à opinião pública foi maior, segundo Felix Garcia Lopez, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. "Uma parcela expressiva da população, que via o PT como o último bastião da ética, tomou um banho de água fria", diz. Segundo Wanderley Reis, "o fato em si de ter havido mensalão, tanto no PT como no PSDB, reforça uma questão negativa dos partidos. É um retrocesso na construção da institucionalidade partidária, que vinha ocorrendo desde as disputas presidenciais de 1989", destaca.

Como saldo positivo do episódio, Felix acredita que aumentou a percepção de que a corrupção é muito difícil de combater e não está ligada somente a uma fraqueza moral, mas a um aspecto estrutural. Por isso, cresceu o apelo à urgência de mudança das regras institucionais.

De fato, após a denúncia do mensalão, a reforma política defendida desde o desfecho da CPI do Orçamento da era Collor voltou a ser conclamada como urgente. Os projetos que tramitaram na Câmara em 2007 previam listas preordenadas, fidelidade partidária, financiamento público de campanhas e restrições a doações para os partidos. Nenhuma dessas propostas, no entanto, conquistou a sociedade ou o parlamento, como destaca José Antônio Moroni, do Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e da Associação Brasileira de Organizações Não-Governamentais (Abong). Nem mesmo houve consenso quanto à eficiência do financiamento exclusivamente público de campanha para barrar o uso do caixa 2.

 

Comentários

Assinaturas