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Canal Aberto

por Eugênio Bucci


O convidado deste mês da seção Encontros formou-se em comunicação social pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), em 1982, e seis anos depois concluiu o bacharelado em direito pela mesma universidade. Como jornalista profissional, Bucci foi diretor de revistas como a Superinteressante, Playboy e Quatro Rodas, crítico de cultura e de televisão nos jornais Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo e no carioca Jornal do Brasil, e nas revistas Veja, Nova Escola e Sem Fronteiras. Em 2002, recebeu o título de doutor em ?ciências da comunicação, na área de jornalismo, pela ECA, e tornou-se professor de ética jornalística na Faculdade Cásper Líbero – até 2003. De janeiro de 2003 a abril de 2007 foi presidente da Radiobrás, comandando o processo de revitalização e de reposicionamento da estatal de comunicação. “O trabalho que eu fazia na Radiobrás era de mudança de mentalidade”, contou durante conversa com o Conselho Editorial da Revista E. “Mudança de método de gestão, de pauta e tudo mais, que resultou em uma alteração da qualidade da discussão sobre comunicação pública no Brasil.” Após deixar a presidência da empresa, assumiu os postos de professor visitante do Instituto de Estudos Avançados (IEA) e de Professor Doutor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. É membro do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta e colaborador do jornal O Estado de S.Paulo e do site Observatório da Imprensa. Escreveu, entre outros livros, Em Brasília, 19 Horas (Record, 2008) – no qual fala da experiência na Radiobrás – e Brasil em Tempo de TV (Boitempo, 2005). A seguir trechos da conversa.


TV pública na Europa

O jornalista, ex-presidente da Radiobrás e autor, entre outros livros, de Em Brasília, 19 Horas, Eugênio Bucci esteve presente na reunião de pauta do Conselho Editorial da Revista E no dia 19 de setembro de 2008

A televisão pública, durante décadas, na Europa, foi o modelo preferencial da radiodifusão dessas democracias saídas da Segunda Guerra. Havia a preocupação de que, se as ondas eletromagnéticas fossem entregues a empresas privadas, elas, segundo a mentalidade da época, poderiam privilegiar interesses particulares dentro do debate público. Haveria aquilo que, na formulação de alguns pensadores ou dirigentes da socialdemocracia da Europa, seria a colonização do espaço público – que não é uma expressão que eu adotaria sem declinar a origem, porque ela é datada. De qualquer forma, o que seria a colonização do espaço público? Seria a predominância sobre os interesses públicos de lógica ou de agenda comprometida com grandes interesses econômicos. O termo colonização vem dos domínios coloniais, dos imperialismos coloniais, ou seja, os parâmetros do país dominador acabam organizando a vida do país dominado, e é um pouco essa a idéia da colonização. A colonização do espaço público, se acontecesse nessa visão, suprimiria, ou ofuscaria, ou mesmo oprimiria temas importantes para as pessoas, muitas vezes pessoas que não têm acesso ao poder econômico. A discussão do espaço público tornar-se-ia uma discussão colonizada por uma lógica comercial. Isso a gente sente muito, em muitos momentos, inclusive no Brasil. Por isso, para garantir que todas as pessoas tivessem acesso à condição de emissor de conteúdo, para garantir que não houvesse opinião em detrimento de outra, mas que houvesse uma diversidade de pontos de vista, para garantir que culturas comercialmente não viáveis tivessem espaço na radiodifusão, se optou por um sistema público de comunicação. Portanto, o sistema que não tem objetivo comercial, que não veicula publicidade como a televisão comercial faz e que não é pautado pelo desempenho econômico. Isso cria um modo de comunicação que dá visibilidade a coisas que as redes comerciais não podem explorar. Não que elas não queiram porque são malvadas, mas elas não podem. Não cabe na dinâmica que elas precisam adotar. Recentemente, essa paisagem européia mudou um pouco de proporção. Hoje nós devemos ter algo em torno de 40% de TVs públicas e 60% de comerciais – às vezes mais, às vezes menos. Isso tanto em audiência como em orçamentos. O interessante nesse equilíbrio é que as funções da TV comercial não são supridas pela pública, e as funções da pública não são supridas pela comercial.


Radiobrás

Eu conto a experiência da Radiobrás em um livro chamado Em Brasília, 19 horas. Era uma empresa estatal que tinha uma missão muito aprisionada pela mentalidade dos governos autoritários, ou seja, o uso dos sistemas estatais ou públicos para fazer promoção das autoridades, uma promoção tão personalizada que chegava a ser privada. Isso eu dizia que era uma resistência daquela tradição nefasta do patrimonialismo no campo das comunicações, no sentido de usar ou se valer de recursos públicos, instalações públicas, para fins privados. Os meios públicos no Brasil, tirando um pouco a TV Cultura, são usados para promover ou governador ou presidente da república, como se fossem assessorias de imprensa privadas, só que são equipamentos públicos. Nós vivemos em uma cultura política dentro da qual aceitamos com a maior resignação e indiferença que um governante use estúdios, microfones e antenas públicas para promover a si mesmo. Se nós encontrássemos a mesma coisa em um hospital ou escola pública, provavelmente iríamos reagir indignados, numa ira cívica, porque essa escola não é dele. Se um governador matriculasse todos os seus parentes na escola e colocasse todos os seus correligionários para dar aula nessa escola, nós iríamos fazer passeata na rua: isso não está certo, a escola é de todos. Mas, estranhamente, a cultura política brasileira aceita que a televisão [pública] mostre secretários falando sem parar, que correligionários sejam editores e que se empreguem parentes. Ou seja, nossa cultura política aceita que se use esse equipamento para os fins que a socialdemocracia temia, na Europa. Nós temos isso no Brasil por meio das emissoras públicas. A entrada privilegiada de grandes interesses partidários, portanto privados, particulares, na esfera pública, por meio de instituições de comunicação pública e que foram apropriadas por uma lógica patrimonialista. O trabalho que eu fazia na Radiobrás era de mudança de mentalidade, de método de gestão, de pauta e tudo mais, que resultou em uma alteração da qualidade da discussão sobre comunicação pública no Brasil. Depois resultou também em um processo de mudança das próprias instituições da administração federal de comunicação até chegar na TV Brasil, que são caminhos que eles conseguiram trilhar, mas eu já não estou nisso, embora tenha, durante muito tempo, dito que era necessário sair daquele modelão governista e entrar em um modelo que permitisse uma comunicação do público para o público, segundo o interesse público, sem interferência governamental.



“Havia a preocupação [na Europa] de que, se as ondas eletromagnéticas fossem entregues a empresas privadas, elas poderiam privilegiar interesses particulares dentro do debate público”