Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Mostra Sesc

REVISTA E - MARÇO 2008


União entre arte e tecnologia amplia as possibilidades da apropriação de referenciais e da criação coletiva, dando novo peso à originalidade e relativizando o conceito de plágio



Um evento como a Mostra Sesc de Artes - Circulações (veja boxe Colaboração do público), composto de artistas que lançam mão de instrumentos como a internet e o celular na concepção de seus trabalhos, é bom gancho para discutir dois aspectos da relação entre arte e tecnologia: a apropriação e a criação coletiva. O primeiro se refere à prática de criar obras com base em conteúdos já elaborados - fragmentos de outras peças artísticas, imagens, sons, textos etc. O segundo, como o próprio termo denuncia, refere-se a trabalhos criados em grupo - coletivos de artistas plásticos ou VJs, grupos de teatro, parcerias musicais, livros escritos a várias mãos, e por aí vai. Nenhum dos dois conceitos, portanto, pode ser considerado recente. "A palavra apropriação traz em si uma série de referências que remontam à produção dos anos 60 e 70", esclarece o professor de história da arte e coordenador do curso de artes plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), Marcos Moraes. Quanto à criação coletiva, pode-se estabelecer também uma trajetória igualmente antiga. "A produção coletiva no audiovisual, no contexto, vem desde os anos 70, com o cinema militante, que produziu uma série de trabalhos feitos de forma colaborativa entre os cineastas, os quais na época tinham dificuldade de acesso aos equipamentos", explica a pesquisadora, crítica e curadora de arte e tecnologia Christine Mello. No campo das artes plásticas, a crítica cita como exemplo a chamada mail art, feita também nos anos 70. O termo em inglês pode ser traduzido para algo como arte postal. "Era uma arte feita pelo correio", esclarece Christine, "que envolvia artistas representantes das várias facetas e dimensões da arte conceitual. A idéia era acabar com a noção do objeto artístico para criar uma noção de arte como idéia, como pensamento."


  Audiovisual coletivizado


É por meio da rede mundial de computadores que se tem acesso a vários tipos de conteúdo, e é ela também que coloca o mundo em contato. Já o aparelho celular, além de revolucionar a telecomunicação, transformou todos em "fotógrafos" e "cinegrafistas". Para Christine Mello, "é possível dizer que hoje, com o celular, temos um audiovisual coletivizado". Os artistas, claro, apropriaram-se dessas ferramentas. É a net art (arte pela internet ou usando-a como suporte) de um lado, músicas em formato mp3 aumentando o repertório de músicos de outro lado - questões legais à parte -, e, em ambos, imagens podendo ser capturadas em tempo integral. "Muitas vezes, as imagens mais interessantes que a gente vê nos telejornais ou nas revistas são amadoras", explica a pesquisadora.




  Questão contemporânea

Muitos especialistas e artistas falam em revolução. Logo, há que se supor que sejam grandes as mudanças. E são. "Os artistas, que antes eram os únicos a deter o poder do simbólico, ou seja, de construir imagens, estão sendo destituídos desse lugar", afirma Christine. "Está havendo uma realocação de forças." O conceito de artista não é a única "grandeza" a se tornar variável nessa equação. A originalidade e o plágio também ganham novo valor na era do control C + control V (copiar e colar em "informatiquês"). "Copiar não quer dizer mais falta de criatividade na arte", afirma Julieta Machado, técnica do Sesc Pompéia e uma das organizadoras de uma exposição que, não coincidentemente, recebeu o nome de Ctrl C + Ctrl V.

A exposição, que vai até o dia 2 de dezembro, tem como linha curatorial reunir "artistas apropriadores" e suas criações - coletivas em alguns casos. Foram reunidas 117 obras. "Você pode criar a sua obra partindo de outra, é uma origem", diz Julieta. Quando o assunto é originalidade, o músico e VJ Igor Medeiros, do coletivo Media Sana (www.mediasana.org), que produz vídeos com a colagem de imagens da televisão, é categórico: "Originalidade não me interessa", diz. Para ele o plágio é a parte mais "divertida" de todo o processo. "Como esconder influências ou apagar as fontes? Como reconhecer os débitos que um trabalho tem com o outro? Bom nisso [em originalidade] era o Gregório de Matos ou a Cecília Meireles", escreve na resposta enviada por e-mail.

Marcos Moraes esclarece que talvez não o plágio, mas a "referência", como ele prefere denominar, está à espreita em qualquer produção. "Cada vez mais parece difícil para um artista, ou para nós mesmos, trabalhar ou desenvolver qualquer coisa sem toda essa referência, esse bombardeamento de informações que a gente tem em tudo, incluindo a internet", analisa. "Acho que essa é uma das questões da arte contemporânea, na medida em que boa parte dos artistas deixou de produzir simplesmente com a chapa de metal ou o pincel."


  Ordem libertária

O mesmo vale para a música. Não é de hoje que o DJ tem feito parte do cenário musical. E quer figura mais "control C + control V" do que aquela que faz música usando composições alheias? "Os DJs vivem uma dupla tensão", explica a pesquisadora do Núcleo de Estudos Musicais (NUM) do Centro de Estudos Sociais Aplicados (Cesap), vinculado à Universidade Candido Mendes, Tatiana Braga Bacal. "A primeira vem do fato de eles estarem num meio de caminho entre o não-reconhecimento, inclusive jurídico, de sua atividade e a sua organização como uma classe. A segunda surge porque eles estão inseridos numa atividade que rompe com os ideais sacralizantes do artista." Tatiana, que é especialista em música popular e manifestações culturais contemporâneas, esclarece que uma forma encontrada pelo pessoal das pickups de garantir seu lugar ao sol no ambiente dos músicos é tornarem-se produtores.

Ou seja, deixar de só tocar a música dos outros nos clubes noturnos e começar a fazer a sua própria. Mas mesmo isso não significa necessariamente o fim da apropriação. Um bom exemplo é o produtor norte-americano Girl Talk - codinome do garoto Gregg Gillis, de 25 anos, que esteve no Brasil no mês passado. O DJ tem tocado na pista de nove entre dez lugares modernos, mas nenhum dos sons ouvidos em seu disco, Night Ripper, foi composto por ele. "Girl Talk representa a nova ordem libertária da música sem dono da era digital", escreveu o jornalista Jotabê Medeiros na abertura da entrevista com o DJ publicada pelo jornal O Estado de S.Paulo em 13 de setembro. "Seu disco rapina trechos de músicas de 167 artistas, alguns deles mais de uma vez, repetidamente, o que dá uma média de citação, num único álbum, de 6.250 samples."

O Brasil também tem nomes nessa cena. O DJ paulista Marky, que estourou no circuito internacional há cerca de três anos, tem oito CDs lançados, todos compilações de músicas de outros produtores - que possivelmente também se apropriaram de outras referências. Já a técnica, o estilo das mixagens e a escolha das músicas - "o que faz um bom DJ", segundo Tatiana Bacal - são 100% dele. "A proposta do artista é selecionar, preparar um material que permita possibilidades outras", afirma Marcos Moraes. "Acho que isso é próprio da criação, próprio da obra de arte, quanto mais leituras ela permitir, maior é a capacidade, o significado e a importância que adquire."




  Reciclagem

A apropriação e a criação coletiva aparecem como características marcantes no trabalho dos videoartistas - ou videomakers -, o que pôde ser constatado em muitas das 800 obras expostas no 16º Festival Internacional Sesc Videobrasil deste ano, realizado na unidade provisória Sesc Avenida Paulista. "Houve uma quantidade significativa de trabalhos que mostram mais do que uma simples apropriação, trazem uma discussão acerca das próprias experimentações desses meios eletrônicos e digitais", analisa o professor Marcos Moraes, que participou da comissão seletiva dos trabalhos. Entre eles, um exemplo explícito de apropriação: Psycho(s): A Live Remix, do coletivo chinês Ip Yuk-Yiu & ST. O trabalho misturou cenas de Psicose (1960), de Alfred Hitchcock, com imagens da refilmagem do clássico feita pelo cineasta norte-americano Gus van Sant, em 1998. Christine Mello vê nessas experiências uma demanda por parte dos artistas para a reformulação do conceito de direito autoral. "Para falar sobre apropriação na arte é preciso considerar o que tem de político por trás disso", diz a pesquisadora, que também integrou a comissão seletiva do Videobrasil. "Hoje em dia isso é reivindicado por uma parcela dos realizadores do audiovisual como uma reciclagem.

Existem muitas imagens no mundo, traduzidas pelas redes de comunicação de um modo geral, e o que o artista faz é se apropriar dessas imagens e trabalhar com elas - ele não considera isso um gesto de tirar a autoridade de quem produziu aquela imagem, mas sim uma reciclagem." É exatamente essa a palavra usada pelo também músico e VJ Gabriel Furtado, parceiro de Ivan Medeiros no Media Sana. "A gente denomina o trabalho de reciclagem de mídia", diz. "E nisso tem uma reflexão sobre esse processo." O artista afirma que para a maioria das pessoas a mídia é "supostamente descartável, vai para o lixo", e que é exatamente esse material descartado a origem do trabalho do grupo. "Nós escolhemos determinadas pautas e recolhemos da informação que consumimos no dia-a-dia aquilo que possa interessar.

Eu sempre assisto a televisão com um videocassete à disposição." O escritor capixaba Reinaldo Santos Neves, que dirige o Núcleo de Estudos e Pesquisas da Literatura do Espírito Santo, na universidade federal do estado, também encontra na internet as informações que vão parar em sua obra. "Para escrever A Longa História [Bertrand Brasil, 2007], muni-me de algumas fontes impressas, sim, mas foi a internet, mediante a consulta a cerca de 70 sites (consignados na bibliografia), que me permitiu enriquecer substancialmente o relato", escreve no texto A Internet como Campo de Pesquisa para o Escritor, publicado no site do Salão do Livro de Belo Horizonte (www.salaodolivro.com.br). "O romance é ambientado na Idade Média, e na internet obtive informações sobre feiras, superstições, peregrinos, produção de manuscritos", conta o autor, que já fez parte de um quarteto de escritores que produzia diretamente na rede. "Escrevíamos mensalmente para um jornal on-line de Vitória [capital do Espírito Santo]."





Segunda vida
Ambiente virtual apropria-se de ?valores reais e cria o "metaverso"

Em 1999, em um escritório improvisado em cima de uma garagem nos Estados Unidos, um jovem chamado Philip Rosedale desenvolveu um sistema, no esquema cliente e servidor, que permitia ao usuário "viver" uma vida em um universo - "metaverso", como vem sendo chamado - virtual e tridimensional: o Second Life (segunda vida, em inglês).

Depois de seis anos de tentativas de fazer o projeto vingar, a empresa norte-americana de informática Linden Research comprou a idéia. Hoje, o Second Life é um fenômeno mundial que rende US$ 10 milhões por mês à empresa, segundo informa reportagem publicada no último número da revista Comunicação Empresarial. O grande diferencial dos outros sistemas ou jogos que se propunham a explorar a realidade virtual é que no Second Life todos os aspectos da vida real foram apropriados: da economia, já que o local possui sua moeda própria, o Linden dollar, com que se
negociam até mesmo produtos de verdade, ao marketing - empresas como a IBM e a Petrobras já anunciaram no metaverso -, passando pela arte. "Qualquer um de nós que entra na internet encontra alguma imagem, alguma referência, algum trecho de vídeo", afirma Marcos Moraes, professor de história da arte e coordenador do curso de artes plásticas da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap).

"Agora, podemos pegar tudo isso e levar para o Second Life. E criar lá alguma coisa a partir dessas imagens e referências, cujo padrão inicial é a nossa realidade." Para Moraes é possível encontrar um exemplo "extremo" de apropriação, inclusive em arte, nesse metaverso. "Tudo lá me parece apropriação." A pesquisadora, crítica e curadora de arte e tecnologia Christine Mello complementa dizendo que, na verdade, alguns artistas já aderiram a essa experiência. "O Second Life é a existência em um ambiente virtual, multiusual e coletivo", analisa. "E muita gente já está fazendo arte lá." Christine conta que a professora da pós-graduação em comunicação e semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) Giselle Beiguelman mantém uma galeria de arte no Second Life e que na Faculdade Santa Marcelina - onde Christine dá aula - os alunos de um curso de mestrado de artes plásticas já têm realizado "ações artísticas a partir do Second Life".



Colaboração do público
Mostra Sesc de Artes 2007 - Circulações destaca a interação com as obras

A tradicional mostra de artes realizada anualmente pelo Sesc São Paulo acontece em 2007, de 30 de outubro a 11 de novembro, no interior - onde passa por 78 cidades - e de 13 de novembro a 2 de dezembro, na capital, sob os signos da colaboração e da interatividade e em diferentes aspectos. "Às vezes, quando falamos em interação nas artes, não necessariamente precisa ser aquela na qual o espectador interage com a obra", explica o coordenador da mostra na capital Marcelo Bressanin. "Podemos falar também do público sendo levado a interagir com a cidade por meio de uma obra, por exemplo, ou ainda dos próprios artistas interagindo entre si". O eixo curatorial da atual edição nasceu de uma reflexão da equipe da Gerência de Ação Cultural (Geac) do Sesc São Paulo acerca da própria atuação da instituição no campo da arte. "O Sesc já oferece para o público uma extensa programação artística o ano todo", conta Bressanin. "Por isso, a idéia desta vez foi mostrar para as pessoas como esse trabalho de seleção é feito".

A idéia, então, foi reunir obras - 40 no total - cujos processos de produção se abrem para o público de alguma forma. Um dos exemplos citados por Bressanin é o projeto 14 Por 32 No 3º, misto de instalação e espaço para performances de dança, desenvolvido pelos coreógrafos Vera Sala e Alejandro Ahmed, o grupo musical mineiro O Grivo e os artistas multimídia Leonardo Crescenti, Lucas Bambozzi, Rejane Cantoni e Thiago Romagnani "Eles vão ocupar um andar inteiro da unidade provisória Avenida Paulista no qual o público vai poder observar o processo de criação deles". Outra obra destacada pelo coordenador é o trabalho do coletivo argentino Difusa Fronte(i)ra e BiNeural-Monokultur (foto) La Culpa La Tiene Niemeyer/A Última Trilha de J.S., realizado na unidade Consolação.

A proposta é "equipar" o público com tocadores de mp3 no quais se poderá ouvir um roteiro próximo à unidade sugerido por uma gravação. O "áudiotur", como chamou Bressanin, é individual e rompe com a relação tradicional entre o artista e o espectador - um aspecto também abordado pela Mostra este ano. "Nesse caso é o público interagindo com a cidade", explica o coordenador. "Veja que não existe um espetáculo formalizado, tudo faz parte de uma narrativa". No Brasil, o trabalho será realizado com a colaboração do escritor brasileiro Tiago Novaes, autor dos textos ouvidos durante o "passeio". Confira a programação completa da Mostra Sesc de Artes 2007 - Circulações no Em Cartaz desta edição. Para maiores informações sobre o evento visite o blog http://mostrasesc.wordpress.com.



Saiba Mais
Ambiente virtual apropria-se de ?valores reais e cria o "metaverso"

Modernismo - Nas décadas de 1920 a 1930, o movimento modernista já apostava na apropriação como meio de expressão. Entre os exemplos é possível citar o Poema Tirado de uma Notícia de Jornal, de Manuel Bandeira, que, em 1930, faz uso do jornalismo para criar arte. Eis a notícia segundo Bandeira:

João gostoso era carregador de feira-livre e morava no morro da Babilônia num barracão sem número
Uma noite ele chegou no bar Vinte de Novembro
Bebeu
Cantou
Dançou
Depois se atirou na Lagoa Rodrigo de Freitas e morreu afogado.


Arte postal (mail art) - O artista plástico norte-americano Ray Johnson começou a circular a arte postal nos Estados Unidos já no início dos anos 1960, quando criou sua New York Correspondance School of Art (Escola de Arte por Correspondência de Nova York). Essa forma de criação coletiva tem entre seus representantes brasileiros o artista plástico Ozéas Duarte, que, em meados dos anos 1980, usava guardanapos como suporte e propôs o "tema": Como você limpa sua boca?


Pop art - O que fazia o artista plástico norte-americano Andy Warhol se não elaborar seus trabalhos como numa linha de produção? Um dos casos mais famosos foi o retrato das sopas em lata da marca Campbell que Warhol transformou em uma série, no início da década de 1960. Outra prova de que a originalidade para ele era relativa foi o nome que deu ao seu ateliê em Nova York: Factory (fábrica, em inglês).


Cinema remix - Em 1994, o teórico de cinema Jean Claude Bernardet "brincou" de recortar e colar e criou o filme São Paulo, Sinfonia e Cacofonia, um mix de imagens produzidas por outras pessoas que o cineasta reuniu, cortou e colou - bem à moda do que anda tão em voga hoje em dia, na era do "control C + control V". Bernardet assumiu as vezes de uma espécie de VJ que tinha no vastíssimo banco de imagens do cinema nacional a matéria para criar sua obra sobre São Paulo.