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Há 150 anos, surgia o romance Madame Bovary, do escritor francês Gustave Flaubert, patrimônio da literatura mundial

 

Close-up de um porco grunhindo. Corta. Câmera panorâmica passeia bem aberta pela praça da cidade. Corta de novo. Costas de um casal debruçado na janela." Essas indicações de ângulos e seqüências, típicas do cinema, são na verdade a descrição de uma passagem do livro Madame Bovary, escrito há 150 anos pelo francês Gustave Flaubert (1821-1880). Quem faz a comparação é o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), Samuel Titan Junior, e o estilo escolhido para a análise justifica-se porque a obra, marco da literatura mundial, tem entre seus méritos o de promover a antecipação de uma linguagem que se formalizaria mais de 30 anos depois. "Flaubert é um dos grandes precursores do cinema", afirma Titan. "Em Madame Bovary, ele desenvolve essa cena complexa que acontece ao mesmo tempo em três diferentes níveis espaciais de ação." O professor, autor da tese de doutorado "Ares de Romance - Realismo e Gêneros Literários nos Três Contos de Gustave Flaubert", descreve o livro como um "projeto moderníssimo", inovador ao "encolher o lugar do narrador para expandir a potência plástica da prosa", explica. "Com isso, começa a desenvolver técnicas de cortes, de passagens e de montagem." As ligações com o cinema podem ser verificadas também no esqueleto da narrativa, construída nos moldes do que hoje chamaríamos de roteiro, segundo a professora da FFLCH Verónica Galíndez Jorge. "Uma das estratégias usadas por Flaubert era escrever cena por cena", revela. "Ele cunhou a expressão roteiro, que em francês se chama scénario."

 

Imoralidade
A saga de Emma Bovary, personagem central da obra, começou a tomar forma em 1851. Lançado inicialmente em quatro folhetins no periódico Revue de Paris, em 1856, com o subtítulo Mouers de Province (Costumes do Interior, numa tradução livre), o romance foi publicado como livro, em dois volumes, no ano seguinte. A história gira em torno de uma mulher sonhadora, pequeno-burguesa, criada no campo e que busca viver "a paixão" que tanto lia nos livros de literatura sentimental. A jovem casa-se com o médico Charles Bovary, mas logo percebe que sua personalidade almeja mais que um marido e uma casa. O desejo a leva ao adultério, que se torna sua esperança de felicidade. "Emma é uma mulher insatisfeita", explica Verónica. "Ela procura sanar todo o tédio de sua vida com os amantes." A temática resultou em um processo contra Flaubert por imoralidade. Ocasião na qual o escritor proferiu a célebre frase "Emma Bovary c'est moi" - ou "Emma Bovary sou eu". Se a resposta o ajudou a se defender da acusação, não se sabe, mas serviu para criar mistério em relação a suas intenções com o dito. Afinal, o que ele quis dizer com isso? "Significa que a tragédia inescapável de Madame Bovary, de decepção e de desapontamento com o mundo, vale para ela e para todos nós", declara Samuel Titan. Ele também destaca o fato de Emma carregar consigo a essência de outros personagens da literatura. "Olhando para trás, Madame Bovary condensa muitas personagens em uma só, como a figura da mulher de 30 anos, tão presente na obra de Balzac [Honoré de Balzac, escritor francês anterior a Flaubert]", comenta. "Mas daí para a frente é o contrário, Emma Bovary gera muitas personagens em obras de grandes escritores posteriores a Flaubert. Luísa, de Eça de Queirós [personagem de O Primo Basílio], e Capitu, de Machado de Assis [pivô da trama de Dom Casmurro], por exemplo, são herdeiras de Madame Bovary."

 

A paródia e o objeto
A desejosa e sonhadora personagem de Flaubert não ficou restrita ao âmbito da ficção. A força do arquétipo gerou o termo bovarismo, incorporado aos dicionários e usado para descrever "a tendência que certos indivíduos apresentam de fugir da realidade e imaginar para si uma personalidade e condições de vida que não possuem, passando a agir como se as possuíssem", como se pode ler no Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. "Ousaria dizer que Flaubert fundou um novo mito feminino, da mulher muito mais complexa que não vai mais se contentar com o casamento arranjado ou com a monogamia", afirma Verónica. "Se você pensar em qualquer personagem feminina que não se contente com um só amante nunca, vai chegar muito próximo da Emma Bovary."
Ao sintetizar uma característica humana, o personagem entra para uma lista de outros nomes da ficção que passaram a designar personalidades reais, por assim dizer. Um dos exemplos é Dom Quixote, protagonista do livro homônimo, escrito pelo espanhol Miguel de Cervantes, em 1605, e que deu origem ao termo quixotesco, qualidade do "indivíduo ingênuo e generoso, que luta inutilmente contra as injustiças". As semelhanças entre Bovary e Quixote, aliás, não param por aí. Em ambas as obras, os autores criticam gêneros literários que consideravam obsoletos lançando mão dos próprios elementos desses estilos. Ou seja, Dom Quixote expõe ao ridículo a novela de cavalaria por meio da saga de seu personagem cavaleiro; Madame Bovary faz o mesmo com o romance sentimental, ou de folhetim, contando a vida de uma jovem sonhadora. "O fato é que a escrita de paródia sempre tem muita intimidade com seu objeto", avalia Titan. "Um dos primeiros modos que a crítica desenvolveu para dar conta de entender Emma Bovary foi chamá-la de Dom Quixote de saias, isso em 1857."

 

Verbalmente perfeito
Para desenvolver sua tese de doutorado sobre Flaubert, "Como as Mil Peças de um Jogo de Escritura nos Manuscritos de Flaubert", Verónica Galíndez entrou em contato com manuscritos do francês - algo em torno de dez páginas de anotações para cada uma produzida para o romance. "É um universo imenso de rabiscos", conta. Daí vem um dos termos usados nas análises do autor: mot just, ou palavra exata. "Quando você lê Flaubert, sabe que cada frase foi construída com muito esforço, não há repetição nem desleixo", comenta o escritor Milton Hatoum, que traduziu do escritor a obra Três Contos (Cosac Naify, 2004), com o professor Samuel Titan. "Flaubert provou que, para ser escritor, escrever bem não basta. Você tem de transformar essa escrita em uma obra de arte", ressalta Hatoum.
Os estudiosos afirmam que o esmero era a forma que Flaubert dava à sua ambição de elevar a prosa ao grau de elaboração e refinamento literário da poesia e do teatro francês. A concretização ou não desse esforço é outra discussão. O consenso é que Flaubert firmou um estilo literário que dividiu a literatura ocidental entre antes e depois de Madame Bovary. Nada mal para "um romance sobre o nada", segundo a definição do próprio autor. "Quando ele diz que vai escrever um livro sobre o nada, significa que quer escrever um objeto verbal puro, que se sustenta por si só", diz Samuel Titan. "Quer dizer, o assunto, o tema, o ambiente e o cenário não são importantes diante do impulso de fazer um livro verbalmente perfeito."
Se este breve perfil aguçou a curiosidade do leitor de saber o desfecho da conturbada vida de Emma Bovary, Samuel Titan e Verónica Galíndez dão uma valiosa dica: a melhor tradução do romance para o português é a de Fúlvia Moretto, editada em 2007 pela Nova Alexandria.

 

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Caprichos de Emma
Escrita revolucionária

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Caprichos de Emma

Sesc Carmo celebra os 150 anos de Madame Bovary

Para comemorar a data que marca um século e meio de publicação do livro Madame Bovary, do escritor francês Gustave Flaubert, o Sesc Carmo realizou, no dia 27 de setembro, o projeto Mulheres Bovary. O evento teve início com o encontro Rupturas - Literatura, Ética e o Comportamento Feminino dos Séculos 19 ao 20, no qual estiveram presentes a escritora e professora da Academia Internacional de Cinema Marcia Tiburi e o professor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), Samuel Titan Junior. Durante o bate-papo, os convidados falaram sobre como a obra de Flaubert se insere no contexto do romance moderno e do realismo literário. Em seguida, com direção de Fabio Torres, o grupo Teatro da Diversidade fez uma leitura dramática do texto Emma - Suas Rendas, Seus Caprichos, de Hercules Kotsifas, que aborda a história da sonhadora Emma Bovary.

 

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Escrita revolucionária

Ao se dedicar exclusivamente à literatura e tocar em temas polêmicos, Gustave Flaubert abalou a moral burguesa da França do século 19

 

Gustave Flaubert (foto) nasceu na cidade de Rouen, na França, em 12 de dezembro de 1821. Filho de um cirurgião-chefe do hospital local, ele escreveu aos 16 anos seu primeiro romance: Paixão e Virtude. Após ser reprovado nos exames da Faculdade de Direito de Paris, Flaubert decidiu se dedicar integralmente à atividade da escrita. Tal escolha o diferenciava de outros escritores contemporâneos, como os já renomados Alphonso de Lamartine e Victor Hugo, que também atuavam na política francesa. "Ele quis ter a liberdade de só escrever, sem ter de se comprometer com o resto", afirma a professora da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH), da Universidade de São Paulo (USP), Verónica Galíndez Jorge. O curioso é que muitos anos depois o autor foi muito criticado justamente por essa opção. "A partir dos anos de 1950, [o filósofo francês Jean-Paul] Sartre disse que não se podia mais ler Flaubert porque ele era um alienado. Mas depois chegou à conclusão de que a escolha pela arte é revolucionária." Em 1857, ao publicar o livro Madame Bovary, Flaubert foi processado no Tribunal de Paris por ofensa à moral pública e à moral religiosa. Desde então, a protagonista desse romance, a adúltera Emma Bovary, é uma das personagens mais debatidas da literatura universal. Antes de morrer, em 8 de maio de 1880, Flaubert ainda escreveu Salambô (1863), Educação Sentimental (1869), A Tentação de Santo Antão (1874) e Três Contos (1877).

 

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