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Matérias da edição

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Ficção Inédita

REVISTA E - PORTAL SESCSP

 

 


 

 

por Artur Oscar Lopes

 

Aos poucos, ao fim da noite, a semiconsciência emerge do sono profundo. As embaciadas lembranças dos fatos reais lentamente se mesclam com o mágico mundo dos sonhos; é difícil distinguir entre eles. Vagarosamente, a pesada obscuridade do quarto se dispersa, banhada pela tênue luz do sol. Nesse ambiente difuso, as formas angulosas dos móveis se fundem com desconexas visões da confusa lógica dos sonhos.
Vejo um bonde a correr por entre ruas e avenidas. Com ímpeto, energia e envolto em rangidos metálicos, ele se precipita sobre o espaço vazio à sua frente. Os polidos trilhos de aço guiam seu caminho pelo intrincado labirinto das ruas da cidade. No sonho, o céu azul se estende majestoso até onde a vista alcança; subitamente, o veículo pára em uma esquina qualquer. Sobe então nosso primeiro personagem: este jovem tem o pensamento leve como penas de passarinho. Senta ao fundo do vagão, embriagado de vento - o sutil ar lhe penetra pelas narinas; um sopro fresco esvai através da fresta da janela entreaberta a seu lado. Está distraído - como só os jovens sabem ser. Talvez cantarole uma música que, por certo, só ele ouviria.
Na parada seguinte, é a vez dela, a segunda personagem: entrou sem saber suas falas, como é sempre o caso na vida. Subiu pela parte de trás, passou por ele e sentou à sua frente. Na passagem, os olhares se cruzam e aí, nesse ato, o destino aciona uma intrincada engrenagem de infinitas possibilidades, esboça uma peça de imprevisível final.
Sonolento, me viro na cama, afofo o travesseiro a pensar quem seriam; talvez ele fosse eu - não posso assegurar. Seja lá quem for, olhou para ela e teve certeza - como só os jovens sabem ter - do que não lembro ao certo; algo que envolve amor e paixão; dos avassaladores e brutais; dos que podem ferir se não correspondidos; bem daqueles.
Ela fingia olhar, detidamente, a fileira dos prédios, as árvores floridas, os pedestres na rua; sua nuca, vazia de olhos, mirava o rapaz sentado bem atrás.
O moço contemplava extasiado os longos cabelos da moça, que se derramavam volumosos sobre o espaldar do banco. Eram como densa cortina de negro veludo a cobrir luminoso palco. Ele aguardava com ansiedade que dos bastidores viesse, enfim, a ordem de começar o espetáculo; seria uma comédia ligeira, um drama de amor ou, quem sabe, uma funesta tragédia? Do outro lado do pano, na bela face, uma tênue curva desenhada no canto da boca sugeria tensão; se ele pudesse contemplar seu rosto, saberia que ela estava atenta, aguardava.
Indeciso, o rapaz não sabia como lhe dirigir a palavra; um pouco nervoso, sua mão alisava compulsivamente o assento do banco, como a buscar inspiração.
Ela trazia as mãos dispostas sobre o colo, no regaço do vestido; os finos dedos - entrelaçados sobre a pequena bolsa - levemente suavam.
Finalmente, o moço, tomando coragem, tocou-lhe mansamente no ombro; ela estremeceu e virou-se para mirá-lo; seu rosto merecia uma salva de palmas. Deu um claro sorriso - havia ali luz suficiente para iluminar os lugares mais sombrios do universo. Ela tinha, sem a menor sombra de dúvida, a beleza da artista principal. O que ele disse ficará para sempre perdido nas escuras trevas do inconsciente, irrecuperável… alguns fragmentos de frases, palavras incompreensíveis de difuso sentido, indicavam um encontro no dia seguinte: na Praça da Matriz.
Trocaram breves palavras, porque os olhos já diziam tudo; em seguida, as mãos esgaçadas - alongadas pelo sonho - timidamente se tocaram, tênue contato que lembrava artes de anjos.
E ele desceu do bonde a flutuar no espaço; seus pés prescindiam de todo e qualquer assento… passou o dia em perdido delírio, em sonhos de incomensurável doçura.
No dia seguinte, na hora acertada, lá estava ele sentado no banco da praça. Será que ela viria? - perguntava-se enquanto relembrava suas falas. Em princípio seriam apenas simples palavras - sonoros colares de sílabas dispostas -, mas, na verdade, se tratava de muito mais que isso; eram projetos de uma felicidade em vida; eram apaixonados poemas inspirados em sonhos, expressões mágicas cheias de significado, versos rimados, declarações de amor.
Os que por ali passavam - apressados - não se apercebiam de que eram meros figurantes - personagens acidentais - dessa onírica peça teatral. Os possantes holofotes da luz do dia estavam centrados sobre ele; os cenários à sua volta, por sua vez, eram sólidos, pareciam reais: prédios públicos, a imponente Igreja da Matriz, o Palácio do Governo, árvores frondosas, chafarizes, estátuas eqüestres e, ao fundo, o Theatro São Pedro, palco dos grandes espetáculos musicais e teatrais da cidade. Ouvia ao longe a orquestra ensaiando a ópera Madame Butterfly: oboés, fagotes, violinos, solfejos da soprano…
Ela entrou em cena confiante - atraía todos os olhares; trazia a desenvoltura das grandes atrizes e o brilho resplandecente da personagem principal. De suas carnes emanavam um doce frescor e um delicado perfume; era bela como uma deusa.
E sentou-se a meu lado.
Aí, no sonho, tudo se funde e confunde: as palavras não saíam da boca; tentava falar, mas dali nada se ouvia. Ele sentia que afundava no banco, que era preciso articular uma frase, mas a língua travava. O som, quem cuida do som? Ele esperava que alguém lhe soprasse, dissesse o que recitar. No sonho agitado, eu tentava falar, queria ajudar, mas a boca estava vazia de sons… em vez de palavras, ecoavam surdos murmúrios, ruídos inaudíveis.
O moço olhava ao seu redor na expectativa de surgir o homem do ponto. Sua esperança era que uma fresta - coberta por indefectível forma de concha - se abrisse do chão à sua frente - como no palco do Theatro São Pedro, no canto da praça -, com um salvador membro da equipe de cena a lembrar suas falas. Mas ninguém ouviu suas súplicas. Embaraçado, ele nem mesmo conseguia olhar para a moça. Ela, confusa, contorcia as mãos enquanto mirava as pequenas lajotas brancas e pretas do pavimento. Ao fundo ecoava - vinda do ensaio da ópera - a pungente voz da soprano, que cantava a parte mais triste e melancólica do conhecido libreto. A moça a seu lado, sem saber o que fazer, despediu-se constrangida; pediu que lhe esperasse no outro dia na saída da escola. E, subitamente, se foi.
Ele ficou ali sentado por horas a fio; sem saber como explicar o acontecido. Ficara nervoso e fizera um papelão: ele merecia apupos e vaias.
Passou a noite em claro a decorar o que lhe diria no outro dia. Da próxima vez estava tudo acertado; o texto na ponta da língua; sem meias palavras, lhe falaria de um amor imenso - nada mais.
Na saída da escola - um velho prédio com gastas escadarias de mármore, perto das Lojas Renner -, não a encontrou. Alguém - uma amiga dela - chamou-lhe a um canto e passou o recado: ela não viria, pedia que não mais lhe procurasse; mandava adeus.
Aturdido, ele saiu caminhando sem direção e sem rumo. O mundo ruía, o céu vinha abaixo, o cenário despencava. Seu primeiro caso de amor terminava assim; nem havia começado: acabou no primeiro ato. Ela era tão linda e ele estava perdidamente apaixonado. A moça era tudo para ele. A vida não mais fazia sentido.
O desastre se deu porque as palavras faltaram, um texto mal ensaiado, um roteiro mal produzido.
Sozinho, enquanto caminhava em meio à multidão da Rua da Praia, ele chorava sem parar; as lágrimas escorriam em profusão; não podia contê-las, vinham de dentro, das entranhas do ser. Ela mandara uma amiga, nem mesmo aparecera para lhe dar adeus.
Profundamente, sofria.
O pior ainda estava por vir; enquanto avançava entre os incontáveis pedestres, percebeu um inesperado vulto que caminhava em sua direção: era ela, que, por acaso, também passava pela mesma calçada. Parei frente a uma vitrina e virei-me de costas para os passantes; não queria que ela me visse naquele estado lamentável. Percebi atônito o reflexo de sua esguia figura no vidro transparente: estava parada junto a mim.
Constrangida, ela disse alguma coisa; não sei bem o quê, mas nada pude responder; agora, era um nó na garganta que não me deixava falar. Lentamente virei o corpo afastando-me dali e, assim, ainda debulhado em lágrimas, segui em frente. Não podia suportar que ela sentisse pena de mim. Ela ficou para trás. Nunca mais a vi. Voltei para a Praça da Matriz e fiquei ali chorando por um bom tempo.
Aqui o sonhado dormir, a incerta realidade e o imaginário palco - agora vazio - se mesclam, se fundem. A seguir, após breve momento, o fato e o sonho se dissolvem e fica apenas a dolorosa lembrança.
O indiscreto sol se insinua no horizonte; e assim a cortina se fecha, os espectadores se retiram, o dia nasce, o despertador toca. Neste mundo de tão poucas certezas, para sempre caberá a pergunta: e as palavras não ditas e os beijos não dados, onde estão? E as longas caminhadas de mãos dadas pela praça, onde foram parar?
Lembro que às vezes um amigo pergunta se é freqüente ter esse sonho ou pensar nesse assunto. Respondo apenas que hoje resido próximo à Praça da Matriz e que os sinos da catedral tocam a cada hora.
Neste momento, por certo, a praça está deserta.

 

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Artur Oscar Lopes é autor, entre outros livros,
de Contos e Crônicas (Edições Inteligentes, 2007)

 

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