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Panorama da economia brasileira

Vivemos um momento extraordinário

LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS


Luiz Carlos Mendonça de Barros
Foto: Alexandre Almeida

Luiz Carlos Mendonça de Barros é engenheiro de produção formado pela Universidade de São Paulo (USP), com doutorado em economia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), ministro das Comunicações e diretor do Banco Central.
Iniciou a carreira profissional como analista financeiro do Investbanco, tornando-se sócio, mais tarde, da Corretora Patente. Desligou-se depois para criar, associada a quatro companhias – Bardella, Brasmotor, Pão de Açúcar e Votorantim –, a empresa que veio a se transformar no banco de investimentos Planibanc.
Em 1993, com quatro outros profissionais, fundou o Banco Matrix. Em janeiro de 2000 instalou, em sociedade com José Roberto Mendonça de Barros, Lídia Goldstein e a Radium Systems, a MGB, especializada na produção e distribuição de cursos profissionalizantes à distância.
Criou também, juntamente com Luís Felipe D’Ávila, a editora Primeira Leitura, responsável pela publicação da revista mensal "República" e por um site com análises políticas e econômicas. É articulista da "Folha de S.Paulo" e sócio-fundador e estrategista-chefe da Quest Investimentos, empresa de administração de fundos.
Esta palestra de Mendonça de Barros, com o tema "A Crise Financeira Mundial e o Brasil", foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, Sesc e Senac no dia 8 de maio de 2008.

Considero-me um sobrevivente na economia brasileira, porque naveguei por ela durante um longo período. Por pura sorte, trabalhei com Roberto Campos, que foi meu primeiro professor de economia e orientador. E depois sempre fiquei na área financeira, passando pelo governo duas vezes. A primeira, no Banco Central (BC), quando o Brasil vivia um período eufórico, pela redemocratização e reencontro com as liberdades políticas, mas um verdadeiro inferno do ponto de vista econômico. Estar no BC era como viver no olho do furacão. Lembro-me de que praticamente todo dia a primeira coisa a fazer era olhar as reservas externas, que estavam sempre na linha-d’água. Convivíamos com uma inflação terrível e foi um período difícil, durante o qual um diretor do BC ou membro da política econômica permanecia no cargo um ano e meio ou dois, no máximo.

Tive a sorte de trabalhar no BC com um grupo de economistas muito jovens – André Lara Resende, Persio Arida, Francisco Lopes – que começou a pensar na estabilização da moeda brasileira. Com 40 anos, eu era o "velhinho" da turma. Como em todo grupo muito jovem, sobrava conhecimento econômico e faltava saber sobre a vida, a política. O Plano Cruzado, que foi a primeira tentativa de estabilização, foi um fracasso. Era preciso repensar o projeto.

Fernando Henrique Cardoso, que era senador na época e muito próximo de nosso grupo, sabia que a mesma equipe de engenheiros econômicos que tinha desenhado o Cruzado planejava uma versão dois do plano de estabilização, revendo os projetos e procurando descobrir o que estava errado. Quando Fernando Henrique foi ministro de Relações Exteriores do governo Itamar Franco, os problemas econômicos continuavam, e o Brasil trocou três ou quatro vezes de ministro da Fazenda. Foi quando Itamar Franco, como que no desespero, resolveu chamá-lo para o Ministério da Fazenda.

Conheço uma parte dessa história: Fernando Henrique estava em Nova York e Sergio Motta, seu braço direito, um dia me ligou dizendo: "Temos de nos reunir porque o maluco do Fernando Henrique aceitou ser ministro da Fazenda". O que o ex-presidente diz, e é verdade, é que não foi maluquice, pois ele sabia que naquela situação era fundamental que o ministro da Fazenda tivesse total acesso ao presidente da República e gozasse de sua confiança. E ele sabia que aquele grupo já tinha uma versão nova do projeto de estabilização. O grande mérito de Fernando Henrique, como político, foi entender que, naquele momento, derrubar a inflação era a prioridade dos brasileiros. E quem resolvesse esse problema se tornaria presidente da República. De fato, ele foi eleito no primeiro turno graças ao resultado do Plano Real, produto bem-sucedido de uma engenharia econômica. Uma das obras-primas dessa engenharia, se a gente pode chamar assim, foi a URV [Unidade Real de Valor], aquela moeda indexada que durou certo tempo e que permitiu que se passasse para a nova moeda com a economia já estabilizada. Esse era o primeiro problema, mas havia muitas outras coisas a fazer na economia. Um erro que houve, entre outros, foi em relação ao câmbio, diante da situação internacional da época. Em 1997, tinha acontecido a crise da Ásia e, em 1998, a da Rússia. Isso nunca permitiu que a estabilização se transformasse em crescimento econômico, e a economia ficou oscilante. Tanto é verdade que José Serra, candidato de FHC à sucessão, perdeu para Lula.

Hoje estou convencido de que uma das coisas fundamentais para que Lula tivesse sucesso foi a BM&F – Bolsa de Mercadorias & Futuros –, que o Brasil tem mas a maioria dos emergentes, como a Argentina, não tem. Qual a correlação entre uma bolsa de futuros, a economia e a política? É que na bolsa de futuros se precifica o futuro em pelo menos quatro anos em termos de inflação, juros e uma série de coisas. Quando ficou claro, em julho ou agosto de 2000, que Lula ia vencer, o mercado precificou o candidato e o PT que ele conhecia. Imediatamente, através do mercado de futuros, o dólar foi para R$ 4 e a inflação pulou para patamares elevados. Costumo dizer que o mercado de futuros permitiu a Lula abrir a porta do inferno e ver o que havia lá antes de entrar. Como era esperto, decidiu: "Deus me livre, não quero isso". E com a vantagem de ter a seu lado o ministro Antônio Palocci, Lula mudou.

Doenças normais

Vivemos hoje um momento extraordinário para a economia brasileira. Pela primeira vez podemos encarar o futuro com otimismo, e é o que está acontecendo. Basta olhar o comportamento dos empresários em termos de investimento para ver que saímos daquela incapacidade de confiar no futuro. Sempre digo que a economia brasileira hoje é capitalista, de mercado, normal e igual a muitas outras, mas no passado não era assim. E como somos agora uma economia normal, estamos sujeitos às doenças econômicas de organismos normais, enquanto no passado sofríamos de males de organismos específicos, como esses da pobreza, de falta de saneamento etc. Não temos mais isso, mas enfrentamos infarto e colesterol alto, quer dizer, doenças de uma economia normal que cresce. A principal dessas doenças, nós sabemos, é a inflação, que ocorre inclusive nas economias mais avançadas e cujo tratamento hoje é conhecido.

Existe um indicador de preços de commodities, que registra o preço médio das exportações brasileiras em dólar. Ele indica que até 1998 há certo padrão que, entretanto, a partir de 2002, passa a crescer de forma continuada, saindo de 70 para 140 hoje. Isso significa que o preço médio em dólar dos produtos exportados pelo país dobrou. Essa foi a grande mudança que ocorreu quando Lula estava para ser eleito. E ninguém – nem Pedro Malan, o próprio FHC e Lula – sabia disso.

O fenômeno estava ocorrendo por causa de dois países, China e Índia, duas sociedades com população muito grande e economia pobre, que começaram a entrar no mercado. Principalmente os chineses, graças ao líder Deng Shiao Ping, que tinha sido preso na Revolução Cultural e depois se tornou primeiro-ministro. Ele fez uma análise crítica correta do colapso da União Soviética, que ocorreu devido à falta de uma economia de mercado. Iniciou então uma experiência muito interessante, a de uma ditadura comunista voltada à política de mercado. Começou a integrar os chineses ao mercado, principalmente via investimentos do governo. Por volta de 2002 (hoje sabemos) esse processo tinha integrado 600 milhões de chineses. Imaginem o que significa esse número, essa quantidade de pessoas começando a ganhar salário, a comer mais, a comprar produtos como automóveis etc. E o governo, diante do sucesso, aumentou os investimentos em estradas, aeroportos, moradia etc. Paralelamente, de uma forma menos importante, a Índia fazia a mesma coisa. De repente, o consumo desse pessoal começou a pesar nos mercados de trigo, carne, arroz, feijão, cimento, aço, ferro, com reflexos no saldo comercial brasileiro.

E tudo isso acontece exatamente um pouco antes da eleição de 2002. É impressionante o aumento do saldo comercial, por causa das demandas chinesa e indiana. É um processo que vai até meados de 2007 e que agora começa a ter uma certa reversão, mas que permitiu ao Brasil acumular US$ 200 bilhões em reservas. No final de 2007 cruzamos a famosa linha demarcatória entre país devedor e credor no exterior. Temos hoje US$ 30 bilhões a mais em caixa do que o governo e o setor privado devem. Uma empresa ou pessoa que passam a ter mais ativos do que dívida mudam de qualidade. E essa foi a grande transformação que ocorreu por causa da China.

O que acontece é que quando o Brasil passa a ter essa força externa, uma série de fenômenos começam a ocorrer internamente. O mais importante deles é que nossa moeda deixa de ser frágil, sujeita a constantes desvalorizações, como era no passado. O cruzado foi um exemplo típico. A inflação parou por congelamento, os salários imediatamente deram um salto, já que a inflação deixou de corroê-los, e rapidamente se transformaram em consumo. E como o Brasil tinha saldo comercial negativo, as importações aumentaram e parte das exportações de produtos passou a ser vendida aqui. O saldo comercial desapareceu e o país, com déficit, começou a sacar contra as frágeis reservas externas.

Num certo momento – vivi isso no Banco Central, em 1986 –, acabou a reserva e ocorreu uma desvalorização de 20% a 30% da moeda em um mês ou nem isso. Com uma desvalorização desse porte a inflação cresceu porque o preço das importações aumentou. E o Banco Central, para combater a inflação, elevou os juros. Quando os juros sobem, reduz-se a atividade econômica e se aborta aquele começo de boom de consumo e tudo volta para trás. O empresário que tinha apostado no crescimento de repente é apanhado tomando dinheiro emprestado e se complica. Foi o que se chamou "vôo da galinha" naquele período. Todo espasmo de crescimento batia na reserva, provocava desvalorização da moeda, vinha a inflação e tudo voltava para trás.

Entre 2005 e 2006 isso mudou completamente. No Brasil, a importação passou a crescer mais do que a exportação, o que quer dizer o seguinte: o comércio exterior tornou-se fonte de oferta de produtos internamente. Isso impede, mesmo com consumo crescido, que a inflação apareça, porque o excesso de consumo começa a vir de fora, e não deixa as empresas nacionais aumentarem o preço. Isso torna a economia aberta. A primeira mudança ocorreu nas reservas. O Brasil ficou credor líquido, o que levou à importação, podendo se expandir sem bater no teto. Segunda mudança: a importação transforma a dinâmica de preços internos, pois o empresário brasileiro não tem mais a liberdade que tinha de aumentar os preços quando alcançava sua capacidade máxima de produção. E se ele fizer isso, o cliente passa a importar.

Vejam o caso dos automóveis: as vendas estão crescendo cerca de 30% ao ano, mas o preço não sobe, por causa dos importados. Os preços dos carros vindos da Argentina e do México chegam aqui iguais aos praticados nos países de origem. O comprador entra na revenda da Ford ou da General Motors e sai com um carro mexicano ou argentino e não sabe disso. Essa importação não cria problemas com a taxa de câmbio porque temos reservas e saldo comercial para isso. Uma coisa engraçada é que o empresário, vendo a nova realidade, respondeu pela primeira vez de maneira correta: se o mercado interno é maior e o brasileiro está comprando produto importado, ele procura aumentar sua capacidade de produção para capturar as vendas que estão vindo de fora. E assim o Brasil nunca teve um período tão grande de crescimento do investimento privado, que está em 20% ao ano.

Salto do salário mínimo

Aí vem a terceira mudança na economia brasileira: alterou-se a dinâmica da inflação no Brasil. Passamos a ter uma "doença normal", que é o que vai aparecer um pouco agora. Outro movimento de mudança no Brasil é o valor do salário mínimo em dólar. O poder de compra do salário mínimo deu um salto de US$ 65 para US$ 245. Basta isso para entender a popularidade de Lula. Em 1964/65, quando Roberto Campos fez a reforma econômica, o salário mínimo estava no nível, digamos, de US$ 100. Ficou estável durante o período militar todo, até que apareceu aquela história de que "o bolo está crescendo, mas não está sendo distribuído", o que era verdadeiro. A economia cresceu 10% ao ano e o poder de compra do salário mínimo ficou estável. Quando começou a hiperinflação, em 1980/81, seu poder aquisitivo caiu de US$ 100 para US$ 50.

Lula elevou o salário mínimo de US$ 100 para US$ 180. Para se ter uma idéia, 50% dos eleitores brasileiros, metade do eleitorado, recebem até dois salários mínimos. Paralelamente ocorre outro fenômeno: na medida em que vão ganhando confiança na nova dinâmica da economia, agora de longo prazo, os empresários começam a formalizar o emprego. O emprego formal no Brasil está crescendo 7,3% ao ano e o informal está caindo. Do ponto de vista do trabalhador, é uma mudança incrível. Primeiro, ele passa a ter Fundo de Garantia do Tempo de Serviço [FGTS], cobertura da previdência social e, ainda mais importante, tem agora um holerite para pedir financiamento no banco. Então mesmo que o salário fosse o mesmo e que o número de empregos ficasse igual, só a passagem do emprego informal para o formal caracterizaria uma mudança de vida extraordinária.

Agregue-se a isso outra coisa: o crédito. A economia brasileira sempre foi sem crédito. Para sobreviver, os bancos simplesmente faziam a ciranda financeira, quer dizer, davam dinheiro para o governo, recebiam em troca um título indexado à inflação e todo dia íamos ao banco para aplicar dinheiro. A partir de 2004, o volume de crédito dos bancos chegou a 40% do PIB [Produto Interno Bruto], uma mudança extraordinária em quatro anos. Essa segurança fez com que os bancos expandissem os prazos de crédito, hoje de 48 meses. Sabemos que o brasileiro olha a prestação, não a taxa de juros. Resultado: o consumo teve uma explosão.

Vejamos como anda o grande motor dessas mudanças, a China e o bloco asiático. Há uma previsão de que o PIB desse conjunto de países, entre 2015 e 2016, terá um aumento de US$ 846 bilhões. Nesse mesmo período, os Estados Unidos terão um acréscimo de US$ 412 bilhões. O mundo lá fora está mudando de forma dramática, quer dizer, a dependência da economia mundial em relação à americana está sendo reduzida drasticamente. Ninguém poderia imaginar que o PIB da Ásia cresceria mais que o dos Estados Unidos. A mesma previsão nos diz que a economia italiana será a 52a do mundo nesse período. Ela perderá importância. Realmente, o mundo está caminhando para a Ásia. E isso é importante para nós porque o Brasil é hoje uma economia ligada aos asiáticos, não mais aos Estados Unidos. O México, por exemplo, é um estado americano. Todos os indicadores econômicos mexicanos andam junto com os dos Estados Unidos. Se algo vai mal nos EUA, vai mal no México também. Aqui não é mais assim. Um exemplo: há cinco anos Goiás exportava US$ 400 milhões; hoje são US$ 2,5 bilhões, e isso vem crescendo. Então, pelo canal das commodities, estamos muito mais ligados à dinâmica asiática do que à americana.

Dragão de três cabeças

Mais: o Brasil de repente vai se tornar um grande produtor de petróleo. E ser produtor de petróleo é fundamental, considerando seu alto preço hoje. Temos assim um futuro que não tivemos nos 20 anos recentes e com uma economia de mercado normal. Por isso passamos a ter os benefícios do mundo que nos cerca, mas também a sofrer seus problemas. E esse mundo está enfrentando uma inflação séria, por conta da demanda chinesa e indiana. É o aumento generalizado da demanda além da capacidade de resposta da produção. Isso ocorreu porque o crescimento chinês passou meio despercebido. Hoje todo mundo consegue enxergá-lo, e as empresas já tomam as suas decisões para se adequar. Mas isso leva tempo. Um exemplo: no Brasil o fosfato é um fertilizante que teve o preço quintuplicado. É o fertilizante mais simples de todos, que vem do Marrocos. Nesse país, basta cavar um pouco mais o deserto que aparece fosfato, só que para isso é preciso investir e leva dois ou três anos para aumentar a extração. Mas o investidor não encontra máquinas para comprar, porque o mundo todo está comprando trator, escavadeira etc., para resolver o problema da oferta. E não há navios disponíveis.

Então a demanda adicional que se criou no mundo e que nos beneficiou está começando a nos afetar. Por quê? Porque hoje o Brasil depende de importação. E quando sobe o preço lá fora, o novo valor é repassado para cá. Sempre digo que a China para nós é como um dragão de três cabeças: a primeira é ótima, devora commodities, aço etc., o que para o Brasil é bom porque levantou o preço. Mas esse aumento foi para todos e está criando inflação no mundo. A segunda cabeça é a que vomita produtos industriais de baixo preço como sapatos. Mas há uma terceira cabeça, ainda em formação, mas que será muito importante para nós. A China está começando a ter uma classe média alta, que ainda é pequena, mas naquele país tudo o que é pequeno, em termos de população, significa 20 milhões, 30 milhões de pessoas. Quer dizer, a classe média alta chinesa já é maior que a classe média alta brasileira. Esse pessoal vai olhar para o sapato de U$ 20 dólares e achar que é coisa para pobre. Ainda não vai comprar um Ferragamo, da Itália, mas, sim, um sapato de US$ 80 a US$ 100, que a indústria brasileira começou a produzir.

O problema da inflação no mundo é muito sério e está nos atingindo, em um momento perigoso, porque o consumo está crescendo. Para atender à demanda é preciso importar. Ora, se o preço em dólar das importações sobe por conta da demanda, estamos importando inflação. E aí não temos outra solução a não ser reduzir o consumo. O Brasil terá de trazer o crescimento das vendas do comércio de 10% para algo próximo de 6%.

Há duas maneiras de fazer isso: a bruta, que é o Banco Central aumentar fortemente a taxa de juros. Esse aumento, aliás, já aconteceu. Se olharmos hoje o mercado futuro de juros, a Selic em março de 2009 será de 15% ao ano. A forma menos bruta seria o governo desacelerar seus gastos, que estão crescendo também a 12% ao ano e gerando renda dentro da sociedade. Se não fizer isso, a solução fica por conta do Banco Central.

Um presidente do FED [Federal Reserve System, o banco central americano] disse há muito tempo: "O banco central é como o dono de uma festa. Quando o ambiente começa a ficar muito embalado, ele tira o jarro de ponche e leva para a cozinha." Pelo "jarro de ponche" pode-se ter uma idéia de quanto tempo faz. Mas a imagem é válida. Enquanto não havia inflação lá fora, as importações permitiram que se ajustassem as vendas internas. Hoje não dá mais, porque estamos importando inflação. Será preciso tomar um pouco de cuidado nas decisões econômicas.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – Gostaria de fazer uma remissão histórica sobre Dílson Funaro, que foi membro deste conselho. No dia 22 de abril de 1986, em uma palestra no Recife, ele afirmou que iria mexer no congelamento de preços, porque tinha recebido um alerta dos empresários sobre o desabastecimento que estava ocorrendo. De volta a Brasília, comunicou isso à imprensa, mas José Sarney mandou desmentir e o congelamento continuou com a mesma rigidez. Quanto à taxa básica de juros, no Brasil é altíssima. E aqui a influência do aumento da taxa sobre a inflação é menor porque o spread bancário é muito alto. Talvez fosse melhor o Banco Central adotar duas outras medidas, o aumento do compulsório dos bancos e a redução do número de prestações, no caso de automóvel, de 99 meses para 36. Mas isso o presidente Lula não aprovou. Em relação às reservas cambiais altas, nunca imaginamos que o país pudesse chegar a, digamos, US$ 120 bilhões, e já estamos com US$ 200 bilhões. Mas isso tem um preço, que é o prejuízo do Banco Central. Isso porque o volume dos dólares é tão alto e, mais, o real está tão valorizado que o BC perde, por exemplo, no caso da arbitragem do valor do dólar em relação ao real. Seria muito melhor se o BC tivesse reservas em reais e não em dólares. Quanto à China, Alan Greenspan, ex-presidente do FED, diz que esse país foi um fator redutor da inflação mundial. Gostaria de ouvir seu comentário a respeito disso, como também em relação ao fundo soberano e ao apetite dos asiáticos por commodities.

MENDONÇA DE BARROS – O juro real hoje no Brasil está na ordem de 10%. Já foi de 20% a 25%, mas agora, no prazo mais longo, chega a 6% ou 7%. No México o juro real é 4%. A primeira explicação é a tributação. A CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira] felizmente já se foi, mas há outros setores em que o imposto é muito alto. E o que sensibiliza os agentes econômicos é o juro real ex-imposto. Não adianta ter uma taxa real de 15% se o governo vem e me tira 14%. O Brasil tem uma cunha fiscal muito grande. Mas, mesmo assim, para se ter uma idéia, antes da crise internacional o juro real no Brasil chegou a 7%, quase 6%, e vinha num processo de queda. Isso foi interrompido por causa da crise bancária americana, pois o juro real nos papéis americanos de maior risco deu um salto e o investidor prefere ficar lá. E quem baixa o juro real no Brasil é o investidor internacional, pois o brasileiro ainda está muito tímido em suas aplicações. Concordo que o juro é alto e tem uma diferenciação para nós que pagamos imposto e para o estrangeiro que não paga. Hoje nosso problema é baixar o consumo, porque já está provocando inflação e uma deterioração muito grande nas contas correntes. Na economia, como na medicina, as mudanças de um estado para outro precisam ser feitas com certo equilíbrio. Vejam o exemplo de uma empresa sueca que está construindo uma fábrica de celulose no Rio Grande do Sul. Para os serviços de instalação, estavam precisando de 120 serralheiros. Como não havia tantos profissionais naquele mercado, foram buscar 80 deles em Santa Catarina. O que aconteceu é que ficaram faltando 80 serralheiros no estado vizinho. E isso está acontecendo em vários segmentos, porque se foi com muita sede ao pote. É normal, e é por isso que a economia capitalista vai da depressão à euforia muito rapidamente. Temos de reduzir o consumo, o que não é fácil. Lula, como todo governante, gosta de gastar. Quando estive no BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social], ficava triste ao ver as demandas e não poder atendê-las. Agora atendem a tudo. Então essa mudança extraordinária que tivemos – que tem de ser preservada – trouxe uma doença, que existe em qualquer economia decente do mundo. E temos de enfrentá-la. Quem gasta na economia? As famílias, que são os consumidores, as empresas, principalmente na parte de investimento, e o governo. O gasto de pior qualidade certamente é o do governo. Numa visão keynesiana, é o primeiro que se deve reduzir. Lula ajudou nesse processo, mesmo sem saber, quando aumentou o salário mínimo e o Bolsa Família deu um empuxo keynesiano na economia. Só que esse empuxo tem hora para ser colocado e hora para ser tirado. Keynes escreveu que em determinadas situações, muito claras, fazer buraco ou fazer pirâmide é importante para dar um empuxo na demanda, e que a partir disso o setor privado leva tudo para a frente. Só que já passamos disso. O tal do PAC [Programa de Aceleração do Crescimento] para mim é Plano de Atraso ao Crescimento. Porque ele está aumentando o gasto do governo e a demanda dentro da economia, o que está provocando inflação. Se o governo não ajuda, o Banco Central aumenta os juros.

JACQUES MARCOVITCH – Sua observação de que a Bolsa de Mercadorias & Futuros nos permite ver os riscos do inferno mostra que o Brasil é capaz de aprender e, mais do que isso, que o futuro está em nossas mãos. Não existe fatalidade quando há consciência do que pode acontecer. Estamos praticamente iniciando a segunda década deste século. Em sua opinião, o que foi mais determinante para o Brasil responder afirmativamente a essa onda verde – o que outros países não souberam fazer? Outra observação: Dubai e Darfur estão no Brasil. Temos distâncias de distribuição de renda e de condições socioeconômicas extraordinárias. Tendo a concordar que temos uma economia de mercado, mas não podemos negar as grandes diferenças de renda pelo Brasil afora. Como poderemos reduzir essas distâncias nestes anos que nos separam de 2020? Na China existe uma cultura confucionista, na Índia uma tradição de castas, são países com uma capacidade de autoritarismo que não nos é peculiar. Você, como um intelectual, o que priorizaria para os próximos anos?

MENDONÇA DE BARROS – A experiência de governo nos dá um ponto de observação diferente daquele que se tem no mercado. Tive a vantagem de conviver num período de mudanças e de muita discussão sobre o que queremos para o futuro. E esse talvez tenha sido um dos problemas do Plano Real. As pessoas envolvidas não sabiam se ia dar certo, se a população compraria a idéia de que a partir daquele momento teríamos uma moeda estável. O engraçado é que a aceitação foi muito mais rápida do que se esperava. E o plano não tinha ido muito adiante em relação ao que fazer após ganhar a guerra da estabilidade. Então, já no governo Fernando Henrique, houve grandes debates. Identifico pelo menos três linhas de pensamento: a liberal (o Estado enxuto); uma mais à esquerda (o Estado maior); e outra que é uma economia de mercado, mas tem o Estado, só que é um Estado que existe não para interferir na dinâmica de mercado, mas para corrigir os excessos e resolver os problemas. Lembro-me de que um dos debates foi exatamente em relação ao Bolsa Família. Havia no governo pessoas com vergonha desse programa, que seria como dar esmola. Outros diziam que o Estado não tem dinheiro para isso, cada um que se vire. Vejam que o Bolsa Família foi criado no governo de Fernando Henrique, que acomodou as coisas, e Lula o explorou de uma forma muito mais eficiente. Sou favorável ao programa, com todas as vinculações que tem. Sabemos que a economia de mercado é a única forma eficiente de gerar riqueza, mas sua distribuição é absolutamente injusta. Então o Estado para mim é um pouco o que a China faz: não podemos interferir na racionalidade da economia, porque se o fizermos destruiremos a eficiência, mas podemos agir na distribuição da riqueza. Então, faz sentido o Bolsa Família. Entretanto, é importante não passar do limite, senão a coisa desanda. Keynes dizia: "Existem alguns momentos em que o Estado tem de entrar, mas, como tem a hora para entrar, tem a hora para sair". Penso que, se conseguirmos fazer uma mistura equilibrada entre as ações dos governos Fernando Henrique e Lula, teremos, pela primeira vez no Brasil, um guideline absolutamente correto. Esse é um ponto crucial que temos de discutir. O Estado lulista, a meu ver, é melhor para o Brasil do que o Estado malanista [referência a Pedro Malan, ministro da Fazenda de Fernando Henrique]. Vejam uma diferença clara: o Estado malanista aumenta o gás de cozinha em 70% em ano de eleição. O Estado lulista precisa aumentar a gasolina, mas reduz a Cide [Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico] para que isso não chegue ao preço final no posto. Entre os dois penso que Lula está mais certo, até porque reduzir imposto nessa situação é uma boa idéia. Então o fundamental para responder a sua pergunta é que deveríamos ter, mas infelizmente não temos, um debate sobre qual Estado queremos. É um pouco o segredo da China, que tem uma definição de Estado que respeita a dinâmica do setor privado. É evidente que se trata de um Estado ditatorial, portanto, não é nosso caso.

NEY PRADO – Nossa doença começou quando fizemos a abertura política antes da econômica. O êxito da China está exatamente aí: refreou as demandas políticas para permitir que o país se desenvolvesse economicamente e, aos poucos, o processo foi sendo aberto e as reivindicações gradualmente atendidas. O Estado é uma figura jurídica, é uma abstração, ele não existe. Os cientistas políticos usam a materialização do Estado, que são os governos. Como é uma categoria abstrata, atribuímos a ele virtudes como se fosse uma coisa divina. Mas a dialética não fecha. Somos favoráveis ao Estado, mas ao mesmo tempo não aprovamos sua materialização, que são os governantes. Então, quando se trata de problema político, devemos nos abstrair da figura do Estado e analisar governos. Quando a questão é a economia, o direito etc., precisamos ter consciência das categorias concretas, porque essas é que são certas ou erradas. O senhor afirmou que vivemos numa economia de mercado. Do ponto de vista internacional, não há dúvida de que nos inserimos nela. Mas quem conhece as agruras de qualquer empresário ou indivíduo em função dos direitos garantidos pela Constituição de 1988 imagina o caos que vamos enfrentar. Preocupa a possibilidade de uma redução da economia, à luz das reivindicações crescentes que verificamos nas demandas jurídicas cada vez maiores. Atualmente não cumprimento os meus amigos com o tradicional "Como vai?", mas com a pergunta: "Qual é o grande problema jurídico que você enfrenta hoje?"

MENDONÇA DE BARROS – Concordo com você, o Brasil perdeu uma oportunidade. O Chile teve um período ditatorial que foi usado para criar uma estrutura de economia de mercado mais eficiente. A China está fazendo isso a seu modo. Nós jogamos a chance fora. Tivemos 20 anos de ditadura e saímos dela com um conceito de economia de mercado e de estrutura absolutamente ineficiente. Quanto à Constituição, penso como você em relação a todos os problemas que ela contém. A Constituinte foi simplesmente o reflexo de um porre de liberdade. Outra coisa: o Estado, no fundo, é uma figura que acomoda os governos eleitos de tempos em tempos. Uma das coisas citadas quando se fala em reforma política é que o Estado brasileiro precisa ter regras para se chegar ao governo, o que não temos. Regras de comportamento para que os governos realizem sua função. A reforma política, por exemplo, uma das coisas mais importantes, é uma questão de regulamentação do Estado. Mas sou otimista: fazer isso durante um período de dificuldade econômica seria muito complicado. Talvez este seja um bom momento, já que há certa satisfação nacional. Mas para isso precisamos de liderança. Não vejo Lula, por sua história, como a pessoa certa para fazer isso. Espero que apareça alguém. Não tenho dúvida, no entanto, de que a projeção do Brasil nesse cenário econômico tão favorável depende de como vamos nos comportar. O período que vamos viver, no próximo governo, será fundamental.

OZIRES SILVA – Com todas as suas colocações, você não apresentou nenhum remédio novo. O governo não vai reduzir custo, teremos de segurar o consumo e coisas dessa natureza. Fico me perguntando se não poderíamos ajudar os economistas a pensar em remédios diferentes. Lembro-me de que nos anos 1930 os Estados Unidos enfrentavam uma crise séria, quando era presidente [Franklin Delano] Roosevelt. Depois de um longo debate eles simplesmente criaram o Buy American Act, impedindo seu governo de importar, quer dizer, obrigando-o a comprar no mercado interno. Será que não poderíamos fazer aqui algo parecido, um Buy Brazilian Act? Apesar de me parecer inviável entre nós, um remédio dessa natureza forçaria, vamos dizer, o governo a reduzir suas despesas, porque compraria internamente. Isso traria uma revitalização muito grande ao país, ampliando investimentos e nos permitindo enfrentar o aumento do consumo sem garrotear a população. Pois não podemos reduzir o consumo, temos de deixar o Brasil crescer. A China está explodindo em crescimento e eles não estão absolutamente preocupados em impedir o consumo da população.

MUSSALÉM – O governo chinês andou preocupado com o consumo interno, sim, inclusive com a inflação.

OZIRES – É claro, preocupação existe em todo o mundo, mas insisto que temos de procurar saídas não-ortodoxas. Estamos usando uma cesta de remédios já utilizados no passado e conhecemos os efeitos dessas medidas.

MENDONÇA DE BARROS – Já fui bem mais heterodoxo do que sou hoje como economista e mudei por reflexão. O que é importante no Brasil como uma economia de mercado? Primeiro, a inflação sob controle. Vejam o que ocorre na Argentina. No Brasil já temos o conceito de que a inflação tem de ser controlada, porque ela age contra o assalariado. Segundo: para controlar a inflação devemos ter certa disciplina fiscal. É evidente que a que temos agora, que é o superávit primário, não é a ideal, mas foi fundamental. Por exemplo, hoje os governos estaduais são superavitários. Os gastos aumentam porque cresce a arrecadação, e não temos mais aquela lambança do passado. Hoje temos um arcabouço fiscal que não é o ideal, mas é bom, ajuda o suficiente e está estabilizado. Nem Lula consegue mexer nisso. Aliás, ele fez o superávit primário até maior que o necessário. O problema é que o primário mascara um pouco o gasto. Num período de boom econômico podemos ter a arrecadação subindo e aumentamos as despesas, principalmente com salário. Mas na hora em que, por alguma razão, o nível de atividade cair, vamos ter problemas. Quanto a essa agenda que você pede, penso que deveríamos passar do superávit primário para algum compromisso legal, constitucional, de superávit nominal. Por exemplo, estabelecer que o governo não pode ter um déficit nominal superior a 2% do PIB. Outra medida: o governo precisa abrir mão de mais algumas estatais. Vejam o exemplo da Embraer, que é como um compêndio de economia único no mundo. Começou no ITA [Instituto Tecnológico de Aeronáutica], continuou como empresa pública, desperdiçando recursos etc., mas aprendendo a produzir avião. E foi privatizada no momento mais adequado, que é quando tinha um avião comercial viável e o mercado caiu em seu colo. Só que para chegar aonde chegou precisou da racionalidade privada. Outro dia fiz uma comparação entre as ações da Embraer, em 1996, e as da Bombardier, sua grande concorrente canadense. Ambas valiam 100 como número índice, mas em 2004 o papel da Embraer valeria 160 e a ação da Bombardier apenas 60. Outro exemplo é a Vale, que é o que é hoje porque foi privatizada. Se fosse pública todo investimento que fizesse cairia no tal do déficit e não sairia disso. O governo, portanto, teria de dar um passo adiante na privatização. Lula pouco a pouco, sem muito barulho, está fazendo alguma coisa. A Rodovia Fernão Dias, por exemplo, já é privada. Mas é preciso ampliar isso para os portos, uma área em que ainda há coisas absurdas. Uma grande discussão é a Petrobras, que pode virar uma Pemex. Poderíamos estabelecer novas regras de concessão e dividir a estatal do petróleo em duas ou três empresas, para permitir um arejamento. Vamos ter de fazer isso, principalmente se se confirmar a riqueza de nossas reservas. Temos de aceitar o processo evolutivo. E claramente, em algum momento da próxima década, vamos ter de rever a Constituição. A questão é o momento para fazer isso.

OZIRES SILVA – Apenas uma observação sobre o que precedeu o Buy American Act, nos Estados Unidos. Eles diziam: "Não pode ser dado ao governo o direito de transformar o imposto da população americana em moeda estrangeira e gerar emprego fora". Tenho certeza de que foi essa lei que permitiu a grande mobilização da 2a Guerra Mundial, com aquela imensa logística de manter 15 milhões de soldados em guerra com munição, equipamentos etc. Se pedirmos ao governo que reduza seus gastos, não vamos conseguir. Precisamos encontrar outros mecanismos e esse poderia ser um.

EDUARDO SILVA – Estive na China, em 1978, e naquela época estávamos em condições de oferecer aos chineses projetos de barragem. O que se percebia era que o Ocidente estava fortalecendo a China, que desde então não parou de crescer. Por que será que a América Latina está tão atrasada e a Ásia não mais?

MENDONÇA DE BARROS – Quanto à América Latina, é uma região com problemas e não sou especialista para falar sobre isso. Por exemplo, como um país como a Argentina pode ser até hoje peronista? Quando se cria a economia global e ela alcança a dimensão que tem hoje, as questões regionais tendem a desaparecer. Nas sociedades asiáticas os padrões são muito semelhantes, há certa homogeneidade cultural, religiosa e política que não temos aqui. A América Latina não existe, existem os países. O mundo de hoje, não só em termos econômicos, é mais homogêneo, mais ligado entre si. Essa é a grande diferença. O Brasil tem uma ligação com o mundo pela nossa própria natureza, em termos de terra, minérios, petróleo, alimentos. Há outra coisa que muita gente não considera: o brasileiro pode ter uma educação sofrível, mas é capitalista por natureza. Se há uma coisa que não podemos dizer, pelo menos uma boa parte, é que o brasileiro é vagabundo. Ele gosta de trabalhar, de ganhar dinheiro, quer ficar melhor de vida, ficar rico. Podemos fazer muitas críticas ao Brasil, mas prefiro olhar as vantagens, os lados positivos que temos hoje. Por exemplo, a cultura da estabilidade da inflação. A questão da educação é mais séria. Penso que temos só uma saída, que é um tanto complicada: de alguma forma, precisamos trazer o setor privado para a educação. Uma das grandes barreiras é a universidade, que tem de ser reformada. Certa vez, quando estava no BNDES, separei uma verba para destiná-la à pesquisa nas universidades. Chamei quatro ou cinco delas, USP, Unicamp etc., e disse que aquele ato somente teria sentido se houvesse uma articulação com o setor privado. A reação foi esta: "Não queremos esse dinheiro, porque com ele estamos vendendo nossa liberdade e independência". O que não era verdade. Ninguém estava impondo nada, simplesmente queria criar um universo um pouco melhor de pesquisa, como acontece nos Estados Unidos. Para concluir, quero dizer que se abriu um espaço extraordinário para a sociedade brasileira. Não acredito em desenvolvimento social sem crescimento econômico. Viemos de um período muito longo em que a possibilidade de alcançar um horizonte melhor nunca foi tão clara como agora. Não podemos reclamar disso. E com a sociedade melhorando de vida, fica mais fácil mudar de estrada e estabelecer um padrão de crescimento político e social claro que pode nos levar, no fim da próxima década, a um país completamente diferente do que temos hoje.

MARISA AMATO – Você se referiu algumas vezes à medicina e de fato a economia está intrinsecamente relacionada com a medicina, porque ela também nasceu para resolver os problemas do homem. Nas sociedades e na evolução podemos observar que quem sobrevive não é o mais forte, mas o mais adaptável, o que tem a capacidade de enxergar o futuro e se adaptar às necessidades que virão.

ADIB JATENE – Entendi que é preciso aumentar a taxa Selic [Sistema Especial de Liquidação e de Custódia] para evitar a inflação. Elevar essa taxa significa ampliar a despesa com o serviço da dívida. Tenho visto no orçamento que os dois grandes componentes de despesa são a previdência social e o serviço da dívida. Somados, chegam a mais de 30% do orçamento. Por outro lado, é necessário reduzir os tributos. Não consigo entender como podemos obter recursos para a saúde se vamos aumentar o serviço da dívida, que é a prioridade do governo. Para isso não falta dinheiro. Pedro Malan usou a DRU [Desvinculação de Receitas da União] para tirar dinheiro das áreas sociais e pagar o serviço da dívida. Diminuiu os recursos do governo. Quer dizer, daqui a pouco todos os recursos serão destinados a pagar o serviço da dívida e a previdência social. É isso o que não entendo.

MENDONÇA DE BARROS – Não é fácil explicar, mas vou tentar, usando a linguagem médica. O objetivo do médico é chegar ao diagnóstico correto a partir de vários exames. Para o economista há também uma grande diversidade de informações e o segredo é conseguir retirar desse conjunto de dados aqueles que lhe permitam fazer o diagnóstico certo. Existe no quadro das doenças aquelas que se agravam e que depois, por uma série de razões, se acomodam, se estabilizam. A economia é um pouco assim, é um organismo vivo. É preciso entender o estágio em que ela se encontra em determinado momento. Uma das doenças é a inflação. Há duas formas de olhar a inflação. No Brasil do passado, ela era vista assim: começa-se por quanto subiu o preço do cimento e de outras coisas e a partir disso calcula-se o índice inflacionário médio, analisando cada aumento de preço. É a maneira errada de medir a inflação. Ela é, na verdade, um fenômeno econômico que deriva do desequilíbrio entre a quantidade que se quer comprar e a que se oferece para vender. É evidente que, quando existe uma gama muito grande de produtos, há momentos em que alguns têm a oferta equilibrada em relação à demanda e outros não. Por isso se fala em inflação do chuchu ou do feijãozinho. Temos de ver a inflação lato sensu, porque a economia passa pelo indivíduo. É o que ele compra, o que vende, o que recebe de salário, tudo isso agregado como um todo na sociedade. Evidentemente que ao fazer isso misturamos alhos com bugalhos, ricos com pobres, mas não importa. O que interessa é o valor agregado. A inflação aparece quando, nesse valor agregado, há mais pessoas querendo comprar do que mercadoria disponível, mais gente procurando empregar do que empregado disponível. É isso que é inflação. E uma das maneiras de reduzi-la é reequilibrar pelo aumento da oferta. O problema é que, para fazer isso, precisamos de um determinado tempo, porque só se constrói uma fábrica em dois anos. Mais: enquanto se levanta a fábrica, em vez de aumentar a oferta, estaremos ampliando a demanda de bens, porque precisamos de cimento, tijolos, pedreiros. Então é nesses momentos que a inflação começa a sair do controle. E é quando temos de agir.

JATENE – Mas isso nos levou a uma gigantesca dívida interna e externa, enquanto outras áreas ficavam sem recursos.

MENDONÇA DE BARROS – Doutor Jatene, sei de sua angústia e lhe dou razão. O juro já é muito alto e come um pouco do orçamento. Mas é preciso aumentar a taxa – caso contrário, não se resolve o problema da oferta e procura. O que posso dizer é o seguinte: o governo pode reduzir o gasto não com a saúde mas, por exemplo, com os aumentos de salário. Sabemos que o médico, em algum momento, precisa causar desconforto ao paciente, aplicar um laxante, por exemplo. O laxante, isto é, a coisa desagradável que o economista pode usar, neste momento, é o aumento do juro. Sei que é ótimo deixar o povo consumir, mas há momentos em que não dá. Quando presidi o BNDES e iniciamos o processo de privatização da Companhia Vale do Rio Doce, estive com o pessoal da empresa no Japão para discutir o aumento de preço do minério. Ficamos lá uma semana e conseguimos 1%. Este ano o aumento foi de 85%. Parece muito bom, só que o minério de ferro é a matéria-prima do aço, que subiu 40%, empurrando para cima todo o custo da indústria. Desculpem, mas vamos precisar de um laxante.

 

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