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Mil e uma imagens


O diretor do canal Al Jazira Documentários, Montaser Marai, fala sobre a produção audiovisual no mundo árabe
 


Desde o atentado de 11 de setembro, quando dois aviões se chocaram contra as Torres Gêmeas do World Trade Center, coração financeiro dos Estados Unidos, localizado na cidade de Nova York, um canal de televisão tornou-se famoso em todo o mundo: o Al Jazira. Era por meio dele que o terrorista saudita, procurado no mundo todo, Osama bin Laden – acusado de ser o cérebro por trás do ataque –, vinha a público se pronunciar e apresentar suas reivindicações aos governos dos países que, segundo seu julgamento, seriam os inimigos do islamismo – mais especificamente os próprios Estados Unidos e a Inglaterra. O que poucos tiveram chance de saber, no entanto, foi exatamente do que se tratava aquele canal de televisão que exibia cenas de um Oriente Médio constantemente em guerra com o Ocidente. “As TVs, os noticiários, a mídia são como canhões e tanques (...) sempre bombardeando imagens, principalmente e infelizmente, sobre bombas nucleares e outras coisas negativas”, afirmou o diretor de produção do canal Al Jazira Documentários, Montaser Marai, referindo-se ao que ele acredita ser uma edição tendenciosa, por parte das grandes redes ocidentais, das imagens captadas pela emissora onde trabalha desde 2002, sediada no Catar. Marai esteve no Brasil durante a terceira edição do festival de cinema Imagens do Oriente, ?realizado, de 28 de maio a 7 de junho, no CineSesc, Centro Cultural São Paulo, Galeria Olido e Instituo da Cultura Árabe (ICArabe) e que mostrou produções da Turquia, do Iraque, do Paquistão, do Líbano e do Irã. A seguir, trechos da palestra que Montaser Marai deu no CineSesc no dia 3 de junho.

Eu diria que a indústria de filmes documentários no Mundo Árabe é muito jovem, mas está crescendo rapidamente. Ela teve início nos anos de 1960, principalmente no Egito, e encontrou resistências para florescer porque as pessoas são mais acostumadas com os dramas, filmes de ficção e filmes para televisão do que com documentários. O ritmo [do crescimento] só aumentaria um pouco durante os anos de 1970 e 1980. Talvez só depois da criação da Al Jazira, em 1997. É como se seu surgimento tivesse significado um ponto de conversão da mídia no mundo árabe, porque lá nós assistíamos a todos os canais de TV [de todos os países que compõem o mundo árabe], e até então tudo eram apenas notícias do governo, do presidente, e você não via notícias sobre as pessoas. A Al Jazira ofereceu uma alternativa, focando suas produções nas pessoas, e não no governo e nos regimes. E, dentro desse estilo de noticiário, ela deu mais espaço para os filmes documentários. Até que, dez anos depois, em 2007, a Al Jazira decidiu lançar um canal que exibe essas produções 24 horas por dia e para países de todo o mundo árabe. E isso está fazendo com que a produção cresça mais rapidamente. Como, além de produzirmos, nós também compramos muitos documentários, muitos cineastas resolveram criar grupos e empresas para fazer esses filmes, e agora o mercado está florescendo. Não é, claro, como o dos filmes norte-americanos ou europeus, mas agora o mercado é muito bom.

As pessoas podem se perguntar de onde vem essa ligação entre o mundo árabe e o documentário, então darei alguns exemplos: as notícias sempre foram importantes, elas acontecem muito rapidamente, e ao mesmo tempo elas são muito superficiais. O documentário vai por trás da notícia, fornece mais detalhes, um histórico maior, então você fica sabendo melhor o que está acontecendo. Uma das melhores coisas para o problema palestino, e que ajudou muito para um bom entendimento dessa questão, foi o documentário. Dessa forma, muitos cineastas, alguns locais, outros de fora – como alguns australianos – foram para a Palestina e, mesmo não tendo nenhuma ligação com os palestinos, estão interessados em mostrar a verdade. E para o problema palestino isso é o suficiente.

“O documentário pode ser algo muito importante porque você apresenta a realidade, a verdade, de maneira artística, e as pessoas recebem e mantêm isso em seus corações e mentes”

Imagens de guerra

As TVs, noticiários, a mídia são como canhões e tanques bombardeando. A TV é como um tanque, sempre bombardeando imagens do Irã para o Ocidente, principalmente e infelizmente, sobre bombas nucleares e outras coisas negativas. Mas na Al Jazira, por exemplo, nós exibimos uma série de programas, durante um mês, que nós chamamos de Mês do Irã, e que mostrava uma imagem diferente daquele país, mostrava que ele tem uma cultura profunda, tem a sua arte, sua música, que é uma nação feita de seres humanos muito criativos. Então, veja, é uma imagem totalmente diferente do que as pessoas estão acostumadas, de gente gritando: “Morte aos americanos”. Mas são essas as cenas que a mídia ocidental usa, por isso os documentários podem ajudar tanto em muitas coisas, dando uma ideia do sentido mais humano das pessoas.

Jornalismo e arte

Eu não diria que os documentários podem oferecer exatamente uma resistência a algum tipo de imperialismo cultural porque não gosto da ideia de um eterno conflito cultural entre o Oriente e o Ocidente, como se houvesse uma guerra entre as civilizações. Eu acho que tanto no Oriente quanto no Ocidente nós temos que lutar contra a escuridão. E o que nós [na Al Jazira] estamos tentando fazer é corrigir as imagens negativas do Oriente. Mas não significa que, às vezes, essas imagens negativas não venham do Ocidente também. Nós não temos sempre que culpar só o Oriente ou só o Ocidente. Nós temos que mostrar a imagem real e sem distorções. Eu diria que nós temos as notícias, a notícia direta e que lida com a realidade, e também temos uma parte que não lida exatamente com a realidade factual. E, na minha opinião, o documentário está entre essas duas coisas, porque é, em parte, jornalismo, que lida com a realidade, e ao mesmo tempo é arte – que não necessariamente tem esse tipo de compromisso. E tudo isso é levado para a plateia. Então, o documentário pode ser algo muito importante porque você apresenta a realidade, a verdade, de maneira artística, e as pessoas recebem e mantêm isso em seus corações e mentes. Não é como as notícias, que entram por um ouvido e saem pelo outro, você não se liga muito. Mas, de uma maneira artística, você recebe a informação e sente algo.

Equilíbrio

Na Al Jazira, no canal de documentários, nós produzimos o mesmo número de filmes que o Discovery Channel, ou seja, são mais de 400 documentários por ano. Cada um com duração de uma hora – se contarmos também os de meia hora, esse número talvez chegue a 600 documentários. Em Catar, a indústria de documentários é uma das maiores do mundo, mas é algo centralizado em Catar e na Al Jazira. Mas, mesmo assim, isso tudo é um bom sinal para os cineastas de documentário de outros países do mundo árabe também. O momento que estamos vivendo agora é o de lidar com esse número muito alto e tentar não sacrificar o conteúdo, manter um equilíbrio entre a quantidade e a qualidade. Já sobre os temas desses documentários, primeiro nós enfocamos questões do mundo árabe, mas também falamos sobre assuntos ligados à Ásia, África e América Latina. A cada ano, nós temos documentários que cobrem tudo o que acontece no mundo, em todos os países do mundo.

Sem censura

Já trabalho na Al Jazira há sete anos e ninguém me censurou nunca, nem para tirar uma palavra ou acrescentar outra. Sempre tive liberdade de fazer o que queria, e faço o que eu quero. Talvez eles [refere-se à diretoria do canal] possam culpar você depois que a coisa está feita. Posso ter um ponto de vista e eles, outro, mas é algo que se revela depois que o filme é feito, mas quando eu faço um documentário ele vai para o ar diretamente, não existe isso, na Al Jazira, de um cineasta fazer um filme e depois ele não ser mostrado, isso nunca aconteceu. Aliás, nenhum jornalista que eu conheço aceitaria censura. É por isso que a Al Jazira cresceu e se tornou o que é hoje.