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Conto

Monólogos do Carpinteiro
por Fábio Lucas


Sô Ernesto não largava de cogitar sobre o passado e as imagens dos dias, presentes e pretéritos. Tudo num turbilhão. Para ele, naquela Transvalina tão pobre, parada, o que esteve na beira de acontecer, melhor seria se acontecesse. Pois o passado é também fantasia, que a gente transfigura ao recordar ou, quando se sabe de novos episódios, tempos depois, tudo se torna diferente, muda de tamanho e de feição. Por exemplo: não fora Grapete que desencaminhara Bartira. Quem a levara ao rio e propusera nadar a dois, nus, fora ele mesmo, Ernesto. Quando Grapete os surpreendera, agarrou-o pelo pescoço, deu-lhe um safanão e vibrara-lhe o porrete na cabeça, para deixar de ser intruso. E, na raiva, lançou com fúria: se você disser a alguém que me viu aqui, quebrarei o resto que sobrou de você. E vê, consternado, Grapete se arrastar na Praça, esmolando comida e uns trocadinhos.


Bartira era meio abobada. A natureza esculpira nela um rosto pedregoso, olhos projetados, cheios de remela, baba pegajosa pendente da boca. Mas lhe dera um corpo volumoso, escultural. Lisa pele, seios túmidos, pernas engrossadas após as canelas, coxas soberbas. Quando ia à igreja, aos domingos, Dona Carmosina exigia que a irmã vestisse roupa grossa e escura, mas ela gostava mais de um vestido de seda que lhe caia gelatinosamente pelo corpo. Um escândalo. No confessionário, ante as perguntas cobiçosas do Padre Clóvis, respondera lacrimosa: um viajante roubara-lhe a inocência.


Sô Ernesto recebera de cara limpa a notícia da futura mudança de Dona Dulce. Era o seu jeito. Homem correto, compenetrado desde o berço, tinha fumaças de leituras variadas. Sentiria falta da musa do Correio.
No fundo da casa ajeitara um puxado e organizara os pertences da oficina. Carpinteiro tem que ter muita ordem, pois a enxó produzia um carnaval de aparas pelo chão. Pedaços de madeira devem ser empilhados de acordo como tamanho, a qualidade, as cores. As ferramentas tendem a espalhar-se. O formão corrigia as imperfeições das tábuas, serpentinas clamavam varredura pelo chão.


A cidade ficará vazia sem a Dona Dulce. Leve remorso farfalha na consciência do Sô Ernesto. Fora chamado há tempos para reparar os degraus da escada do Sr. Jacinto Cruz que, na descida do mirante, errara o passo e se despencara da altura, tivera a espinha quebrada, fraturara o crânio. Pobre homem, tão sábio e distraído.
Sô Ernesto tem a encomenda de umas tábuas para assoalho, algumas oferecem umidade, não serviam. Quando arranjara o mirante, vira a luneta que alcançava as estrelas mais longínquas, os horizontes de Deus.


Um impulso malsão levara-o a deslocar o foco e, espanto!, Dona Dulce tinha chegado do trabalho, desabotoara o guarda-pó e, em seguida, os largos botões da blusa. Dia quente, calor em demasia. Sô Ernesto, de olhos estatelados. Cogitara que era o único ser no planeta a ver a oitava maravilha do mundo. Aquela efusão de carnes em movimentos de lascívia. Dona Dulce se portara diante do espelho do quarto e se apreciava. Ora levantava um seio, ora outro, tentava ver-se de um lado, do outro, de trás, com o espelhinho de bolso colhia o reflexo do grande a alcançar o dorso, as espaldas, as costas, as nádegas em destaque naquele espelhão do guarda-roupa.
Sô Ernesto, tão sóbrio, lá do alto do mirante, julgava-se dono dos segredos do universo. Chácaras e quintais à mostra, pessoas a caminhar em passos lentos sob aquele solão impiedoso. Lá se arrastava Grapete, agora um tipo popular da cidade, parecia uma besta manquitola, a puxar a perna esquerda para o lado.


Pensou em demorar a obra, já que descobrira um visor único, incomparável, daquela nesga do Paraíso. As intimidades da grande musa.


Teve, entretanto, de reparar a escada e abandonar o observatório. Ficara na cabeça aquela afogueada lembrança, que aquecia o cérebro e o visitava nas noites de raro sexo com a Dona Carmosina Miranda, a maior rezadeira da paróquia. Sacrificava todas as horas da vida só para limpar a igreja, trocar as flores, levar as toalhas e os panos do padre. Peça de artilharia contra qualquer vislumbre de luxúria. O antipecado.


Sô Ernesto e ela eram elogiados pela correção religiosa, pelas virtudes. Ele mal se exprimia, deixava para ela os floreios da prosa social.


Diziam-no o seu tanto maníaco. Sustentava que as retas paralelas, na verdade, se encontravam no infinito. Imaginava o tardio encontro: olá, você por aqui? Há uma eternidade que a gente não se cruza! Que boa charla não iriam desenvolver no infinito.


O povo andava na falação de que o Profeta Ramiro se enrabichara com a Dona Dulce, até flores levara a ela na sede do Correio. Aquele boçal lá deixara o seu caderno de anotações. Joaquim Tatu, o bronco que encontrara o fascículo, levou-o à casa do Sô Ernesto, achando que fosse dele. Sô Ernesto gozava a fama de letrado, assinava a revista O Pomar e mantinha em casa uns desenhos de telhados, de cadeiras, mesas e sofás. Uma coleção encadernada do Tesouro da Juventude. Mexia com as Letras, conforme diziam.


Sô Ernesto viu que o caderno do Profeta só continha agendas de pesquisas, maluquices. Por exemplo: o ponto de partida para o recomeço da Humanidade. Ele, o Profeta, no centro de tudo. Por exemplo: se mudasse um compromisso e não comparecesse, o Universo poderia sair do lugar, pois ele havia introduzido um desequilíbrio no mundo das relações. Quem falasse mal do Governo ou fosse contra a Religião deveria ser levado a um calabouço. E mudo ficaria até o fim da vida. Queria inventar um enorme ventilador para espalhar a força do furacão contra os adversários do Brasil. Instituía um Corpo de Bombeiros especializado em apagar vulcões. Ganharia da ONU a medalha BH – Benfeitor da Humanidade. Dava para levar a sério?


Quando o Senhor Ernesto galgou o mirante já refeito e jogou a luneta nos rumos da Dona Dulce, recém-chegada da repartição, o levantar da saia e a troca de calcinhas inundaram-lhe a mente. Desvario. De lá descortinara a praça central de Transvalina, serras e serras ao redor, seu olhar pousado nas ondulações. Amava a geometria imposta aos quadrantes do planeta, isto, sim, alta cultura. Sem ordem, a natureza permaneceria selvagem e hostil, desleixo e frouxidão. Sem progresso, Seu Ernesto conclui, sem progresso o brasileiro estaria ainda a pintar o corpo com tintas de urucu e a furar os beiços e orelhas. O amor, pensa a seguir, não se constrói com meias palavras. Como a casa não se faz com meios tijolos.


Pensamentos mesmo o Sr. Ernesto somente desenvolvia às caladas. Erotismo com a Dona Dulce e sabedoria dos almanaques. Achava que a linha reta era a única a ser explorada e aceita pelo homem direito. As curvas são doença das vistas. Dão embrulho no estômago. Na antiguidade, o que era para durar tinha a forma geométrica: pirâmides, senados, teatros. Rios velhos são tortos, lentos. Os novos são diretos e impetuosos, seguem pelo atalho. O mar é reto e as ondas é que são curvas. Quer dizer: as curvas, quando muitas, formam o que é reto. Quem mata são as ondas e marés. O mar-oceano é que salva e alimenta.


O povo pegou mania de dizer que a luneta do Sr. Jacinto Cruz era disfarce para ele olhar as coxas de Dona Dulce. Pura mentira, inventada por ele, Sr. Ernesto, com o fito de deslocar o foco. Desviara assim a atenção da sociedade e somente ele poderia desfrutar as galas do Paraíso.


Agora aquele banzo. Dona Dulce seguiria para a cidade de Lafaiete, onde iria se casar. Deixaria viúva a cidade de Transvalina. O pesar dos pesares. Mesmo para ele que nunca tivera coragem de dirigir-lhe a palavra. Depois da cena do mirante, nuvens estranhas baixaram no seu espírito, sentimento exacerbado de posse, densas camadas de ciúme.


Contam que o namorado de Jurema, filha do Prefeito, fora pego em folia com ela, os dois pelados na Cachoeirinha. Foi um Deus-nos-acuda. Os irmãos dela eram conhecidos por valentes e vingativos. Iriam matar o infeliz de tanta surra.


A primeira reação de Diógenes foi tentar suicídio. Tomou quase um litro de leite cru e chupou quantas mangas pôde. Ouvira dizer que manga-com-leite mata na hora. O resultado foi uma enorme indigestão. E surra no desinfeliz, que teve que se casar com a moça desonrada.


Tão íntegro, reto e veraz. Mas infeliz, o Sr. Ernesto. A imagem que todos guardam é da sua desmedida honradez, sua dedicação indesviável a Dona Carmosina. Mas a paixão é um vento tão forte. Há tempos, desesperado por haver perdido seu posto de observação, inventou de ir ao Correio, só para ver de perto a Musa sublimada nas lembranças eróticas. Escrevera uma carta boba a solicitar o catálogo de uma indústria de formãos. Artimanhas da mente. Assentou-se à  primeira fila e deu com o Profeta Ramiro Elias também no banco da frente. Fétido caráter o daquele homem. Verdadeiro algoz do Sr. Jacinto Cruz, profetizara a sua morte. O senhor por aqui, senhor Ernesto? vibrou Dona Dulce. Tão longe da gente ... Vou sentir a sua falta, empoleirado no mirante do seu Jacinto, aquele sátiro. Terminou a obra? Nesta cidade, homem sizudo e de bom coração não procura a gente, não é senhor Ernesto? Só a corja de mandriões, apostrofou com os olhos no Profeta.




Fábio Lucas é autor, entre outros livros, de A Mais Bela História do Mundo (Global Editora, 1996)