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O desafio da metrópole

A busca da convivência harmoniosa


Candido Malta / Foto: Nicola Labate

Candido Malta Campos Filho é arquiteto, diretor da Urbe – Planejamento, Programação e Projetos, presidente da Sociedade dos Amigos dos Jardins Europa e Paulistano (Sajep) e diretor de planejamento do Movimento Defenda São Paulo.
Foi professor de planejamento urbano da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e secretário de Planejamento da prefeitura paulistana de 1976 a 1981. É membro do Conselho da Empresa Municipal de Urbanização (Emurb) e desenvolve, em convênio com a Fundação para Pesquisa Ambiental, trabalho de consultoria técnica para estabelecer uma distribuição territorial mais equilibrada entre habitação e empregos. Desenvolve também serviços profissionais relativos à elaboração de planos de bairro para o distrito de Perus, no município de São Paulo.
Esta palestra de Candido Malta, com o tema "Zoneamento e transporte – Tecidos urbanos sustentáveis", foi proferida no Conselho de Economia, Sociologia e Política da Federação do Comércio, Sesc e Senac de São Paulo, no dia 16 de outubro de 2008.

A cidade se desenvolve a partir de eixos estruturadores que são as estradas, em geral vicinais ou regionais, ao longo das quais o mercado vai criando as oportunidades para as pessoas se instalarem em loteamentos ou desmembramentos de propriedades agrícolas, sempre no entorno de um pequeno núcleo. A partir dessas vias estruturadoras o espaço se organiza, com as qualidades e defeitos que esse processo possa trazer. Essa é uma tradição portuguesa, com vias de penetração surgidas de uma lógica topográfica simples, em que se toma o caminho mais fácil de trilhar. Em geral buscam-se espigões, evitando fundos de vale, só os ultrapassando com pontes ou aterros quando absolutamente necessário. Sempre se procuram as vias e espaços mais secos, deixando os fundos de vale para ocupação posterior.

Nas propriedades agrícolas isso acontece naturalmente, pois as vias de penetração são as mesmas e nos fundos de vale estão os rios e córregos que contêm as águas que permitem a instalação de sedes. Observe-se assim que o processo de ocupação dos territórios é uma coisa sólida, mesmo nos loteamentos rurais. Essa é nossa lógica, muito diferente da hispânica. As Ordenações Filipinas, estabelecidas no início do século 17, predefiniam o traçado urbano com regras muito claras: uma praça principal (plaza mayor) e um xadrez de vias largas, com 15 a 20 metros – em alguns casos até maiores –, já com a previsão de que a cidade poderia se tornar muito importante. Quando o processo de crescimento dessas cidades ocorreu ao longo dos séculos, em geral foi pela repetição do xadrez urbano. No mundo português isso só passa a acontecer com o Iluminismo, com o marquês de Pombal, e o exemplo clássico é Lisboa.

Os traçados de ruas de pequenas dimensões, curvilíneas, muitas vezes criando um tecido urbano até simpático, como vemos em Olinda, como o nome da cidade lembra, são muito bonitos para se viver. Alguém poderia ver aí uma qualidade do urbanismo português. Sem dúvida, em pequena escala é interessante e oferece qualidade de vida urbana que poderá ser elevada, desde que não haja a transformação daquele pequeno bairro em passagem. Nesse caso o que era qualidade torna-se defeito, isto é, a rua estreita somente pode manter suas qualidades em tecido isolado. Como, aliás, é o caso de Olinda, que é um ponto lateral da metrópole recifense, sem trânsito de passagem.

No caso de São Paulo, temos nosso centro histórico português – Rua Direita, Rua São Bento e as vias ao lado da Praça da Sé –, um tecido que se tornou estrangulador quando a cidade se transformou em gigantesca metrópole. Neste início do século 21 ou já no final do século 20, na gestão de Olavo Setúbal, quisemos criar os calçadões. Mas eles surgiram porque por ali já não era mais possível o trânsito de veículos. Os pedestres haviam tomado conta do leito das ruas, pois as calçadas tinham se tornado insuficientes. O calçadão foi apenas a confirmação dessa realidade.

Na periferia das cidades, temos frequentemente bairros de origem irregular. Antigamente eram chamados de clandestinos, mas a palavra "irregular" é mais apropriada, com o sentido de que a largura mínima das ruas não é obedecida. Como transformar isso em espaço de vivência coletiva? Vejam uma contradição: o fato de as ruas serem tão estreitas faz com que sejam seguras para crianças e idosos, pois não há espaço para os carros. Então é um defeito que garante a convivência, como ocorre nas favelas.

Na década de 1920 ou 1930, o xadrez de alguns bairros foi considerado de densidade não suficiente de ocupação e foram feitos loteamentos dentro de quadras, com abertura de vias, surgindo as vilas. Esses locais eram considerados de qualidade de vida menor e padrão social inferior em relação àqueles que estão na rua larga. Isso se inverteu, porque a vila está protegida do fluxo de veículos, que se tornou excessivo. Esse fato ressalta a importância de entender o processo de estruturação do espaço. Estou pressupondo, como um valor comum a todos nós, que a cidade é por excelência o espaço da convivência coletiva. É o que podemos chamar de urbanidade, porque é a convivência coletiva harmoniosa, não conflituosa.

Excesso de veículos

Os espaços das grandes cidades têm um centro, que acaba congestionado. Isso decorre de um fato muito simples: há uma disputa pela qualidade que ele oferece, em geral de infraestrutura. Não é tanto pelo traçado viário, mas coisas básicas como saneamento, telefonia, cabos óticos. Esse espaço central muito bem estruturado, sendo muito disputado, tende a se adensar. A dificuldade é que essa tendência é baseada no automóvel. Essa é uma causa hoje importantíssima, estratégica inclusive, dos problemas da cidade de São Paulo. O excesso de veículos é produzido pela conjugação de prédios altos com um sistema viário não correspondente. Como urbanista, há 30 anos defendo que o planejamento deve ser modificado, tanto que na gestão de Olavo Setúbal contratamos uma consultoria para fazer o que só agora estamos produzindo. Estou coordenando esse trabalho no governo estadual, em convênio com a prefeitura, para finalmente fazer um cálculo que vai coordenar a lei de zoneamento com a capacidade de suporte do sistema de circulação. Por 30 anos o crescimento ocorreu sem essa correspondência, e o resultado é o que estamos assistindo, coisa absolutamente previsível.

A questão que se coloca agora é se a correção é possível. É. E é muito simples formulá-la, basta as pessoas deixarem o carro em casa e adotarem o transporte coletivo. Isso é facilmente mostrado por cálculos.

Marcos Cintra defende as pequenas conexões, que sempre vão trazer alguma melhoria, mas nada maior do que pequena. Sou até favorável a que muitas sejam feitas, mas não se pode ter a ilusão de que isso resolve, tal a dimensão da demanda. E isso não ocorre apenas em São Paulo, mas hoje está disseminado em todas as grandes cidades do Brasil. Dados estatísticos mostram que no conjunto das cidades brasileiras com mais de 60 mil habitantes o aumento da frota automobilística em quatro anos foi de 20%.

Nas cidades americanas, que tomo como referência, quando as classes médias abandonaram as áreas centrais, foram substituídas por negros e hispânicos, e o valor dos imóveis foi reduzido. O mercado trocou uma população por outra, através do mecanismo de redução do valor dos imóveis. As cidades americanas tiveram então o contrário do que acontece no Brasil: pobreza no centro e a riqueza na periferia. Apesar dessa inversão, temos também pequenos bolsões de riqueza, numa periferia pobre, com os condomínios fechados, como Alphaville. Nosso mercado tem mantido preços elevados no centro; os vazios deixados pela classe média que foge dos congestionamentos não são preenchidos e os imóveis continuam vazios.

Para corrigir isso algumas políticas estão sendo pensadas. É o caso do projeto da prefeitura atual, do qual faço parte, o Nova Luz. A ideia é trazer para o centro, com subsídio público, tanto a classe média como a popular, uma mesclagem. É a concepção correta, mas exige investimento público subsidiado. Temos de atrair essas pessoas e para isso é preciso oferecer dinheiro. Há um obstáculo, ainda não suficientemente contornado, que diz respeito à posse dos imóveis. O que está se preconizando é simplesmente a desapropriação, como sempre se fez no passado. Na Espanha há um instrumento melhor, a reparcelación, que permite ao poder público a requisição de terras sem necessidade de desapropriá-las, com posse temporária, reurbanização e devolução aos proprietários anteriores. É um instrumento muito mais inteligente, que foi transformado em projeto de lei, mas não conseguimos aprová-lo no Congresso.

Foi retirado na última hora, segundo me informam, por pressão (eu até duvido, e digo aqui porque quero que seja esclarecido) do Secovi [Sindicato das Empresas de Compra, Venda, Locação e Administração de Imóveis Residenciais e Comerciais de São Paulo]. Não consigo entender, porque acredito ser de interesse total do empresário imobiliário ter instrumentos facilitadores da recuperação de áreas onde possa atuar. Se não foi essa a posição do Secovi, seria importante que esse sindicato desse apoio ao projeto para que tramitasse novamente no Congresso.

No trabalho que estou coordenando, decidimos introduzir uma novidade em São Paulo, as chamadas ruas comerciais, como Pamplona, Teodoro Sampaio, João Cachoeira, Oscar Freire. Não conheço ninguém que discorde da política de dar a elas uma dimensão de espaço de vida coletiva, melhorando as calçadas, plantando árvores. A Rua Oscar Freire é um exemplo de sucesso, uma belíssima via. São Paulo ganhou muito com esse tipo de rua, mas isso tem de ser ampliado e a prefeitura tem um programa de 40 ruas comerciais. A ideia é colocar um limite ao número de veículos que devam passar por esses locais, para garantir a qualidade ambiental de convivência.

Um trabalho feito na Universidade da Califórnia, em Berkeley, estabeleceu que o volume de veículos que garante essa convivência deve ser de até 250 veículos/hora por faixa. Até 500 a rua poderia já ter algum comércio, mas não seria tão tranquila quanto a rua residencial. Acima disso cria-se um trânsito hostil, inevitável em algumas vias, e dessa hostilidade nasce um isolamento crescente do uso da via. No caso da Avenida Santo Amaro, houve uma degradação do uso de comércio e serviços, a ponto de agora querermos recuperá-la através de uma operação. Nossa proposta vai definir um limite de 600 veículos/hora nas ruas Pamplona, Teodoro Sampaio, João Cachoeira etc. Os mecanismos práticos para regular esse número de veículos podem ser muitos, mas o mais forte é a temporização dos semáforos, garantindo os fluxos.

Sabemos que vai haver reação da CET [Companhia de Engenharia de Tráfego], o que é natural. A CET foi incumbida de fazer a cidade andar, e isso significa que tem de tirar o máximo de veículos do sistema viário, custe o que custar. O preço é o que estamos vendo, a degradação de muitas vias como espaço de convivência e de comércio. Para recuperar isso, temos de passar por uma redução do número de veículos o quanto antes. Para isso temos de usar todo o arsenal de políticas públicas possível, nos governos federal, estadual e municipal.

O trabalho que estamos fazendo envolve a análise dos vários tipos de tecido urbano que existem na cidade de São Paulo, utilizando um modelo trazido pelo consultor internacional Tomás de la Barra, um chileno sediado em Caracas. É um modelo matemático de uso do solo e transportes que trabalha com habitação e emprego. A relação entre população e emprego define a mesclagem de usos.

A tentativa de repovoar o centro é muito embrionária, ainda não está pegando direito, tanto que está se aventando rever esse instrumento, melhorá-lo de alguma forma. Estamos pensando que o subsídio vai ser a solução maior. É o que o Secovi defende. Uma economista muito competente da CDHU [Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo] fez um levantamento desses valores e chegamos a este cálculo: cada família precisaria de R$ 10 mil de subsídio para se instalar no centro histórico. Se quisermos colocar 60 mil ou 80 mil famílias, que é o que as leis permitem, basta só multiplicar para se ter uma ideia do valor do subsídio destinado a reequilibrar a cidade.

Cultura precária

O tecido urbano pode ter uma variada conformação física, dependendo do número de pavimentos, e não apenas disso, mas do fato de os edifícios estarem isolados na quadra ou no terreno com verde em volta, um tipo muito comum na Europa. Quem conhece Buenos Aires sabe que lá é assim também, mas entre nós não há esse tipo de tecido. Ele tem a qualidade de densidades altas com aparência de densidade baixa. A densidade alta vai até quatro vezes a área do terreno, que é o coeficiente máximo de aproveitamento no tecido europeu tradicional com oito pavimentos. Se for um prédio isolado, vai para 20, 30, 40 pavimentos e é o mesmo coeficiente. Isso muda muito a relação com a cidade, justamente com o espaço de convivência.

A tradição portuguesa tem uma cultura urbanística muito precária. Para o comércio é fundamental essa discussão, porque se queremos ter ruas comerciais adequadas, elas terão de se apresentar como espaço de convivência, senão ficamos só nos shopping centers. O shopping center é a tradução do comércio em que o edifício está isolado da cidade, voltado para dentro de si e só se relacionando com ela através do automóvel. Vejam o caso do Shopping Iguatemi, que sempre me chocou: a Avenida Faria Lima, onde fica, é uma das belas avenidas que temos, com 40 metros de largura, mas o shopping é um pouco isolado, quem passa na calçada não tem uma interação com o que está acontecendo lá dentro. Então temos de modificar, buscar projetos abertos. O Shopping Norte buscou um pouco essa abertura, embora também esteja isolado numa imensa gleba, não está entrosado no tecido urbano. Em Paris, há os grands magasins, aquela mesclagem que gostaríamos de ter em São Paulo. O Bon Marché é um exemplo – entramos e saímos dele, tem até uma pequena ponte por cima de uma rua, ligando os dois lados, em perfeita integração do comércio com o tecido urbano.

O centro histórico de Paris também tinha ruas ridiculamente pequenas, o que foi corrigido pelo barão Haussmann no século 19. E mantiveram algumas ruazinhas estreitas muito simpáticas e que continuam mescladas a esse tecido. Aqui, diante do congestionamento do centro histórico, simplesmente o abandonamos. E, ao esvaziarmos o centro, provocamos um problema, que não decorreu da violência urbana. Não foi a violência que esvaziou o centro; ela apareceu depois que o esvaziamos.

Nosso trabalho prevê a introdução de várias políticas públicas. A primeira é a oferta do transporte coletivo, de um lado, o plano metropolitano e, de outro, uma legislação de zoneamento. Estamos já em processo de proposta de revisão do plano diretor, tirando o adensamento quando ele não se situa ao longo das linhas de transporte coletivo de qualidade. Vamos vincular uma coisa com outra, isto é, somente permitir o adensamento quando a oferta de transporte estiver assegurada. Acreditamos ser uma medida importante. Mas não será suficiente a oferta de transporte, de um lado, e o zoneamento, de outro, para fazer com que a população deixe o carro em casa e passe a utilizar o transporte coletivo. Precisaremos de outros instrumentos de indução, entre os quais o pedágio urbano me parece o mais efetivo, porque mexe no bolso das pessoas.

Uma ideia que me foi trazida por um inglês, mas que coincidiu com uma concepção antiga nossa, é a da unidade de vizinhança. Esse urbanista, chamado Colin Buchanan, fez o Traffic in Towns, um daqueles trabalhos que a rainha da Inglaterra patrocina como se fosse um documento público. A rainha encarna a ideia do grande consenso social e expressa isso através de um documento que em geral tem origem técnica. Esse Traffic in Towns definiu para Londres o que ele chamou de precinct, com o sentido de espaço qualificado. Ele dividiu a cidade de Londres nesses precincts, hierarquizando o sistema viário, que lá é de melhor qualidade que aqui. É a ideia de reestruturar a cidade procurando definir as vias de ligação. As demais teriam um tráfego menor, justamente para garantir a qualidade ambiental desejada. Essa me parece uma ideia boa, que recupera o conceito de qualidade de vida, tal como aplicada em Brasília por Lúcio Costa, criando o que poderíamos chamar de ilhas de tranquilidade.

Debate

JOSUÉ MUSSALÉM – Olinda é uma cidade conurbada com Recife e é quase uma cidade-dormitório. Recife por sua vez é pequena, tem 20 mil hectares, e está com um adensamento muito forte e verticalizado. Existem edifícios de 40 andares, pela pouca disponibilidade de terrenos. Algumas cidades estão com um problema de valorização excessiva de terrenos, como Petrolina, por ter se transformado em polo exportador de frutas. O mesmo ocorre em Ipojuca, porque o porto de Suape está recebendo muitos investimentos. Essa valorização excessiva de terrenos é preocupante, pois está tornando inviável o investimento habitacional nas grandes cidades.

CANDIDO MALTA – A questão da especulação imobiliária deverá, por conta da crise, ser agora mais claramente associada à especulação financeira, ao que ela produz de maléfico quando não regulada. Isso é o que se discute hoje em escala mundial. O mercado imobiliário terá de entrar na reformulação das regulações públicas sobre o assunto.
O Estatuto da Cidade, aprovado em 2001, nos dá instrumentos de combate a subidas excessivas do valor dos imóveis, mas numa escala talvez não suficiente. Quando se usa a hipoteca para alavancar empréstimos, esse instrumento não tem nada a ver com a política urbanística. É política econômica. Espero que os economistas cuidem dessa esfera. Temos de aplicar o instrumental disponível. Existe o IPTU [Imposto Predial e Territorial Urbano] progressivo no tempo para pressionar quem retém terrenos vazios, que em São Paulo não está sendo utilizado.

BENNO PERELMUTTER – Concordo plenamente que a cidade é o espaço da convivência. Um exemplo em São Paulo, nestes últimos dez anos, são os bares espalhados pelos bairros, nas calçadas, revelando o interesse e a necessidade da convivência. Mas há conflitos, pois os congestionamentos levam os motoristas a buscar rotas alternativas e assim invadir ruas antes tranquilas.
A lentidão do poder público para impedir a degradação é um dos pontos mais significativos desse processo. Quando ele acorda, a situação já está degradada. Numa cidade que tem 5,5 milhões de automóveis, 250 mil caminhões, 40 mil ônibus e 650 mil motocicletas correndo desesperadamente para cá e para lá, os condomínios fechados são um conflito em relação à cidade como um espaço para ser usufruído. Como corrigir essa situação?

CANDIDO – Os estudos sobre a capacidade de suporte para o sistema de transporte estão sendo feitos. É claro que uma crise como a que estamos vivendo poderá atrasar os projetos, por falta de recursos, mas aí de novo entra o pedágio urbano. É uma fonte de recursos que passam a ser arrecadados no ato da implantação, com efeito imediato na redução do uso de automóveis. Qual o valor do pedágio que convém cobrar? Aquele que tiver um efeito positivo, capaz de um lado de tirar os carros da rua e de outro de fazer caixa para acelerar os investimentos em transporte coletivo.
Marcos Cintra me lembrou que o fluxo do pedágio, com garantia de continuidade, poderia alavancar outros empréstimos.
Vamos então criar um mecanismo de intervenção que nunca foi utilizado, de grande poder e atacando o ponto-chave: a redução do número de veículos nas ruas. É por aí a saída. A gravidade do problema é tão alta que, esgotadas as demais iniciativas, essa surge como a salvação.

EDUARDO SILVA – Gostaria que os urbanistas pensassem um pouco mais a respeito do transporte propriamente dito. O que foi feito de nossas ferrovias foi uma coisa de causar pena. Temos de acreditar que o transporte ferroviário poderá ser outra vez o herói da movimentação dentro da cidade. Quero dizer também que o uso intensivo de carro ou mesmo de moto é resultado do interesse dos fabricantes. O transporte público nunca foi defendido como deveria ser. Agora creio que já não é mais nem preciso demonstrar que precisamos de ferrovia.

CANDIDO – De mim essa ideia tem todo o apoio. A prefeitura atual também está nessa linha, tanto que na modelagem que estamos testando decidimos dar preferência de adensamento onde houver trilhos. E não fazer isso no entorno dos corredores de ônibus, porque o sistema de coletivos, embora deva ser acionado no curtíssimo prazo porque é o que está disponível, com o tempo deverá ceder lugar aos trilhos. Essa é a diretriz que estamos assumindo.
Sobre os trens digo que é muito barato transformar as linhas existentes em metrô, sai um quinto do preço do subterrâneo. Por isso temos de pensar nisso também.

LUIZ GORNSTEIN – Do ponto de vista de meio ambiente e qualidade de vida, qual é a lógica de impedir o agrupamento de lotes do bairro do Pacaembu? Outra questão: a cidade de São Caetano do Sul tem um IDH [Índice de Desenvolvimento Humano] elevadíssimo, baixo endividamento e faz fronteira com terrenos ociosos de São Paulo. Como essa cidade não tem mais para onde crescer e a capital tem um altíssimo endividamento e baixa capacidade de investir, não seria interessante ceder terras para São Caetano crescer?

CANDIDO – Temos de pensar na metrópole como um todo e na distribuição da população em função das capacidades de infraestrutura e tecidos urbanos desejados, não tanto nas divisas administrativas. Mas anexar a São Caetano um pedaço de território paulistano é politicamente difícil. Prefiro raciocinar de outra forma, dizendo que os habitantes que não caibam em São Caetano se instalem nos municípios vizinhos. Mas para isso precisamos de uma legislação metropolitana, que está faltando. O planejamento da metrópole foi esvaziado desde a gestão de Mário Covas, a Emplasa [Empresa Paulista de Planejamento Metropolitano] quase sumiu, transformada em prestadora de serviços para fazer planos diretores de pequenas cidades.
No caso do Pacaembu, a Sociedade Amigos de Bairro é contra essa fusão de lotes, por receio de juntar ali muita gente. A questão é a inserção da Faap [Fundação Armando Álvares Penteado] na borda do Pacaembu, o que pode trazer um prejuízo grande. No caso do estacionamento de automóveis que a Faap está pensando em construir ali, posso dizer que a linha 6 do metrô passará pela PUC [Pontifícia Universidade Católica], da Rua Monte Alegre, depois pela Faap, seguindo para o Mackenzie. A Faap, portanto, não terá necessidade de oferecer tantas vagas para automóveis.

MARCOS CINTRA – Candido Malta como sempre traz algumas ideias polêmicas, que, como tal, geram contradições e conflitos. Chamo a atenção para dois conflitos que me parecem importantes. O primeiro é o trânsito, o congestionamento. A vantagem da urbanização é que ela dá origem a uma série de externalidades, muitas delas positivas, como mais eficiência, redução de custos e maior sinergia, que aumenta a produtividade. Mas há também externalidades negativas e o trânsito é claramente uma delas. Tenho chamado a atenção para algo muito visível em São Paulo: nosso modelo viário é feito em cima de algumas vias arteriais, onde estão os focos dos congestionamentos, embora tenham sido construídos com a justificativa de que seriam a solução para eles, como vias de alta velocidade etc. Na realidade, as ruas de acesso e de saída dessas vias arteriais, além delas próprias, é que acabaram se transformando em grandes barreiras. Por exemplo, atravessar a Avenida 9 de Julho é uma barreira, assim como cruzar de um lado para outro as marginais.
Esse modelo acaba gerando um congestionamento muito intenso, enquanto no entorno dessas vias arteriais o leito carroçável está ocioso. Então, quando falo em revascularização de trânsito com pequenas obras, estou chamando a atenção exatamente para isso. O ideal seria fazer com que São Paulo funcionasse mais ou menos como a ilha de Manhattan, onde não existe uma hierarquização muito clara em termos de pistas e o trânsito flui quase que igualmente por todo o leito carroçável da cidade.
É lógico que isso é uma atenuante – a solução de longo prazo, a única e definitiva, é o transporte coletivo, mas isso pode demorar 15 ou 20 anos. Por isso pergunto se essa revascularização não seria uma solução.
Outra questão é o pedágio urbano, que considero uma ideia interessante.
Quando mencionei a possibilidade de o pedágio ser um instrumento para alavancar mais recursos, estava pensando em alguns derivativos oriundos desse fluxo de receita. Com a presente crise mundial, porém, propor qualquer instrumento financeiro com essa característica seria pouco sábio. Considero no entanto o pedágio urbano um instrumento muito interessante de project finance, ou seja, uma maneira inteligente e de certo modo voluntária de alavancar recursos para a construção da infraestrutura de transporte sobre trilhos que é necessária para a cidade de São Paulo. Entretanto, como instrumento de solução para os congestionamentos, penso que não funcionaria, pois o transporte coletivo não está disponível. Então vejo esse pedágio como um novo instrumento tributário. Ele terá essa característica, pois as pessoas serão obrigadas a continuar com seu transporte individual, pagando uma taxa diária para usá-lo. Daí a antipatia política que essa ideia pode suscitar.

CANDIDO – A revascularização seria muito positiva se o volume de tráfego que passasse a usar essas ruas residenciais não tornasse a moradia um inferno. Temos de alcançar um equilíbrio entre andar bem de carro e morar bem. Em Manhattan isso existe, há um bom exemplo de convívio, com ruas muito largas e um sistema de transporte coletivo por metrô subterrâneo, além do de ônibus e de táxi, disponível a qualquer momento, com pedágio para entrar na ilha. Manhattan está sob controle. Se conseguirmos esse controle em nosso centro expandido, sua revascularização não terá externalidades negativas, só positivas. Dá para fazer isso, basta evitar o excesso de carros.
O pessoal da CET diz que é possível reduzir o excesso de carros em 10%, porque muita gente usa o veículo superfluamente, até para ir à padaria a duas quadras. Talvez para isso deva haver uma precificação, que torne o mercado mais eficiente. Cada cidadão que coloca o carro na rua não está sendo penalizado na proporção da penalização que produz para a sociedade.
Outra questão é a da não-disponibilidade de transporte público de qualidade. É um pouco a história do ovo e da galinha. Sem o pedágio, não se consegue melhorar a disponibilidade. E como o transporte público não está disponível, não se pode cobrar o pedágio. Imagino esta saída: num primeiro momento teremos de utilizar ônibus, já que o metrô não pode ser oferecido no curtíssimo prazo. Mas o que proponho é criar recursos suficientes para construir uma linha de metrô por ano. O que está previsto é uma linha a cada dois anos. Pelas minhas contas, cobraria R$ 4 por veículo por dia. Não cobraria por distância nem por tempo, para não penalizar quem usa o carro como trabalho. Esse tipo de formulação vai ganhar simpatia política na medida em que se apresente como a única solução. O sistema de ônibus num primeiro momento vai ser o disponível, mas há um modelo que pode ser introduzido aqui, como aconteceu em Porto Alegre há uns dez anos, que é o do micro-ônibus de qualidade para a classe média no centro expandido.
Por que não se coloca isso em prática? As empresas de ônibus resistem, mas do ponto de vista técnico e de mercado é perfeitamente factível. Um exemplo disso é a Orca, uma linha gratuita que liga a Cidade Universitária à estação Vila Madalena, instalada para justamente complementar o que o metrô ainda não construiu. Tem uma capacidade pequena, mas, se colocarmos 3 mil micro-ônibus com frequência de cinco minutos, sempre será algo a mais do que temos hoje.

SAMUEL PFROMM NETTO – São Paulo precisa parar, escreveu Figueiredo Ferraz em um de seus livros. Ele se referia obviamente à necessidade de estancar não a economia paulista, mas o crescimento teratológico da capital e o agravamento irreversível de uma miríade de problemas urbanos, cujos efeitos já se faziam sentir quando foi prefeito. Não me lembro se esse ex-prefeito acenou, à semelhança do que se fez no âmbito federal, para a mudança da capital paulista para o centro geográfico do estado, uma ideia aventada desde o século 19 e que, se não me engano, figura até mesmo na Constituição estadual. Como você se posiciona em relação a essa tese?

CANDIDO – Ao criar uma capital administrativa, talvez se pudesse gerar um complexo da ordem de 100 mil empregos na nova sede do governo. No município de São Paulo tínhamos 5,345 milhões de empregos em 2005, dados oficiais. E uma população total de 10,6 milhões de habitantes – na metrópole já estamos perto do dobro disso. Então a contribuição da mudança, em termos de proporção, não seria significativa. O que estamos adotando agora é a política de usar o poder público para deslocar empregos para a cidade se equilibrar internamente. Se desenvolvermos um centro de empregos na zona leste, a distância de viagem da população será reduzida. Hoje temos tarifa única dentro do município porque não podemos cobrar pela distância, caso contrário estaremos penalizando os mais pobres. Temos de levar o emprego até lá, já que trazê-los para o centro, enquanto população moradora, significaria um subsídio de tal ordem que seria impraticável.
Numa certa quantidade talvez seja praticável, da ordem de 300 mil habitantes, a R$ 2,5 mil por habitante, o que dá quase R$ 1 bilhão de subsídio para instalar essas pessoas no centro. O montante para reequilibrar esta metrópole é sempre de bilhões. A ideia de desenvolver um centro de empregos na zona leste não significa levar para lá a sede administrativa do município. O principal é colocar a questão do emprego no âmbito da própria metrópole. Isso hoje é tão premente que nos levou a abandonar a ideia de criar uma outra cidade. Outro ângulo da questão é o acesso do cidadão ao poder público e seu controle. O deslocamento do poder político acabaria criando uma dificuldade para esse controle, os políticos ficariam como que protegidos da pressão popular.

PFROMM NETTO – Há um outro problema, a população flutuante. Não se fala dela, esse aluvião de gente que vem para São Paulo. Penso que é preciso reduzir isso.

CANDIDO – Na verdade São Paulo já está parando por conta da lógica econômica do país. O crescimento populacional também está baixando em termos de fertilidade. Já se fala até que no Brasil a reposição da população não está mais ocorrendo.

FÁBIO PENTEADO – Vejo São Paulo como uma cidade que lembra a tragédia do precário equilíbrio que hoje está presente nos mercados mundiais. Quando surgiram as primeiras cidades, nunca se imaginou que chegassem a tantos milhões de habitantes, gigantescas aglomerações humanas. Assim, não vejo nenhum tipo de solução para o problema de São Paulo. O que Candido mostra são pesquisas interessantes para remendar buracos, mas quando se fecha um aparecem dois ou três. Além disso, se houvesse muito dinheiro disponível, que não há, duvido que existissem projetos realmente competentes, com a tecnologia disponível. Tomara que surjam caminhos, mas é difícil. Como diminuir a cidade?
Acredito, além disso, que se qualquer cidade com um bom projeto histórico, notadamente nos países europeus, tivesse passado por um enorme aumento de população como nós, também estaria correndo sérios riscos.

CANDIDO – Devemos combater o pessimismo. No Primeiro Mundo as soluções foram encontradas, como em Paris e Londres. Têm lá seus problemas, mas em outro nível. Para os congestionamentos, instalaram linhas de metrô. Se faltam pontes, constroem uma ou várias. Há um planejamento possível, praticado no Primeiro Mundo. Por que não vamos conseguir aqui? É uma questão de decisão da sociedade envolvida. Curitiba é uma espécie de exceção, Jaime Lerner alcançou lá uma composição social, uma força política que não se obtém em outras cidades. Porto Alegre também tem um bom planejamento urbano, e pode-se explicar isso pela composição social da sociedade porto-alegrense. Em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte e todo o nordeste, por nossa composição social, temos encontrado dificuldade em apoiar prefeitos e homens públicos que implementem políticas corretas.

MUSSALÉM – Talvez isso aconteça porque Curitiba e Porto Alegre são mais novas, como Goiânia, que tem um planejamento urbano definido. Recife, Salvador e Rio de Janeiro são cidades coloniais.

CANDIDO – Exato. Goiânia teve a diretriz maior de um sistema viário amplo, que dá a ela então uma mobilidade muito melhor. Mas quero aqui defender minha posição de otimismo. Tudo depende de nós, está em nossas mãos reverter o processo.

LEON DIKSTEIN – Uma observação: numa ocasião tive de fazer um projeto de um restaurante em Londres e aprendi como funciona o Primeiro Mundo. Tirar uma licença para fazer um restaurante em Londres é exatamente como era no Brasil tirar uma licença para abrir uma agência bancária. Não se pode fazer isso sem autorização. Foi preciso comprar um restaurante antigo para poder fazer o novo. Eles construíram um império ao longo do tempo e seria muita pretensão nossa supor que conseguiríamos isso rapidamente.
São Paulo atingiu o primeiro milhão de habitantes em 1930. Hoje, menos de cem anos depois, temos 13 milhões. É muito pouco provável que se consiga resolver a questão com planejamento físico. Então pergunto a Candido se não está na hora de mudar a ênfase da previsão urbanística para a definição de funções urbanas reais, gerar empregos e viabilidade para esses empregos, criar respostas mais abrangentes do que as de caráter físico material. O pedágio vai resolver 10% do problema e, com a multiplicação do crescimento, em pouco tempo estará absorvido. Será que não estamos colocando a ênfase no lugar errado?

CANDIDO – É esse tipo de preocupação que temos no trabalho que estou coordenando, redistribuir empregos e população na metrópole para evitar distâncias maiores a percorrer. De um lado se oferece o transporte e de outro lado a lei de zoneamento. O modelo simula o mercado e está nos passando a ideia de que isso não será suficiente, porque as pessoas vão continuar preferindo o carro, congestionando as vias. Hoje conhecemos o custo para o empresário do deslocamento na cidade, não só para ele como para o cidadão. São fatores negativos sociais e econômicos que têm a ver com a distribuição no território. Talvez tenhamos de utilizar instrumentos adicionais, e aí entra o pedágio. Nós já pagamos um pedágio disfarçado, que é o custo dos congestionamentos.

LEON – E aí vamos pagar os dois?

CANDIDO – O segundo elimina o primeiro, ao passo que o primeiro não elimina nada. O primeiro é a fundo perdido e o final dele é a destruição da cidade.

JOSEF BARAT – Como é que se pode planejar uma cidade ou uma metrópole, que está inserida nesse mundo globalizado com todos os seus problemas, mas também com todos os benefícios, sem ter uma discussão clara do seu sentido de futuro?

CANDIDO – São Paulo tem uma identidade fortíssima. A crença de que a cidade vai continuar existindo com força é muito presente, as pessoas não conseguem imaginar São Paulo decaindo a ponto de perder sua base econômica. Isso é positivo de um lado, mas por outro leva a uma tolerância em relação a essa decadência. Um exemplo: no prédio Martinelli, na Líbero Badaró, ver transformado em estacionamento o que eram lojas pujantes é desanimador, é espaço subutilizado. De um lado temos a crença no futuro e de outro uma espécie de ignorância do que está causando a decadência e até a busca por esconder isso.
Como bem disse Benno, estamos ansiosos por espaços coletivos de convivência. Os barzinhos nos vários bairros como Vila Madalena, um pouco a Vila Olímpia e outros, as tais mesinhas nas calçadas são exemplos dessa convivência. Mas vejam que as calçadas são muito estreitas e às vezes a cadeira fica no limite da guia, sujeita a atropelamento. Isso mostra a precariedade de nossos espaços de convivência, ao contrário do Rio de Janeiro, que tem as praias como uma âncora. Temos de criar isso aqui.

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