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Uma aposta que não deu certo

Dependência de cotações internacionais afeta economia capixaba

ALBERTO MAWAKDIYE


Ponte entre Vitória e Vila Velha / Foto: H. Pita

A tormenta financeira que varre o planeta desde o último trimestre do ano passado está deixando, literalmente, de cabelo em pé os políticos e empresários do Espírito Santo, o pequeno e discreto estado do sudeste brasileiro encravado entre o Rio de Janeiro, Minas Gerais e Bahia.

A elite capixaba já percebeu que o estado – cuja economia se baseia há anos principalmente na produção e exportação de artigos primários e semimanufaturados por algumas poucas megaempresas – será um dos que mais sofrerão se um dos efeitos perversos da crise, a retração do mercado mundial de commodities, se aprofundar ou mesmo prosseguir na escala atual.

De fato, produtos básicos, como placas de aço, pelotas de minério de ferro, petróleo, celulose, granito in natura e café, constituem hoje 86,7% dos embarques feitos nos espaçosos portos capixabas. Não apenas a demanda por esses artigos vem caindo desde setembro de 2008, mas também as cotações.

Em apenas um trimestre, o preço do petróleo, por exemplo, desabou 60,1%, o da celulose 30% e o de manufaturados de ferro e aço 23,5%. Já o valor comercial do minério de ferro caiu bem menos, 1,4%, mas as perdas também estão sendo relativamente grandes, pois se trata de um produto que agrega pouco valor.

Consideradas também as importações – igualmente prejudicadas pela alta do dólar –, a atividade de comércio exterior participa de cerca de 70% do Produto Interno Bruto (PIB) do Espírito Santo. É fácil imaginar o estrago sobre as contas do estado produzido por uma recessão prolongada nesse segmento, especialmente levando-se em conta que as grandes empresas exportadoras brasileiras também detêm privilégios fiscais, como a isenção de boa parte do pagamento do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS).

Mesmo contando com pelo menos um quarto de produtos de mais valor agregado na pauta de exportações, o próprio Brasil assistiu, por conta dos péssimos números do último trimestre de 2008, a um recuo no superávit comercial de assustadores 38,2% na comparação com 2007.

O superávit foi de US$ 24,7 bilhões, praticamente o mesmo valor registrado em 2003. Tamanha contração nos negócios internacionais deverá implicar em cortes de investimentos (públicos e privados) ao longo de 2009, e provavelmente em mais recessão.

Com uma pauta bem menos diversificada e valorizada – enquanto o valor médio das exportações brasileiras é de cerca de US$ 350 por tonelada, no Espírito Santo é de apenas US$ 130 –, o estado encontra-se em situação ainda mais frágil para enfrentar a crise. Ao contrário do conjunto da economia produtiva brasileira, tampouco pode confiar muito no mercado interno para compensar o baque, por causa da histórica ênfase dada à exportação.

"O momento é, realmente, de preocupação", já admite sem reservas o governador capixaba Paulo Hartung (PSB), cuja equipe econômica já reduziu de 10% para 3,7% a estimativa de aumento da receita líquida do estado em 2009. Em 2008, essa receita foi de cerca de R$ 5 bilhões.

Hartung diz que o mais importante, agora, é "manter o nível de empregos no estado" (o desemprego no Espírito Santo está dentro da média brasileira, de pouco menos de 10%). Não será tarefa simples. O próprio governo já começou a cortar despesas, ciente da provável queda de arrecadação que ocorrerá durante 2009. Já no final do ano passado, tomou várias medidas fiscais preventivas, como a redução dos investimentos com recursos próprios de R$ 1 bilhão para R$ 800 milhões, reavaliação de projetos e suspensão de concursos públicos ainda não iniciados.

É um corte, no entanto, quase simbólico perto dos que estão sendo executados pelos grandes players da área de commodities e de semiacabados do estado. Praticamente todos eles já anunciaram reduções nos investimentos – quando não na própria produção – para contornar a crise.

A gigante siderúrgica ArcelorMittal Tubarão (antiga Companhia Siderúrgica de Tubarão – CST), por exemplo, além de já ter diminuído a produção de placas, anunciou que deverá rever o cronograma dos projetos de expansão, com os quais a capacidade instalada da usina seria aumentada de 7,5 milhões de toneladas/ano para 11 milhões. Também poderá antecipar a revisão técnica de um dos altos-fornos, desativando-o temporariamente.

De seu lado, a Vale suspendeu a operação de várias unidades de beneficiamento de minério de ferro localizadas no estado (a maioria na região do porto de Tubarão), e até a virada do ano já tinha demitido 400 funcionários.

A empresa cancelou ainda a construção de uma usina siderúrgica em parceria com a chinesa Baosteel, projeto que, aliás, já estava ameaçado devido a pressões das autoridades ambientais capixabas. Estas queriam que a joint-venture montasse a planta em outro local que não o município de Anchieta, há tempos sobrecarregado ambientalmente devido à quantidade de instalações industriais pesadas situadas ali – uma ideia da qual a Vale e a Baosteel não estavam gostando nem um pouco.

A megaprodutora de celulose Aracruz – que, além dos problemas na demanda, enfrentou dificuldades devido a operações no mercado internacional de derivativos – e a pelotizadora de minério de ferro Samarco, fiel parceira da Vale, reduziram igualmente a produção e estão, do mesmo modo, revendo investimentos.

De acordo com o deputado estadual Cláudio Vereza (PT), alguns setores econômicos capixabas, como o metal-mecânico – que congrega cerca de 1,3 mil companhias (a maioria de pequeno porte), englobando 40% das indústrias do estado e gerando mais de 20 mil empregos –, estão inseridos de maneira mais ou menos profunda nas cadeias produtivas dos chamados "grandes projetos", e já começam a sofrer com a desaceleração de suas indústrias-âncora.

De fato, foi a indústria do Espírito Santo a mais afetada pelo "dia seguinte" da crise, que é demarcado em geral como o mês de novembro de 2008. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), a produção industrial naquele mês, na comparação com outubro, caiu em todas as 14 regiões pesquisadas, mas o maior índice foi registrado em terras capixabas: 17,2%.

Minas Gerais – outro estado que é bastante dependente da siderurgia e da mineração – veio em segundo lugar, com uma queda de 13,4%. Além desses dois estados, apenas o Amazonas (7,8%) e o Rio Grande do Sul (7,2%) tiveram quedas acima da média nacional, que foi de 5,2%. Em São Paulo, com um parque industrial muito mais diversificado e com maior peso na estrutura industrial brasileira, a redução foi comparativamente bem menor, de 3,2%.

"O cenário para os próximos meses deve ser ainda pior", prevê, sombriamente, o presidente da Federação das Indústrias do Espírito Santo (Findes), Lucas Izoton. "A revisão dos investimentos nos grandes projetos de exportação ainda vai reverberar em várias áreas, principalmente a metalúrgica, a de construção civil e a de serviços, e reduzir talvez de forma significativa o crescimento econômico do estado."

Para o presidente da Findes, a dependência do estado dos mercados europeu, asiático e americano – todos enfrentando uma recessão ainda mais aguda que a brasileira – pode, inclusive, atrasar o processo de recuperação. Além disso, chama a atenção o tamanho do tombo que sofreu a economia capixaba, já que, beneficiado pela fome mundial por commodities e semiacabados, o Espírito Santo vinha crescendo a taxas bem mais elevadas que a média do país.

No primeiro semestre do ano passado, por exemplo, o estado aumentou a produção em 15,8% na comparação com o mesmo período de 2007. Foi uma expansão mais de duas vezes superior à média da indústria nacional, de 6,5%.

Mapa

Diga-se que a decisão de ancorar a economia do Espírito Santo na produção de commodities de larga procura mundial – uma política iniciada pelos militares ainda na década de 1970, e que resultaria na implantação dos primeiros empreendimentos no norte capixaba (celulose) e em torno do porto de Tubarão, perto da capital, Vitória (siderurgia e pelotização) – pelo menos teve o dom de colocar o estado no mapa econômico brasileiro.

Com uma área de 46 mil quilômetros quadrados, 78 municípios e 3,35 milhões de habitantes – o que equivale a menos de um terço da população da cidade de São Paulo –, o Espírito Santo, partindo de uma economia bastante raquítica, centrada nas plantações em pequena escala do café e na cultura agrícola de subsistência, além de uma modesta rede urbana de comércio e serviços, conseguiria, por conta da produção de commodities, pouco a pouco se tornar uma potência exportadora.

Hoje, o Espírito Santo já é simplesmente o nono estado brasileiro em receita de exportação, respondendo por 4,2% do total de mercadorias vendidas no exterior e por 5,5% das importações (constituídas principalmente por insumos utilizados pela siderurgia e mineração).

Para dar esse salto, o Espírito Santo não apenas soube se valer da base industrial instalada nos anos 1970 e 80, atraindo capitais estrangeiros a partir das privatizações executadas uma década depois, como também tirou partido dos pesados investimentos que se seguiram em logística e infraestrutura, os quais fizeram do estado uma exceção de qualidade, nessa área, dentro do país.

Atualmente, o complexo portuário capixaba agrupa, por exemplo, nada menos que seis portos (dos quais os mais importantes são os de Vitória, Tubarão e Praia Mole), com oito terminais e quatro estações aduaneiras, que recebem mais de 2 mil navios de rotas internacionais por ano.

O estado também é bem servido de ferrovias, quase todas controladas pela Vale, como a Estrada de Ferro Vitória-Minas e a Ferrovia Centro-Atlântica, e também de gasodutos e minerodutos. Já a rede rodoviária estadual conta com 30 mil quilômetros de extensão, e todos os municípios estão interligados por estradas asfaltadas.

A oferta de energia e água, se jamais foi abundante, pelo menos sempre deu para o gasto, e melhorou depois que algumas grandes produtoras de commodities montaram sistemas paralelos de geração e reaproveitamento.

Todos esses investimentos em infraestrutura acabariam também, por tabela, estimulando o agronegócio e a cadeia de alimentos, o que permitiu ao Espírito Santo deter hoje outros pódios da economia brasileira e até mundial, além dos que já vinha ocupando nas áreas minerossiderúrgica e de celulose – o estado é, há tempos, o principal produtor nacional de placas de aço e tem o maior complexo de pelotização de minério de ferro do planeta, sendo ainda o primeiro produtor e exportador mundial de celulose branqueada de fibra curta.

Além disso, o Espírito Santo se transformou também no maior exportador de mármore e granito da América Latina, e defende a posição de segundo maior produtor brasileiro de café, mamão, petróleo (em gás natural, é o primeiro) e até chocolate – a célebre Garoto, hoje pertencente a capitais internacionais, tem sua sede no estado. É igualmente forte tanto na produção quanto na exportação de cacau, arroz, milho, cana-de-açúcar, banana e maracujá.

Talvez o mais importante: uma indústria de pequeno porte mas consistente surgiria, dessa massa crítica, nos aglomerados urbanos do estado, como Vitória, Serra, Cachoeiro de Itapemirim, Colatina, São Mateus, Anchieta e Linhares. Os segmentos mais bem representados são o metal-mecânico, têxtil e de mobiliário. Várias empresas de ponta, como a Prysmian (cabos) e a Smar (automação industrial) também montaram filiais no estado, reforçando o portfólio da indústria capixaba de transformação.

A rede de prestação de serviços, bancária e comercial se adensou e sofisticou. Antes um dos estados mais pobres do Brasil, o Espírito Santo tem hoje 50,1% de sua população entre a classe média, ante o índice nacional de 47,1%. A proporção de pobres caiu de 23,8% para 19,1% entre 2002 e 2005, enquanto os gastos com educação, saúde e segurança duplicaram ou triplicaram nesse período.

"Não há dúvida de que os grandes projetos de commodities estão fornecendo as precondições para o estado se urbanizar e montar uma economia mais moderna, diversificada e autossuficiente", afirma Ana Paula Vescovi, presidente do Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN), entidade de estudos e pesquisas ligada ao governo estadual. "É certo que se trata ainda de um modelo concentrador e que beneficia mais as grandes empresas do que a sociedade capixaba, para não falar da falta de cuidado com o meio ambiente, uma questão cada vez mais em foco. A própria dinâmica contida nesse modelo, porém, está fazendo, aos poucos, a situação se modificar para melhor."

Segundo Ana Paula, são as crescentes exigências feitas pelas próprias grandes produtoras de commodities à economia capixaba – como a montagem, nas áreas de influência das instalações industriais, de uma rede cada vez mais numerosa e qualificada de fabricantes e prestadores de serviços – que estão, por exemplo, ajudando a sofisticar comercial e tecnologicamente empresas de diversos setores, e capacitando-as a alçar voos mais altos.

Já vêm surgindo, aliás, até mesmo tentativas de formalizar essa interface – como o Programa Nacional de Certificação de Operadores (PNCO), que está sendo tocado, entre outros, pela ArcelorMittal Tubarão, juntamente com entidades públicas e privadas. O programa visa qualificar prestadores de serviços em áreas como a de mecânica, eletroeletrônica e instrumentação, de modo que possam fornecer serviços à siderúrgica como agentes terceirizados.

"Para tanto, eles precisam antes atender às nossas normas técnicas, que são bastante rigorosas", explica José Augusto Servino, gerente de Desenvolvimento e Remuneração da ArcelorMittal Tubarão. "Mas, ao final do curso, tornam-se tão capacitados que muitos abrem microempresas e passam a prestar serviços de ponta para todo o mercado, não apenas para nós." A Vale e a Petrobras também tocam programas parecidos.

Esse esforço de agregar valor ao trabalho dos pequenos agentes econômicos capixabas vem sendo feito também pelo governo estadual, em parceria com órgãos como o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas do Espírito Santo (Sebrae-ES). Já são cinco, por exemplo, os arranjos produtivos locais (APLs) montados no estado, reunindo desde empresas beneficiadoras de rochas ornamentais (em Cachoeiro de Itapemirim) até fabricantes de móveis (Linhares) e de máquinas e equipamentos (Vitória). A função desses APLs é não apenas de fornecer capacitação tecnológica e facilitar a troca de informações entre os participantes, mas também de lhes permitir o imprescindível upgrade econômico.

"Nesse caso, tentamos principalmente aproximar o pequeno empresário dos outros elos da cadeia onde atua", diz Mario Barradas, gerente da unidade de projetos industriais do Sebrae-ES. "Por exemplo, empresas da área de manutenção de tubos com a Petrobras, marmoristas com produtores de bens de capital, e designers e produtores de móveis com bancos de financiamento. Também abrimos espaços para eles em feiras e exposições."

Talvez um dos setores "autóctones" da economia do Espírito Santo que mais estejam satisfazendo o desejo de políticos e de empresários locais de aos poucos retirar a economia do estado da sombra dos grandes produtores de commodities seja o de mármore e granito.

Abençoado com a existência no território de rochas dotadas de uma incrível variedade de cores – algo muito raro no mundo –, o Espírito Santo está sendo, de fato, bem-sucedido na tentativa de agregar valor ao trabalho de extração, que é comercialmente cada vez menos valorizado. As exportações capixabas desse produto na versão in natura caíram de US$ 730 milhões em 2007 para US$ 600 milhões em 2008 – a crise financeira apenas aprofundou uma tendência de queda já verificada em anos passados. No entanto, os fabricantes capixabas de máquinas e equipamentos destinados a extração e beneficiamento de rochas já conseguiram abocanhar pelo menos 70% desse mercado dentro do país, e foram os responsáveis diretos pelo surpreendente avanço das vendas de rochas polidas, de mais valor agregado, para o exterior.

"Graças às máquinas capixabas – que são mais baratas e tão eficientes como as similares estrangeiras –, as chapas polidas já correspondem a 90% do volume total embarcado", revela Jacqueline Donateli, presidente da Associação dos Fabricantes de Máquinas, Equipamentos e Insumos para o Setor de Rochas Ornamentais (MaqRochas). "Elas permitiram ao Espírito Santo ter hoje sob seu controle toda a cadeia produtiva desse segmento, que já nem de longe pode ser considerado apenas de exploração de uma commodity".

Jacqueline acha que o exemplo da cadeia de rochas deveria ser seguido por mais áreas da economia capixaba, e acredita que com o tempo isso acabará acontecendo – afinal, agregação de valor também é um sinônimo de mais lucros para as empresas.

A crença de Jacqueline, aliás, é bem fundamentada. A conversão em massa de uma economia baseada em commodities em outra centrada na produção de artigos de alto valor agregado tem precedentes no Brasil. São Paulo, por exemplo, começou a se industrializar na esteira da cultura do café, e virou uma potência industrial depois que a crise de 1929 mostrou que a dependência das cotações internacionais pode se tornar, às vezes, um péssimo negócio – como os capixabas estão sentindo agora na pele.

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