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Déficit é fatal no saneamento básico

Falta de investimentos e negligência do poder público deixam metade da população sem esgoto

CEZAR MARTINS


Estação de tratamento de água em Jundiaí (SP):
raro exemplo / Foto: Divulgação

Contaminado pelo baixo nível de investimentos, pela ausência por décadas de leis claras e específicas sobre o tema e, principalmente, pela negligência dos políticos, o Brasil mantém seus cidadãos sob ameaça de adoecer devido à falta de saneamento básico. Mais de metade da população nacional não conta com coleta de esgoto, um dos requisitos primários para garantir a saúde especialmente das crianças, as principais vítimas de doenças causadas por bactérias, vermes e outras pragas que proliferam nas valas em que dejetos correm a céu aberto. Pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) constatou que, até 2007, 50,56% das residências nacionais ainda não eram atendidas por redes públicas de esgotamento sanitário. Estima-se que, a cada ano, aproximadamente 2,5 mil crianças menores de 5 anos morram no Brasil devido a diarreia causada por más condições de higiene, uma média de sete por dia, e que aproximadamente 65% das internações das menores de 10 anos sejam provocadas por males decorrentes da deficiência ou da inexistência de esgoto e água limpa.

O problema é predominantemente urbano, está concentrado nas regiões metropolitanas, por serem locais de maior densidade populacional, e fica ainda mais preocupante quando considerados os índices de tratamento do esgoto. Existem cidades com mais de 300 mil habitantes em que, não bastasse a rede de coleta ser insuficiente, o volume de efluentes tratados antes de ser despejados em rios, córregos e mananciais é praticamente nulo. Essa deficiência é um dos fatores da baixa qualidade da água oferecida à população para consumo e tem impacto no número de casos de doenças mesmo entre moradores de bairros com infraestrutura adequada. Além dos problemas de saúde, o levantamento da FGV, feito com base num cruzamento de dados do Ministério das Cidades, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e outros órgãos oficiais, mostrou os reflexos econômicos da ausência de saneamento. Trabalhadores que vivem em áreas carentes desse tipo de serviço faltam 11% a mais no trabalho, os gastos do Sistema Único de Saúde (SUS) para curar doenças causadas por esse problema chegam a R$ 300 milhões por ano e o turismo, atividade com grande capacidade de gerar empregos em cidades como Salvador e Rio de Janeiro, fica seriamente prejudicado devido à insuficiência da rede de esgoto e à poluição.

O governo brasileiro já fez um diagnóstico da situação e descobriu que, para garantir o que os especialistas chamam de universalização do saneamento, terá de desembolsar em torno de R$ 200 bilhões. O tamanho da conta se deve a décadas consecutivas de estagnação em obras para ampliação da rede, causada por diversos fatores, dos quais o principal é o fato de o saneamento quase nunca ter sido priorizado nas agendas de prefeitos de todo o país, partidários da ideia de que "obras enterradas não trazem votos".

Segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), essa letargia impedirá o Brasil de fazer a sua parte para cumprir o plano de diminuir pela metade, até 2015, a proporção de pessoas sem rede de esgoto em todo o mundo. Esse é um dos itens dos Objetivos do Milênio, um conjunto de oito metas que, se forem cumpridas por todos os países, contribuirão para a diminuição da miséria e da desigualdade social. Em 2006, de acordo com um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud), o país ocupava apenas a 67a colocação em um ranking de 177 nações analisadas que disponibilizam o acesso a esgoto a seus habitantes. Daqui a seis anos, conforme o prazo estabelecido pela ONU, o país deveria levar o serviço de coleta a 69,71% dos lares brasileiros, mas um estudo do próprio Ministério das Cidades considera muito difícil que essa taxa seja alcançada. "É preciso descaracterizar saneamento como obra política e transformá-la em obra de demanda social", afirma Raul Graça Pinho, presidente executivo do Instituto Trata Brasil, uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) criada com o apoio de indústrias e associações relacionadas à área de saneamento para incentivar o debate entre a população e cobrar soluções mais rápidas dos governantes.

Embora o quadro no país seja grave, a falta de saneamento básico está longe de ser um problema exclusivamente brasileiro. Em muitos países da África e da Ásia, o simples acesso à água potável praticamente não existe e, por isso, buscando incentivar os diversos governos a prestar mais atenção ao tema, a ONU instituiu 2008 como o Ano do Saneamento. Apesar de ainda existirem regiões no norte e nordeste do Brasil em que secas e racionamentos são frequentes, aproximadamente 90% da população nacional conta com abastecimento de água. O calcanhar-de-aquiles verde-amarelo está mesmo na questão do esgotamento sanitário e no posterior tratamento, que deveria acontecer em centrais modernas e bem-aparelhadas, capazes de evitar a contaminação dos rios.

O problema também está longe de se restringir a comunidades de áreas carentes. Mesmo em capitais localizadas em regiões de economia importante, como Manaus, Florianópolis e Recife, menos de metade da população dispõe de coleta de esgoto. Em outras, onde a rede é maior, o problema é o volume tratado. Em São Paulo, a maior e mais habitada cidade do país, apenas 46% do esgoto recebe tratamento antes de ser despejado nos rios Tietê e Pinheiros. Belo Horizonte cuida de 32% e Porto Alegre, de apenas 22%. Os dados foram levantados pelo Trata Brasil e subsidiam uma campanha de mobilização que tem o objetivo de pressionar os prefeitos de cidades com mais de 300 mil habitantes empossados em janeiro deste ano. "Esses números são oficiais, mas podem variar de um ano para outro. Assim que uma estação de tratamento é inaugurada, o índice aumenta consideravelmente. Para justificar-se, muitos prefeitos alegam que as obras estão começando. De qualquer maneira, o retrato é preocupante", destaca Pinho.

A pesquisa mostra até casos curiosos, como o de Joinville, em Santa Catarina, um dos municípios que entraram na lista da instituição. A cidade abriga as duas maiores fábricas de tubos do Brasil, das concorrentes Tigre e Amanco, e ainda assim apenas 15% da população é atendida por rede de esgoto. "São números vergonhosos. Queremos alcançar em 2012 cerca de 70% de cobertura, que é o mínimo que se pode esperar de uma cidade tão rica como Joinville", prometeu o prefeito Carlito Merss, do Partido dos Trabalhadores (PT), pouco depois de ser eleito. Mesmo após as enchentes que ocorreram no final do ano passado, o município, atingido com menor gravidade que alguns de seus vizinhos, manteve a meta de expansão da rede.

Mais dinheiro, velhos problemas

Apesar de toda a perspectiva negativa, o ano passado terminou com uma boa notícia. Após anos de marasmo e lentidão, a taxa de habitantes sem acesso à coleta de esgoto havia recuado 5% entre 2002 e 2007, um alento para quem estava acostumado a índices frequentemente inferiores a 2%. Mais importante do que isso, foi identificada pela primeira vez em dez anos uma redução significativa na taxa de mortes de crianças entre 1 e 4 anos – de 27,11% para 23,30%, segundo dados do Ministério da Saúde. "Não sabemos quanto disso está relacionado a esse avanço na coleta de esgoto, mas certamente existe conexão. Também há o reflexo de programas sociais, como o Bolsa Família, mas é certo que a redução seria menor se não houvesse esse investimento em saneamento. Essa, para mim, é a maior prova de que esse é o caminho correto a seguir o mais rápido possível", afirma Raul Pinho. Chefe do Centro de Políticas Sociais da FGV e coordenador da pesquisa, o economista Marcelo Neri faz uma ressalva: "É um bom sinal, mas não podemos nos empolgar por causa de um ano atípico. A verdade é que o saneamento, no Brasil, ainda anda a passos de cágado".

Os resultados positivos encontrados na última pesquisa ocorreram por causa do aumento das verbas disponíveis para o setor, de acordo com Sérgio Gonçalves, da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental do Ministério das Cidades. "De 1999 até 2002, foram investidos apenas R$ 240 milhões, porque havia uma restrição muito grande que inviabilizava o acesso a financiamentos. De 2003 a 2006, voltamos a investir. Foram disponibilizados R$ 6,1 bilhões, que somados com os recursos do orçamento da União totalizam algo em torno de R$ 12,4 bilhões em quatro anos. Por isso houve esse crescimento no acesso da população à rede de coleta." A promessa do governo federal é aumentar ainda mais o aporte de recursos. Lançado em 2007 como a principal bandeira do segundo mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) tem a meta de investir R$ 40 bilhões em quatro anos para aumentar a abrangência do saneamento. A uma média de R$ 10 bilhões ao ano, o Brasil demorará duas décadas para conseguir oferecer um serviço básico e essencial a todos os seus habitantes. Um período longo, mas satisfatório na análise de muitos especialistas, tendo em vista o ritmo lento de crescimento observado até o começo deste século.

Contudo, no Brasil, as dificuldades e obstáculos para aplicar os recursos e transformar os projetos em ações práticas são tão antigos quanto o déficit do saneamento. Segundo as contas do Ministério das Cidades, R$ 22,6 bilhões do dinheiro prometido pelo PAC já foram contratados para a execução de obras em municípios de norte a sul. Só que, até agora, apenas algo em torno de R$ 2 bilhões foram efetivamente empregados – menos de 10%. O restante continua guardado em contas gerenciadas pela Caixa Econômica Federal e só poderá ser sacado depois que empresas e governos que assinaram os contratos mostrarem que as obras prometidas estão concluídas. "Pagamos por obra feita. O dinheiro do PAC vem do trabalhador brasileiro e não podemos correr o risco de empregá-lo em projetos que não sejam 100% seguros", explica Gonçalves.

O problema é que muitas obras estão paralisadas exatamente por falta de recursos financeiros, ou então por problemas judiciais, como desapropriações, falta de licenciamento ambiental e outras pendências. Como são projetos de conclusão geralmente demorada, a tendência é que os "passos de cágado" continuem a determinar o ritmo da expansão da rede no país. Por outro lado, não é possível condenar as iniciativas tomadas para evitar que o dinheiro público seja desperdiçado. Uma pesquisa publicada no ano passado pela organização não-governamental Transparência Internacional, de Berlim (Alemanha), estima que, em média, a corrupção seja responsável por elevar em 45% o custo das obras no setor de água e saneamento básico nos países em desenvolvimento.

Outra reclamação de quem atua no setor é que a maior parte dos recursos disponibilizados não vem do orçamento da União, mas de empréstimos autorizados por meio da Caixa Econômica Federal e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Com isso, companhias estaduais de saneamento e estados com baixa capacidade de endividamento continuam a não ter dinheiro para executar as obras necessárias. "No Brasil, as fontes de financiamento são quase todas públicas, e as regras estabelecidas pela política do governo. A partir de 2010, precisamos ter uma nova engenharia financeira para alocar recursos e permitir o acesso a eles, inclusive com o aumento da participação de dinheiro do orçamento", afirma Walder Suriani, da Associação das Empresas de Saneamento Básico Estaduais (Aesbe).

Responsabilidades

A destinação de mais dinheiro para obras em municípios não explica, sozinha, os avanços percebidos recentemente na área de saneamento básico. Os especialistas indicam também a criação de marcos regulatórios específicos que permitiram ao setor fazer acordos e contratos mais claros. A aprovação em janeiro de 2007 da lei federal 11.445, chamada de Lei do Saneamento, criou condições e diretrizes para os investimentos dos governos em benfeitorias nas cidades. Outra iniciativa que poderia ajudar o Brasil a diminuir o déficit com mais velocidade seria a regulamentação de concessões e parcerias entre prefeituras e estados com a iniciativa privada. Segundo o Ministério das Cidades, apenas 5% do atendimento hoje feito no Brasil está sob responsabilidade de empresas particulares. A formação de parcerias público-privadas, as PPPs, pode ser a solução para muitas cidades em que companhias públicas e governos não têm capacidade de levantar financiamentos.

Já houve quem defendesse a privatização completa do sistema de coleta e tratamento de esgoto no país, mas o discurso parece ter se enfraquecido por conta da baixa qualidade de serviços prestados em outros setores e também pela complexidade do saneamento. "Eu não acredito na privatização, porque as empresas privadas buscam rentabilidade e partem da premissa de que é necessário recuperar os investimentos feitos. Isso pode acontecer em municípios grandes, com uma população que tem alto poder aquisitivo, mas não leva a rede de esgoto para quem mais precisa, os pobres. As companhias estaduais de saneamento trabalham com municípios menores e não-viáveis para empresas com essa perspectiva. Acho que há diversas possibilidades e todas são importantes para resolver o problema, mas não existe uma solução única nem a melhor forma de gerenciar", afirma Suriani.

Na prática, é preciso apenas que os governantes coloquem a questão da ampliação do saneamento entre seus objetivos políticos, independentemente do partido a que estejam filiados. Um dos locais em que isso vem ocorrendo é a cidade de Jundiaí (SP), de 343 mil habitantes. Hoje, o município oferece coleta de esgoto a 97% de sua população e trata a totalidade do que é coletado. A prefeitura garante a construção e a manutenção da rede por meio de uma empresa de capital misto, a DAE, controlada pela administração municipal. O tratamento e a reciclagem do lodo são feitos em uma estação construída graças a uma concessão dada em 1995 a um consórcio de empresas que formam a Companhia de Saneamento de Jundiaí. Pelo acordo, o serviço é remunerado pela prefeitura e, após 30 anos, a estação será cedida ao município, que passará a administrar também essa parte do processo. O desafio, agora, é fazer com que o crescimento da cidade seja mais concentrado em áreas onde a infraestrutura de saneamento já foi montada, em vez de alastrar-se por zonas rurais, impedindo que o município registre 100% de seu esgoto coletado. "Isso será feito com a aprovação do plano diretor da cidade", afirma o engenheiro civil Milton Takeo, da diretoria de operações da DAE.

Takeo reconhece, porém, que o mérito do sucesso do programa na cidade não pode ser creditado a uma administração apenas. O engenheiro lembra que, na década de 1980, o município tinha menos de 50% de seu esgoto coletado, e o crescimento se manteve mesmo com a troca de prefeitos. É também a opinião de Sérgio Gonçalves, da Secretaria Nacional de Saneamento Ambiental. "Obra de saneamento não tem partido político, é uma questão de mobilização social. Na esfera federal, o Plano Nacional do Saneamento, que está sendo preparado, é que vai garantir a continuidade dos investimentos, independentemente de quem vencer as eleições do momento. É preciso que estados e municípios também façam seus planos."

Quando se trata de um município isolado, imputar a responsabilidade pela realização das obras e fazer cobranças, caso haja negligência, fica mais fácil. Já em áreas de conurbação, como em São Paulo e no Rio de Janeiro, encontrar os responsáveis pelo descaso é muito mais complicado – tanto que nem a Justiça ainda conseguiu se decidir. Desde 1998 tramita no Supremo Tribunal Federal um processo para averiguar de quem é a responsabilidade pela coleta e pelo tratamento de esgoto em regiões metropolitanas – se dos prefeitos ou dos governadores –, e a decisão parece estar bem longe de ocorrer. O resultado é que, enquanto dúvidas como essa e outras que rondam o setor do saneamento não forem plenamente esclarecidas, os mais penalizados serão as famílias moradoras de áreas pobres e favelas, destroçadas quando suas crianças, acometidas de diarreia, cólera e verminoses, acabam incluídas nas frias estatísticas de óbitos apresentadas anualmente por economistas, ministros e governantes brasileiros.

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