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As boas sementes do Cariri paraibano

Agricultores cursam universidade e melhoram a vida da comunidade

CELIA DEMARCHI


Horta comunitária: métodos sustentáveis de
produção / Foto: Rosenato Barreto

Eles têm muito em comum: são jovens, agricultores, nasceram e moram no Cariri paraibano e assinam o mesmo sobrenome – Silva. Também compartilham de uma experiência que mudou a rota de seu destino. Franco Vanderley de Souto da Silva, de 28 anos, Adeilza Procópio da Silva, de 31, e Clemilda Inácio da Silva (como o presidente Lula), de 35, fazem parte do grupo de 36 agricultores que frequentaram a Universidade Camponesa (UniCampo), projeto que a Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) desenvolveu de 2003 a 2005 na cidade de Sumé, de 16,5 mil habitantes, no semiárido do estado da Paraíba.

O projeto, que levou os alunos a adotar métodos sustentáveis de produção, contribuiu para melhorar substancialmente sua qualidade de vida e a de muitas famílias de suas comunidades e virou modelo para outras regiões do país. Também demonstrou a importância da universidade para a população, que passou a reivindicar, e acabou conquistando, o primeiro campus universitário para o Cariri paraibano, que está sendo inaugurado neste ano em Sumé pela UFCG, esta criada em 2002, como resultado da divisão dos campi da Universidade Federal da Paraíba. "Nessa região, a força produtiva e econômica é do agricultor familiar", diz Márcio Caniello, coordenador da UniCampo.

Na verdade, a agricultura familiar tem grande peso no país como um todo: responde por cerca de um terço da produção agrícola e representa algo em torno de 70% dos alimentos que chegam à mesa do brasileiro, segundo dados da Secretaria da Agricultura Familiar (SAF), do Ministério do Desenvolvimento Agrário. Ainda de acordo com a SAF, os pequenos proprietários rurais produziram, em 2005, o equivalente a R$ 174 bilhões, ou 28% do PIB do agronegócio brasileiro e 9% do PIB nacional daquele ano.

São estimativas que dão conta da importância do segmento, ainda que o Brasil mal o conheça: a última pesquisa divulgada do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) sobre o campo data de 1996. Naquele ano, existiam aproximadamente 4,8 milhões de estabelecimentos rurais, dos quais 85,2%, ou 4,1 milhões, eram familiares.

"Apesar disso, quando se reconhece a existência do camponês no Brasil, é para rebaixá-lo com termos como matuto", diz Fernanda Leal, coordenadora pedagógica do projeto. "Se perguntam a agricultores qual é sua profissão, eles geralmente respondem ‘dona de casa’, ‘estudante’. Eles próprios não sabem a importância que têm", acrescenta Clemilda. Mas os ex-alunos da UniCampo melhoraram a autoimagem e aprenderam a valorizar suas terras ao reconhecer sua potencialidade econômica específica e descobrir formas mais sustentáveis de explorá-las.

Novos horizontes

Antes de passar pelos cursos da UniCampo, Franco e sua mulher, Ezrican, queimavam a mata para fazer a semeadura, cortavam árvores para abrir espaço ao roçado e assistiam passivamente à enxurrada arrastar o solo pobre de seus 11 hectares no assentamento Santa Tereza, que abriga outras 43 famílias, no município de Soledade, de 13 mil habitantes. Segundo o dicionário Houaiss, soledade significa solidão, lugar ermo, deserto, melancolia – o que sintetiza as características do Cariri paraibano, uma das áreas mais seriamente ameaçadas de desertificação do país, por causa do desmatamento.

Franco e outros agricultores caririzeiros – como eles se autodenominam – já não queimam, mas roçam o mato. Não cortam, apenas desbastam as árvores – e transformam folhas e galhos em adubo orgânico. Erguem barreiras com pedras e pneus para proteger o solo da enxurrada durante o breve período de chuvas na região. Armazenam vegetais para alimentar os animais durante a longa estiagem – milho, sorgo, capim e feno são triturados e depositados em silos cavados no chão, protegidos por lonas. "Fazíamos agricultura predatória, mas aprendemos a nos organizar e passamos a ver nossas propriedades de outro jeito", diz Franco.

Adeilza é líder comunitária no assentamento Zé Marcolino – nome que homenageia um dos parceiros de Luiz Gonzaga, o famoso músico popular nascido em Exu, no semiárido pernambucano –, no pequeno município de Prata, de 4 mil habitantes. Antes de conseguir a gleba de 19,8 hectares no assentamento, ela e a família, sem terras suficientes para cultivar, trabalhavam para um proprietário. Eram autorizados a plantar exclusivamente milho e tinham de deixar um terço da produção para o dono da área, sistema que chamam de "terço", ao qual muitos nordestinos do semiárido ainda são forçados a se submeter.

Casada e mãe de três filhos ainda pequenos, Adeilza conta que o Zé Marcolino já foi "uma fábrica de carvão", pois a produção carvoeira, a partir do desmatamento, era a única atividade econômica possível ali até há poucos anos. Hoje, as 40 famílias de sua agrovila, uma das quatro do assentamento, instalado em 2002 para abrigar 86 famílias na área da antiga Fazenda Serrote Agudo – que se estende entre os municípios de Prata, Amparo (2 mil habitantes) e Sumé –, plantam horta, criam cabras, ovelhas, bovinos, porcos e galinhas.

O que aprendeu na UniCampo, Adeilza ensina na comunidade: todas as famílias construíram silos na terra e viram os rebanhos crescer. Nos últimos dois anos, o de caprinos da agrovila aumentou 40%, para cerca de 220 animais, e a produção de leite de cabra, vendida para uma usina local, saltou para 100 litros por dia em dezembro, quando eram por volta de 50 as fêmeas em lactação.

Quando não tinham silos, os camponeses eram obrigados a vender barato os animais na época da estiagem, para não vê-los morrer de fome: "Não existe mais esse sofrimento", diz a camponesa. "Agora os animais ganham peso mesmo durante a seca. E melhorou o rendimento do rebanho."

A qualidade da alimentação e a renda familiar da maioria dos assentados também melhoraram. Liderado por Adeilza, um grupo de 12 mulheres estabeleceu uma horta comunitária, hoje de cerca de 2,5 mil metros quadrados. A produção de verduras, temperos verdes, cenoura, tomate e beterraba é consumida e também vendida nas feiras livres de Prata. O cultivo se tornou possível depois que as mulheres aprenderam a curtir o esterco, manejar a terra, fazer rotação de culturas e, ainda, a produzir biofertilizantes e defensivos naturais a partir de plantas nativas, como angico e aroeira. A água para regar as plantas (com regadores manuais) é transportada de um poço artesiano, por meio de um canal subterrâneo, para um tanque de cimento dentro da horta. O sistema de canalização dispõe de um mecanismo movido por cata-vento.

"Antes, só fazíamos alguma coisa se tivéssemos alguém ao lado. Agora, não. Não somos mais dependentes", diz Adeilza, que se candidatou a vereadora nas últimas eleições (mas não foi eleita) porque "as prefeituras não têm projetos para o agricultor familiar".

Franco, de Soledade, também decidiu transmitir o que aprendeu na UniCampo para outros camponeses não apenas do assentamento e do município onde vive, mas de outras seis cidades próximas (Sumé, Amparo, Camalaú, São João do Tigre, Ouro Velho e Prata): "Aos poucos, vou mostrando tudo o que aprendi, principalmente como fazer silos, que é questão de sobrevivência para os animais", diz, contando que, em 2008, 11 famílias do assentamento Santa Tereza armazenaram 50 toneladas de alimentos para o rebanho. Com os silos, reduzem-se as perdas de animais e até mesmo as queimadas, pois os camponeses costumam queimar cactos para eliminar os espinhos da planta e transformá-la em alimento para os plantéis.

Sustentabilidade

A preservação do ambiente, com a redução das queimadas e do desmatamento, proporciona ainda a exploração de novas atividades econômicas no semiárido, como a apicultura e o cultivo de frutas. A lógica é simples: sem mata e flores silvestres, não há abelhas para produzir mel nem polinizar as plantas de modo a possibilitar sua reprodução.

Franco deixou a mata se recompor e iniciou, em quatro caixas, uma pequena produção de mel, com o objetivo de demonstrar a potencialidade da terra aos demais assentados. Ele ainda ajudou um cunhado, sitiante de Soledade, a compreender que o cultivo de frutas (acerola, pinha, goiaba, limão) na propriedade não se desenvolvia por falta de polinização: "Instalamos duas caixas de abelhas e as frutas começaram a aparecer".

Clemilda, que mora em Monteiro, cidade de 30 mil habitantes famosa por ser um celeiro de músicos populares do nordeste, conta que mesmo antes de passar pelas aulas da UniCampo já se preocupava com o meio ambiente. Só depois, no entanto, percebeu que a preservação mantém relação estreita com o desempenho do agronegócio: "Minha irmã é apicultora porque ainda existe mata em nossas terras. Graças a Deus, quando os bancos financiaram o plantio de capim buffel, nos anos 1970, nós não tivemos acesso", diz, referindo-se ao alastramento da planta, que é considerado uma das maiores causas do desmatamento do semiárido nordestino, ao lado da expansão da algaroba, planta originária dos Andes peruanos, também introduzida para alimentar animais, especialmente bovinos.

Aos 35 anos, casada e sem filhos, Clemilda conta que seu avô não usava agroquímicos para combater pragas, às quais se referia como "bichinhos de Deus". Ela própria, porém, costumava recorrer a esses produtos para proteger as plantações de feijão e milho em sua propriedade de 32 hectares contra formigas e mané-magro, uma espécie de gafanhoto. Agora, deixa tudo por conta da mata: "Os insetos comem as plantas nativas de que gostam até se abusar e não sobra apetite para o milho. Deixei crescer o mato para preservar a forragem e ganhei dos dois lados".

A agricultora também aprendeu a diversificar a produção e percebeu que seria mais lucrativo aumentar o espaço para a pecuária, hoje a principal fonte de renda do sítio: cria pequenos rebanhos de bovinos e caprinos, além de galinhas e porcos, e ainda conta com os peixes do rio Paraíba, que margeia a propriedade, embora fique seco durante a maior parte do ano. Diariamente, ela conseguia obter, em dezembro, 30 litros de leite de vaca, cotado na época a R$ 0,70 o litro, e 20 litros de leite de cabra (R$ 1 cada). A suinocultura foi introduzida quando Clemilda percebeu que desperdiçava um valioso subproduto do leite: o soro, que serve de alimento aos porcos. Os 10 litros de leite de vaca utilizados para obter 1 quilo de queijo rendem também 5 ou mais litros de soro, que antes eram descartados.

Atualmente, boa parte da produção de seu sítio – e de outros cem agricultores de Monteiro – é comercializada por meio do programa federal Compra Direta, que abastece principalmente escolas e entidades sociais locais. O governo compra até bolos, segundo Clemilda: "O Brasil passa por um momento positivo. O agricultor familiar agora se sente alguém".

Dona de um terreno no centro de Monteiro, a agricultora vislumbrou outro nicho de negócio durante sua passagem pela UniCampo: o turismo. Abriu na área, um ano atrás, a Pousada Camponesa, com 10 quartos, que aluga a R$ 20 por dia, com café da manhã, em especial a vendedores e funcionários públicos que passam com frequência pela cidade, um polo econômico regional. Quando há eventos como exposições de animais ou a festa de São João, não sobra quarto vago: "Se tivesse 20, alugaria todos", diz Clemilda, enquanto informa que a pousada já é tão importante como fonte de renda da família quanto o sítio.

A potencialidade do turismo no Cariri paraibano brotou do projeto de produção cultural da UniCampo. A região tem rotas de cangaço e beatos, contadores de histórias de mentirosos, tradição de cordel, culinária típica – "bodística", como se diz por lá, em referência à carne de bode, servida em receitas variadas, até em recheio de tapioca. "Essas informações despertam para o turismo", diz Josafá de Orós, que coordenou as oficinas culturais e o projeto de turismo da UniCampo. Orós é a cidade natal de Josafá, sociólogo e artista cearense.

Fernanda Leal lembra outra experiência com turismo, realizada durante os festejos juninos de 2005, na cidade de Camalaú (cerca de 6 mil habitantes), no sul da Paraíba: moradores de um assentamento receberam turistas de Recife na casa sede e lhes apresentaram a cultura local em roteiros programados que incluíram fogueira de São João e dança de quadrilha, contadores de causos e produção da tradicional renda renascença. As inscrições rupestres, presentes em várias cidades do Cariri, foram reproduzidas em camisetas, que se tornaram mais uma fonte de receita.

Paulo Freire

Os resultados do projeto UniCampo remetem à pedagogia aplicada, que levou os participantes a se reconhecer como protagonistas da própria história e perceber que, apesar das limitações, o Cariri tem, sim, potencial econômico. "Refletimos sobre o que é o Cariri, o que é ser ‘caririzeiro’, olhamos de frente para a história das tribos indígenas que viveram aqui, das guerras que travaram. Assim foi emergindo uma identidade a partir da qual os agricultores passaram a se posicionar", conta Fernanda Leal, informando que os cursos foram desenvolvidos com base no método Paulo Freire de ensino.

Numa outra etapa, a UniCampo promoveu a formação técnica dos estudantes, como a pedagoga explica: "Desenhamos um outro mapa do Cariri e de cada propriedade, a partir de suas potencialidades econômicas específicas. Cada um olhou para sua terra e perguntou: o que tenho aqui, o que posso fazer com esses recursos?" Segundo Fernanda, os moradores do Cariri normalmente entendem propriedade como uma área grande onde se cria gado, atividade pouco promissora na região, inclusive por causa da escassez de água.

O projeto ainda se preocupou com a formação social dos alunos, abordando formas de organização coletiva, como cooperativismo e associativismo. O primeiro resultado prático dessas aulas foi a criação da Associação dos Alunos da UniCampo, logo após a conclusão do primeiro dos três ciclos do programa, de acordo com Fernanda: "Eles se tornaram nossos parceiros e inclusive escolheram os temas do segundo ciclo". Outro fruto dessa abordagem foi a organização bem-sucedida da comunidade para reivindicar um campus da UFCG no Cariri.

Entre as ferramentas utilizadas como apoio às atividades, as várias oficinas temáticas acabaram por promover formação cultural para os estudantes: o cordelista Manoel Monteiro comandou a de cordel, enquanto Josafá de Orós ensinou xilogravura, arte associada a esse tipo de literatura, pois costuma ser aplicada à capa dos livretos. Os alunos também aprenderam a reciclar papel e estampar tecidos.

Fernanda lembra que a UniCampo formou vários perfis de agricultores: alguns passaram a explorar melhor suas propriedades; outros começaram a ensinar o que aprenderam em suas comunidades, enquanto um terceiro grupo decidiu levar os conhecimentos a agricultores de toda a região. Segundo Franco, alguns dos ex-colegas conseguiram emprego depois dos cursos. Graças aos conhecimentos adquiridos na UniCampo, um deles, Cassiano Vilar, passou no concurso público da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural da Paraíba (Emater-PB). "E muitos, inclusive eu, voltaram a estudar."

Essa diversidade de destinos despertou o interesse da estudante francesa Émilie Coudel, ligada a um dos parceiros da UniCampo, o Centro de Cooperação Internacional em Pesquisa Agronômica para o Desenvolvimento (Cirad), órgão de seu país que também apoia programas semelhantes no semiárido africano. Émilie prepara uma tese sobre os resultados do processo de aprendizagem do projeto.

Para Márcio Caniello, duas características da UniCampo foram fundamentais: sua interface com os movimentos sociais e o fato de a UFCG contar em seus quadros com pesquisadores que foram ativos militantes da causa camponesa na Paraíba, o que lhes custou um longo período no exílio durante o regime militar: "Há excelência acadêmica e interação com a sociedade civil".


Flora empobrecida

A paisagem do Cariri paraibano no final do ano lembra perfeitamente as descrições da literatura. A caatinga (do tupi, "mata branca"), espécie de arbusto, predomina na terra acinzentada e pedregosa durante a longa estiagem, que se estende por oito a nove meses, geralmente entre abril e dezembro. Mas a flora do lugar, assim como a fauna, já foi muito mais diversificada. Minguou em consequência de projetos econômicos equivocados de três a quatro décadas atrás.

No cenário branco-acinzentado, sob o céu de azul intenso e um calor de 30 graus, se destacam algumas plantas exóticas verdejantes: o figo-da-índia (Opuntia ficus-indica), conhecido no nordeste como "palma", originário das regiões áridas da América do Norte; o capim buffel (Cenchrus ciliares), da África, e a algaroba (Prosopis juliflora), vinda do deserto peruano.

Resistentes ao clima do semiárido, essas plantas foram introduzidas para alimentar animais, especialmente bovinos, nas décadas de 1970 e 80. O capim buffel e a algaroba, tão resistentes quanto agressivos, se espalharam pelo Cariri, invadindo parte do pouco terreno que sobrou para as espécies nativas após o desmatamento. Ainda assim, restam angicos, xique-xiques, mandacarus, marmeleiros, juazeiros, aroeiras, baraúnas.

Entre os animais, ainda resistem, segundo os habitantes locais, carcarás, galos-de-campina, preás, tatupebas, mocós, lobos-guará, suçuaranas, guaxinins, timbus (gambás), teiús, seriemas, emas, codornizes, gaviões vermelhos e de peneira, cascavéis, jararacas e vários outros.

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