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As mega-aldeias

Número de moradores das cidades já supera o de habitantes rurais e continua crescendo

HENRIQUE OSTRONOFF


São Paulo / Foto: H. Pita

Segundo o relatório Perspectivas da Urbanização Mundial – Revisão de 2007 (World Urbanization Prospects – The 2007 Revision), produzido pela Divisão de População do Departamento de Assuntos Econômicos e Sociais (Desa) da Organização das Nações Unidas (ONU), cerca de 3,4 bilhões de pessoas moram hoje em cidades, superando o número daquelas que vivem no campo. Como termo de comparação, no início dos anos 1900 o total de citadinos era de 220 milhões.

O que mais chama a atenção quando se fala em urbanização são as metrópoles. Afinal, são as áreas urbanas mais visíveis, em geral com mais de uma dezena de milhões de habitantes, onde se concentram a pobreza e a riqueza, os problemas e as soluções. No entanto, de acordo com o relatório do Desa, somente 8,7% da população mundial vive nessas megacidades.

Em 1950, havia apenas duas cidades no mundo – Nova York e Tóquio – com pouco mais de 10 milhões de habitantes. Depois de 25 anos, a metrópole japonesa apresentava uma população de 27 milhões, a americana, de 16 milhões, e a Cidade do México despontava, com 11 milhões.

Já em 2007, contavam-se 19 áreas metropolitanas, com Tóquio, então com surpreendentes 37 milhões de habitantes, ainda no topo da lista, que incluía várias cidades asiáticas. São Paulo, Rio de Janeiro e Buenos Aires entravam na relação como representantes da América do Sul.

A lista das metrópoles chama a atenção por trazer apenas quatro cidades localizadas em países desenvolvidos, duas delas no Japão (Tóquio e Osaka-Kobe) e duas nos Estados Unidos (Nova York e Los Angeles). Aparecem também duas capitais europeias, mas de nações em desenvolvimento – Moscou, na Rússia, e Istambul, na Turquia.

Nascimento do urbano

Cidades com milhões de habitantes são fenômenos muito recentes se levarmos em conta a trajetória da vida em sociedade desde os seus primórdios. As primeiras aglomerações humanas teriam surgido há mais de 5 mil anos nas planícies aluviais dos rios Tigre e Eufrates, na chamada Mesopotâmia (em grego, "entre rios"), hoje território do Iraque. Constituíam-se em pequenos núcleos e aldeias, resultantes da prática de uma agricultura sistematizada e da produção de excedentes. Essa realidade levou à necessidade de criar e abrigar atores sociais não associados diretamente à produção agrícola, como soldados, artesãos e sacerdotes, que mantinham controle sobre o campo ou davam algum tipo de suporte às atividades rurais.

Posteriormente, nasceram as cidades-estados gregas e a capital do Império Romano, que chegaram a concentrar centenas de milhares de habitantes. Com o declínio de Roma e a instituição do sistema feudal, os centros urbanos entraram em declínio, voltando a adquirir importância apenas por volta dos anos 900 como polos de comércio.

Foi somente a partir da Revolução Industrial, iniciada em meados do século 18 na Inglaterra, porém, que surgiram os grandes centros urbanos, impulsionados pelas novas formas de produção e de relação entre capital e trabalho. Como as fábricas tinham muita necessidade de mão-de-obra, os nascentes empreendimentos industriais atraíram um grande número de camponeses para a cidade.

"Até 1850 nenhum país possuía população predominantemente urbana. A Inglaterra foi a pioneira a exibir uma composição demográfica que deixava de ter predominância rural. Até o final do século 19, os britânicos permaneceram sozinhos nessa situação, orgulhosos de sua capital, Londres, então a maior cidade do mundo, que chegou a ter 2 milhões de habitantes", explica o filósofo Leandro Konder, no ensaio "Um Olhar Filosófico sobre a Cidade", publicado no livro Olhares sobre a Cidade.

A primeira onda de transições demográficas, industrialização e urbanização, iniciada na Inglaterra durante a Revolução Industrial e irradiada nos séculos seguintes pela Europa e pela América do Norte, especialmente nos Estados Unidos, durou até os anos 1950. O processo, ocorrido ao longo de 200 anos, foi gradual, permitindo o acompanhamento de formação de infraestrutura urbana. Ao mesmo tempo, as pressões populacionais que naquela época as cidades sofriam foram abrandadas por grandes levas de imigração, principalmente para as Américas, onde os recém-chegados se dedicavam a atividades agrícolas voltadas para o abastecimento dos novos centros urbanos, informa o relatório Situação da População Mundial 2007, publicado pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA).

Ainda segundo o documento, assim como aconteceu na primeira onda, a fase de transição demográfica que se seguiu, ocorrida em países menos desenvolvidos a partir dos anos 1950, foi motivada pela combinação de crescimento da população com mudanças econômicas.

Países em desenvolvimento

China e Índia, as duas nações mais populosas da Terra, com mais de um 1 bilhão de pessoas cada, ainda mantêm a maioria de seus habitantes no campo, mas têm experimentado diferentes processos de urbanização. A China tem 767 milhões de pessoas em áreas rurais – ou 58% – e 561 milhões em áreas urbanas (excluindo-se do cálculo Hong Kong e Macau). Com a Revolução Chinesa de 1949 estimulou-se a industrialização, mas não a urbanização. Formaram-se então pequenas e médias cidades destinadas essencialmente a operários. A partir de 1963, por conta de uma grande crise na produção agrícola, o governo chinês formulou uma política de restrição ao crescimento urbano, o que provocou, inclusive, um encolhimento da população citadina.

Até 1979, 100 milhões de chineses viviam em cidades. Com as mudanças no sistema econômico do país a partir do final da década de 1970, que buscavam o desenvolvimento por meio de uma relativa liberalização do mercado, iniciou-se um intenso processo de urbanização. O superávit da produção agrícola ocorrido em 1984 fez com que o governo permitisse aos cidadãos do campo estabelecer negócios em cidades, desde que levassem consigo uma quantidade de grãos destinada a seu consumo, evitando assim pressões extras por alimentos nessas áreas. Entre 1993 e 1994, esses novos empreendimentos absorveram cerca de 140 milhões de camponeses. Até a crise financeira mundial iniciada em 2008, a China experimentou um dos maiores índices de crescimento econômico já registrados na história, sustentado basicamente pela industrialização sediada nas cidades.

A Índia, que em 2007 apresentava 828 milhões de pessoas vivendo no campo – ou 71% – e 341 milhões nas cidades, viu as populações urbanas crescerem de forma lenta, e tem feito esforços para retardar ao máximo o processo de migração de sua população. O governo indiano garante emprego para mão-de-obra não-qualificada durante cem dias por ano para as famílias que permanecem nas áreas rurais. O motivo é a falta de recursos para preparar as cidades para receber migrantes. Afinal, em 2003, 55% da população urbana indiana vivia em favelas, segundo dados contidos no livro Planeta Favela, do historiador Mike Davis.

Se, por um lado, a urbanização concentra a pobreza, por outro, como lembra o UNFPA, pode ser o antídoto para essa condição. Mais do que as áreas rurais, mesmo nas regiões de baixo desenvolvimento, as cidades oferecem oportunidades de educação, saúde, emprego e troca de experiências culturais. Ainda de acordo com a agência da ONU, nenhum país obteve crescimento econômico expressivo desvinculado de um forte processo de urbanização.

No entanto, como afirma João Sette Whitaker Ferreira, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), no artigo "Globalização e Urbanização Subdesenvolvida", publicado na revista São Paulo em Perspectiva, "o fenômeno de urbanização observado em grande parte dos países subdesenvolvidos em muito se deve a um tardio processo de industrialização. A atratividade exercida pelos polos industriais sobre a massa de mão-de-obra expulsa do campo (em especial nos países que receberam empresas multinacionais que alavancaram a passagem de economias agroexportadoras para economias ‘semi-industrializadas’ como o Brasil ou a Índia) provocou, a partir da década de 1960, a explosão de grandes polos urbanos no então chamado Terceiro Mundo, que não receberam a provisão de habitações, infraestrutura e equipamentos urbanos que garantisse qualidade de vida a essa população recém-chegada".

Esse processo, conforme descreve o professor da FAU-USP, impulsionou a urbanização brasileira. Até o censo de 1960, 55% da população, ou 39 milhões de pessoas, viviam no campo. Dez anos depois, eram 52 milhões os brasileiros em áreas urbanas, ou 71% do total. Em 2000, 81% já viviam em cidades.

O demógrafo José Marcos Pinto da Cunha, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), afirma que "o mundo vai se urbanizando porque as possibilidades de permanecer e de se reproduzir socialmente no meio rural vão deixando de existir". Segundo ele, talvez não seja o caso de comemorar o processo de urbanização do Brasil como algo atrelado à modernidade, "porque sabemos que grande parte do êxodo do campo esteve ligada ao quase desaparecimento dos pequenos e médios produtores rurais". Pinto da Cunha, que atua como pesquisador do Núcleo de Estudos de População (Nepo) da Unicamp, afirma, por outro lado, que não é totalmente cético em relação à urbanização, na qual vê grandes vantagens. "Teoricamente, aproxima as pessoas de melhores serviços, possibilidades tecnológicas, educação etc. Mas tudo isso em teoria, porque depende do desenvolvimento de cada país e da disposição de dar acesso às benesses que o urbano permite."

Opinião semelhante tem a professora Marta Grostein, da FAU-USP, segundo a qual a cidade representa uma forma de diminuir a pobreza, por meio das oportunidades de trabalho e crescimento econômico que oferece a seus moradores. A professora lembra também que há outras vantagens que atraem o homem do campo: "Os grandes centros educacionais estão em regiões metropolitanas, assim como o acesso à saúde, ou seja, existe a possibilidade de melhoria na qualidade de vida nas áreas urbanas". Ainda assim, ela faz questão de ressaltar que, no Brasil, a pobreza é de natureza metropolitana.

Perspectivas

Os dados apontados pelo relatório do Desa dão ideia da grande transformação social que tem ocorrido em todo o mundo. A maior explosão da população urbana aconteceu a partir do último quarto do século passado. Em 1950, 740 milhões de pessoas viviam em cidades, ou cerca de 30% dos 2,5 bilhões de habitantes do mundo todo. Até 1975, embora já houvesse 1,5 bilhão de pessoas nas cidades, a taxa de urbanização se manteve praticamente estável, em 33% do total. No entanto, em 2007 esse índice atingiu 49%, com 3,3 bilhões de pessoas, para uma população total de 6,7 bilhões.

Existem, porém, diferenças significativas nesse movimento populacional entre países e continentes. Nas regiões que o Desa identifica como "mais desenvolvidas", em 1950 as populações urbanas representavam 53%; nas chamadas "menos desenvolvidas", somente em 2019 se atingirão os 50%, quando então a população rural do mundo entrará em declínio.

O relatório mostra também que nos países mais ricos as populações urbanas, que eram de 430 milhões em 1950, chegaram a 700 milhões em 1975 e a 910 milhões em 2007 – mais que dobrando em 57 anos. E, nas nações mais pobres, elas passaram de 310 milhões em 1950 a 820 milhões em 1985, atingindo surpreendentes 2,4 bilhões em 2007 – um aumento de mais de sete vezes.

A região da América Latina e do Caribe, apesar de abrigar um grande número de países com baixos índices de desenvolvimento, constitui exceção. Em 2007 já apresentava na média um elevado índice de urbanização (78%), superior até ao da Europa, que era de 72%.

As informações do Desa mostram também que a população urbana não está distribuída de maneira uniforme. Apesar de os maiores percentuais de urbanização se registrarem nos países desenvolvidos, em 2007, cerca de 75% dos moradores das cidades estavam concentrados em apenas 25 países, entre os quais se incluíam alguns que mantêm ainda a maioria de seus habitantes no campo, como Bangladesh, China, Índia, Indonésia, Nigéria e Paquistão.

As estimativas apresentadas pelo Desa procuram também projetar qual será o perfil da população mundial até meados deste século. Segundo o estudo, em 2025 o planeta terá 8 bilhões de habitantes e em 2050 serão 9,2 bilhões, com o número de moradores das áreas urbanas crescendo num ritmo muito mais acelerado do que o verificado no campo: nesse período, a população urbana passará de 4,6 bilhões para 6,4 bilhões, um acréscimo de 1,8 bilhão de pessoas, enquanto a população mundial terá um incremento de 1,2 bilhão.

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