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Uma indústria que cresce à flor da pele

Produção de cosméticos, em expansão, atrai investimentos em pesquisa e tecnologia

NILZA BELLINI


Arte PB

A milionária indústria cosmética não para de crescer. Só no Brasil, o setor movimenta mais de R$ 20 bilhões por ano. Números divulgados em 2008 pela Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) mostram que o país é o terceiro mercado mundial do segmento. Durante os últimos 12 anos, a expansão média exibida por essa área, de 10,9%, foi muito superior à do PIB (2,8%) e à da indústria geral (também de 2,8%). Consequentemente, nada mais lógico que o setor não tire os olhos das pesquisas científicas e das tecnologias que até bem pouco tempo atrás eram de interesse exclusivo das ciências da saúde. Descobertas da dermatologia e novas técnicas e equipamentos de fisioterapia, além de procedimentos invasivos, agora são parte do amplo campo de estratégias no campo da estética.

Especialidade médica existente há apenas 20 anos, a medicina estética tem disputado espaço com outras áreas antes voltadas para o tratamento da pele ou a beleza, como a dermatologia e a cirurgia plástica. Atualmente já são mais de 2,5 mil os profissionais ligados à Sociedade Brasileira de Medicina Estética, formados em cursos de pós-graduação oferecidos pela entidade. De outro lado, no setor industrial, há mais de 1,65 mil empresas no mercado brasileiro de cosméticos, das quais as 15 principais, com faturamento líquido acima dos R$ 100 milhões anuais cada uma, representam 70% do movimento total. Dentre elas, a Natura é a que mais investe em pesquisas científicas. Em dezembro do ano passado a empresa entregou, pela primeira vez, o Prêmio de Inovação Tecnológica para três projetos relacionados a sua área de atuação, desenvolvidos pela comunidade científica brasileira dentro de universidades e institutos e que se destacaram quanto à sustentabilidade, qualidade técnica e grau de inovação.

O primeiro premiado foi o Projeto Pele I, desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro pela equipe do professor Radovan Borojevic. Trata-se de um modelo de teste de pele in vitro equivalente ao tecido humano, que possibilita eliminar experiências com animais. Os outros dois prêmios foram para o Projeto Hércules, realizado por cientistas parceiros de duas universidades (Federal da Bahia e Estadual de Campinas), e para o Projeto Taxi, do professor Alberto José Cavalheiro, da Universidade Estadual Paulista (Unesp), que avança no estudo de um novo ativo natural a ser utilizado, no futuro, em produtos Natura. "Não podemos revelar detalhes acerca desses projetos", diz Luciana Hashiba, gerente de Parcerias de Inovação Tecnológica da empresa. "São segredos industriais."

Empresa líder do mercado no Brasil, a Natura investe em atividades de ciência, pesquisa e desenvolvimento cerca de 3,4% de sua receita líquida – algo em torno de R$ 109 milhões –, informa Luciana. Esse programa, batizado de Natura Campus, é cofinanciado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), órgãos do governo estadual e federal. As projeções são de que, em breve, a empresa trabalhe com um menor número de produtos, mas com maior relevância tecnológica.

Com foco na biodiversidade como fonte de insumos, no desenvolvimento sustentável e em modelos agroecológicos que possam gerar riqueza para comunidades locais, a Natura financia projetos em quase todas as universidades públicas do país, em áreas de atuação que vão desde modelos de impacto ambiental a novas e sofisticadas concepções de embalagem, como as da nanotecnologia. O cadastro da empresa contabiliza, em seu portal na internet, o interesse de 228 grupos de pesquisa em todo o Brasil em participar do programa. Segundo a assessoria de imprensa da Natura, foram captadas até o final do ano passado 84 propostas de cooperação científica.

Como não poderia deixar de ser numa empresa de cosméticos, é a pele humana o principal foco de interesse da Natura. Além de permitir o tato, a percepção de temperatura e da dor, por meio de terminações nervosas, esse órgão age como um escudo contra doenças e agressões do meio ambiente. Protetores solares aplicados sobre ela, por exemplo, reforçam a potência dessa característica.

O difícil para a indústria cosmética sempre foi vencer a barreira da epiderme, a camada mais superficial da pele, de maneira a conseguir atuar no interior das células. A indústria farmacêutica disponibilizou no mercado adesivos transdérmicos, destinados a substituir medicamentos em forma de cápsulas, pílulas, comprimidos ou injeções. Esse recurso, porém, não está disponível para uso cosmético, já que as empresas dessa área não são obrigadas a realizar os mesmos exaustivos testes clínicos levados a efeito no caso de um fármaco, destinados a descobrir seus possíveis efeitos colaterais.

Polêmica

No Brasil, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) é a responsável por fiscalizar a fabricação e a comercialização de produtos de higiene e de cosmética. Todos os cosméticos, sejam nacionais ou importados, devem ter registro no órgão. A qualidade desses produtos, segundo a Anvisa, deve obedecer às normas vigentes e a listas restritivas que excluem a utilização de algumas matérias-primas como corantes, conservantes e outros. Por definição, cosméticos não são remédios e, portanto, não necessitam seguir as normas relativas a eles. Essa questão, contudo, gera polêmica.

Maria Rita Lemos de Resende, diretora presidente do Centro de Estudos de Cosmetologia Aplicada, diz que novos produtos cosméticos contêm princípios ativos antes usados pela farmácia. Um dos exemplos é o Zincidone, complexo que integra o zinco com uma molécula vetor naturalmente presente na pele, o L-ácido carboxílico pirrolidona (L-PCA), capaz de conduzir esse elemento às células-alvo. Substância patenteada, o Zincidone é utilizado em formulações destinadas ao tratamento da acne.

Princípios ativos derivados da flora, brasileira ou não, estão entre outros valorizados pela indústria cosmética. Já está no mercado desde o ano passado, por exemplo, o Commipheroline, patenteado pelo laboratório francês Soliance. Esse produto permite aumentar o tamanho dos seios apenas com a aplicação diária de um creme. Extraído da árvore indiana Commiphora mukul, o composto ativa a síntese de células de gordura na hipoderme, fazendo com que estas ganhem volume. A empresa garante que uma camada gordurosa preenche uniformemente a região onde o creme é aplicado, promovendo um aumento de 2 a 4 centímetros no tamanho dos seios. Como a matéria-prima é um produto natural, não necessita da liberação da Anvisa. Pode ser receitado diretamente pelo dermatologista e é encontrado em farmácias de manipulação. Crescimento celular, seja de gordura ou não, deveria obviamente necessitar de acompanhamento médico. Mas isso não acontece.

A farmacêutica Sheila Gonçalves, docente de pós-graduação em cosmetologia das Faculdades Oswaldo Cruz, destaca que os produtos cosméticos têm se sofisticado à medida que as tecnologias se refinam. Hoje, segundo ela, já é possível discutir o conceito de "cosmecêutico", preparado cosmético que envolve a coordenação de profissionais farmacêuticos e princípios ativos dermatológicos. "Das formulações que proporcionavam, no máximo, efeitos físicos sobre a pele como, por exemplo, os produtos emolientes, chegamos às que incluem princípios ativos com a intenção de tratar patologias cutâneas", explica ela.

A pele sempre foi alvo de muita pesquisa. Anteriormente, a atenção se voltava para a cura de vítimas de queimadura. "Hoje há muitos estudos celulares direcionados ao desenvolvimento de produtos que prometem melhor estética", observa Sheila. "Assim, a cosmetologia está se tornando uma ciência cada vez mais abrangente, ao incorporar ações da bioquímica, da biologia molecular e da imunologia", diz ela.

O farmacêutico Maurício Pupo, coordenador do curso de MBA em cosmetologia do Instituto Maurício Pupo de Educação e Pesquisa, de Campinas, diz que os chamados "cosméticos funcionais", baseados em estudos de fatores de crescimento da epiderme, têm alta eficiência e dão início a uma nova era no tratamento da pele. Eles aceleram a divisão celular por meio de seus peptídeos e tornam mais rápida a cura de ferimentos cutâneos. Graças à engenharia genética, é possível sintetizar peptídeos (proteínas) similares aos naturalmente existentes no corpo humano. Utilizados pela cosmetologia, eles são indicados contra o envelhecimento.

"Há muitos princípios ativos que podem ter contraindicações e ainda não foram adequadamente testados, devido à própria natureza e definição da cosmética", insiste em alertar o médico dermatologista Valcinir Bedin, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Estética, Regional São Paulo. O médico diz que a grande novidade nessa área são os sistemas de entrega dos hidratantes superpotentes, capazes de garantir que a água penetre a pele além da epiderme. Entre esses estão os que utilizam cápsulas produzidas por nanotecnologia. "Na Austrália existe um implante semelhante aos adesivos transdérmicos que libera um elemento similar à melanina e que atua como fator de proteção solar", relata ele. Por enquanto, o produto ainda não está disponível no mercado.

Origens

A medicina estética nasceu na França, em 1973, quando três dermatologistas, Jean-Jacques Legrand, francês, Carlo Alberto Bartoletti, italiano, e Michel Delune, belga, decidiram estudar questões relacionadas a problemas de beleza. A essa primeira sociedade seguiram-se outras na Bélgica, Itália e Espanha. Essas entidades, unidas, adotaram normas de conduta e comportamento científico. Foi criada, então, a União Internacional de Medicina Estética (Uime), com sede em Paris. A associação brasileira foi fundada em 1988 e oferece cursos de pós-graduação lato sensu em medicina estética, reconhecidos pelo Ministério da Educação (MEC). "É uma especialidade que soma o conhecimento de diferentes áreas médicas, como dermatologia, endocrinologia e clínica geral", diz Bedin. "A Organização Mundial da Saúde (OMS) diz que saúde não é simplesmente a ausência de doenças, mas sinônimo de bem-estar biopsicossocial. Se por razões estéticas ou corporais uma pessoa não se sente bem, ela não está saudável. Daí a importância da especialidade", argumenta o médico.

A convivência, contudo, da medicina estética com outras áreas médicas, como a dermatologia, não é pacífica. A briga por pacientes tem causado alguns escândalos. O Conselho Regional de Medicina do Paraná, por exemplo, acusa os profissionais da medicina estética de despreparados e de praticar procedimentos sem base científica. A resposta ao que considera insulto está na primeira página do site da Sociedade Brasileira de Medicina Estética, que atribui as acusações a pressões da Sociedade Brasileira de Dermatologia Regional Paraná e ameaça o conselho regional com um processo judicial. "O especialista em medicina estética é, antes de tudo, um médico formado e com pós-graduação", diz Bedin.

A diferença principal entre os procedimentos da medicina estética e da dermatologia está na visão mais geral que o especialista em estética tem de questões relacionadas à saúde e à auto-imagem, explica Bedin, que também é dermatologista. "Por outro lado, a dermatologia tende a cuidar cada vez mais de doenças, áreas nas quais um médico especializado em estética não transita", acrescenta ele.

Os procedimentos da medicina estética podem ser invasivos, como no caso de produtos injetáveis, mas nunca cirúrgicos. A especialidade faz uso de três grupos de produtos: o dos paralisadores, que servem para corrigir marcas faciais dinâmicas – rugas de movimentação –, como a toxina botulínica, comercializada com o nome de Botox; o dos estimuladores, destinados a ativar a produção do próprio colágeno, como o ácido L-polilático; e o dos preenchedores, indicados para áreas que perderam volume. No caso da toxina botulínica, o sistema nervoso central não é atingido pela substância, que apenas produz uma paralisia muscular localizada, diminuindo a flacidez.

A médica geriatra Izilda Helena Peres Penteado, pesquisadora de implantes de proteínas faciais e fundadora do departamento de procedimentos não-cirúrgicos da Clínica Ivo Pitanguy, no Rio de Janeiro, explica que existem proteínas faciais de origem biológica capazes de estimular a produção do colágeno e da elastina. Ela acrescenta, porém, que os materiais sintéticos são os mais eficazes.

Segundo ela, as tentativas de preenchimento de depressões ou cicatrizes são feitas há décadas, com implantes biológicos ou artificiais. Os principais materiais biológicos experimentados durante esse período, no entanto, eram reabsorvidos no máximo um ano após a aplicação. Já os sintéticos, como o silicone, apresentavam até algum tempo atrás efeitos colaterais como migração, nódulos de inflamação crônica e reação alérgica.

Foi no início dos anos 2000 que se popularizou o uso de um componente sintético que não provocava efeitos colaterais, o polimetilmetacrilato (PMMA). Esse material, comum no campo médico desde meados do século 20, era destinado a próteses dentárias e implantes de reparo de cirurgias crânio-faciais. A biocompatibilidade do PMMA embalado em microesferas foi testada na década de 1980, em diferentes universidades europeias. Em 1994, microesferas de PMMA misturadas a colágeno bovino e injetadas na camada subcutânea demonstraram a capacidade de provocar um pequeno aumento de volume local, sem inflamações ou efeitos adversos. Atualmente o produto é utilizado até para o aumento do pênis.

Como no caso do Botox, existem no mercado diversas empresas que comercializam compostos de PMMA. Os produtos variam principalmente em relação à substância biológica que o carrega e ao tamanho das microesferas. No Brasil, ele é fabricado e comercializado exclusivamente por uma indústria farmacêutica carioca, com o nome de Meta-Crill. Em diferentes momentos, a Anvisa precisou atuar contra outros laboratórios instalados no país, que, sem deter a patente do produto, fabricavam o PMMA com outro nome comercial.

Não surpreende, diante de tantas novidades, que também se multipliquem, para médicos, farmacêuticos ou esteticistas, o número de cursos voltados para a área de beleza. A Universidade Anhembi Morumbi oferece, desde o início de 2008, curso de graduação em estética. Já o Senac de São Paulo, que tem muita tradição na área de preparação de técnicos de beleza e saúde, lançou, no início deste ano, o curso superior de tecnologia em estética e cosmética, com duração de três anos.

Na pós-graduação, mais de uma dezena de escolas já oferecem esses cursos, entre os quais o pioneiro é o das Faculdades Oswaldo Cruz. Não é por acaso que o país conquista, cada vez mais, a fama de terra de gente bonita. Ciência, ensino e tecnologia têm ajudado muito na obtenção desse status.

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