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Quem tem medo de Curupira?


Do Rio Grande do Norte para o Brasil, a saga das expedições de Câmara Cascudo em busca do imaginário popular brasileiro
 

 

Muita gente tem medo de curupira, saci, lobisomem e boi-tatá. Ele não tinha. Pelo contrário, gostava muito de todos esses seres fantásticos. Tanto que, não contente em conhecer aqueles mais “famosos”, foi atrás dos menos conhecidos. No Sul de Minas, encontrou o chibamba, negro dançador, envolto em folhas de bananeira, que vem para assustar as crianças insones. Em Pernambuco, conheceu João Galafuz, duende luminoso que emerge das ondas prenunciando tempestades e naufrágios. Longe dali, nas florestas paraenses, soube do juruti-pepena, pomba mítica que tira o movimento dos braços e das pernas das pessoas.

A enumeração poderia seguir por páginas a fio, sem sequer uma repetição... O protagonista desta história é Luís da Câmara Cascudo, o homem que catalogou, registrou e publicou em seus mais de 150 livros uma enorme gama de figuras e mitos da cultura popular brasileira.

Câmara Cascudo, assim como as lendas e causos que compilou durante a vida, é conhecido até por quem pensa que não o conhece. É ele o homem de testa alta, cabeleira vasta e sobrancelhas grossas e arqueadas que ilustrou as notas de 50 mil cruzeiros durante a Era Collor. Era ele de um lado e bumba-meu-boi do outro. Em Natal, terra onde nasceu e viveu, ficou conhecido como “o homem que sabe de tudo”, como testemunhou Assis Angelo, jornalista e pesquisador da cultura popular brasileira que foi ao Rio Grande do Norte entrevistar Cascudo para o suplemento Folhetim, do jornal Folha de S.Paulo. A matéria foi publicada uns dias depois do aniversário de 80 anos de Cascudo, em 7 de janeiro de 1979. Como registra Angelo, mesmo com a idade avançada, ele era “um velho simples, cordial, brincalhão, irônico”.

Além disso, Cascudo pode certamente ser definido como bom proseador. Contou ele ao repórter, em bem-humorado protesto, sobre uma homenagem que recebeu do governo de Natal. “A rua onde nasci tinha nome lindo: Rua das Virgens”, narrou. “Um dia, o prefeito resolveu mudar para rua Luís da Câmara Cascudo. Escrevi-lhe umas cartas desaforadas, até que ele trocou, ou melhor, acrescentou algo mais ao nome. Agora, a rua se chama Luís da Câmara Cascudo, ex-rua das Virgens.”

“Uma pessoa em dois grossos volumes”

Um poeta que bem definiu a grandiosidade da obra de Cascudo para o Brasil foi o mineiro Carlos Drummond de Andrade. “O Cascudo aparece, e decide a parada”, escreveu ?Drummond em “Imagem de Cascudo”, texto de homenagem ?ao aniversário de 70 anos do pesquisador, publicado no volume Província, da Fundação José Augusto, localizada em Natal. “Todos o respeitam e vão por ele. Não é propriamente uma pessoa, ou antes, é uma pessoa em dois grossos volumes, em forma de dicionário que convém ter sempre à mão, para quando surgir uma dúvida sobre costumes, festas, artes do nosso povo.” A obra à qual o poeta mineiro se refere é o Dicionário do Folclore Brasileiro (Global Editora, 2000), escrito na década de 1950 e tido como uma das mais importantes contribuições de Cascudo para a cultura nacional.

Além do dicionário, obra de fôlego, Cascudo escreveu várias outras, destrinchando partes até então pouco conhecidas do folclore nacional. Em seus estudos, apontou a forte mistura entre os mitos vindos dos três povos considerados fundadores da civilização brasileira: índios, negros africanos e portugueses. “Mito negro apenas atino com o Quibungo. Europeu puro, não avistei. Indígena 100%, idem”, anotou em Geografia dos Mitos Brasileiros (Global Editora, 2002), publicado originalmente na década de 1940.

E não foram só autores como Drummond ou o amigo Mario de Andrade – outro estudioso do tema – que respeitavam a figura de Cascudo e sua contribuição para a pesquisa e o registro dos fenômenos populares brasileiros. O compositor, poeta e improvisador cearense Patativa do Assaré foi outro que lhe rendeu odes. No poema Câmara Cascudo, reconhece-o como o maior potiguar nos estudos da cultura popular: “Contava tudo a miúdo/ porque sabia de tudo,/ conservava nos arquivos/ populares tradições,/ lendas e superstições;/ e costumes primitivos”.

Homem de família

Se no perfil público Cascudo acumulava títulos – historiador, pesquisador, advogado, jornalista, etnólogo e professor –, na vida particular, acumulava casos. A começar pelo sobrenome Cascudo, uma invenção herdada do avô paterno, um dos chefes do Partido Conservador – que era conhecido como Partido Cascudo, em alusão à teimosia e à obstinação. Nascido em 30 de dezembro de 1898, foi único sobrevivente dos quatro filhos do coronel Francisco Justino de Oliveira Cascudo e Don’Anna da Câmara Cascudo. Os outros três morreram ainda na primeira infância. O resultado, uma criação cheia de cuidados para o pequeno Luís, que cresceu sem poder brincar com as outras crianças. “Não corria. Não saltava. Não brigava. Nunca pisei na areia nem andei descalço”, registrou em O Tempo e Eu – Memórias, [EDUFRN, 1998] autobiografia que escreveu aos 70 anos, em 1968.

“Jamais subi a uma árvore. Cuidado com fruta quente, sereno, vento encanado!” No entanto, as restrições às peraltices infantis lhe valeram, ainda criança, intenso contato com a literatura.

Quando jovem, conheceu Dahlia Freire, que viria a se tornar esposa de toda a vida. Ela, adolescente, dez anos mais nova que Cascudo. Ele, estudante universitário, morava em Recife para cursar direito. O tempo para o retorno à terra natal e para o casamento foi marcado por cartas enviadas à amada. Um pequeno trecho do testemunho de Dona Dahlia para o programa Depoimento TV Cultura – Cascudo, produzido em 1978, mostra como foi construída essa singela relação de tantos anos. “Conheci [Câmara Cascudo] usando na lapela um raminho de violetas, mas, depois, no começo do nosso namoro, ele substituiu a violeta por uma dália.”

A neta, Daliana Cascudo, conta que moravam todos juntos – Cascudo, a esposa, filhos e netos. “Segundo ele, ‘pai é para educar e avô é para deseducar’, e ele seguia essa ‘filosofia’ à risca”, recorda a neta. “Éramos parceiros na compra de chocolates e cúmplices em brincadeiras e confidências.” Daliana, junto da mãe e irmãos, está à frente do projeto do Instituto Câmara Cascudo. A perspectiva é que, em dezembro, a casa onde viviam, em Natal, seja aberta à visitação, reunindo objetos pessoais e obras de Câmara Cascudo. O projeto pretende tornar mais acessível o legado do pesquisador, morto em 1986, preservando a memória do grande mestre da cultura popular brasileira e facilitando o acesso a pessoas não só do Rio Grande do Norte, mas de todo o país. “O Brasil ainda precisa descobrir, e muito, a dimensão da obra cascudiana”, afirma Daliana.


Inspiração para os pequenos
Projeto no Sesc Vila Mariana reúne espetáculos teatrais baseados na obra de Câmara Cascudo


O pesquisador Câmara Cascudo inspira uma série de espetáculos infantis apresentados no Sesc Vila Marina em setembro e outubro. Este mês, a meninada ainda pode se divertir com o espetáculo de sombras O Valente Filho da Burra, com a Cia. Articularte. A peça, em cartaz nos dias 4, 11, 18 e 25 de outubro, foi baseada em conto homônimo de Câmara Cascudo e narra a história de um menino-gigante amamentado e criado por uma burra. A exibição faz parte da programação especial Câmara Cascudo Para Crianças. Outras duas peças de companhias paulistas ocuparam a unidade no mês passado: Casos Cascudos, com a Cia. Tribo, e A Princesa Jia, com As Meninas do Conto.

Em Casos Cascudos, histórias diversas reunidas pelo pesquisador são contadas por meio de diferentes técnicas de manipulação de bonecos, reunindo mamulengos, bonecos de vara e fantoches. Já A Princesa Jia conta a saga de uma família formada por pai, mãe e três filhos, e que parte em busca de moradia e trabalho. No caminho, João, o caçula, encontra um castelo velho e feio habitado por uma jia. Mas o que João não imagina é que aquela pequena rã era na verdade uma princesa encantada.

Também em setembro foi re-exibido no SescTV o programa O Mundo da Literatura sobre a vida, obra e legado de Câmara Cascudo. Filmado em Natal, o episódio reúne familiares, como a filha Anna Maria Cascudo e a neta Daliana, e especialistas para falar sobre o intelectual. Percorrendo a memória viva de Câmara Cascudo na cidade, o programa mostra o memorial que leva seu nome e a casa onde viveu.

Também fala um pouco sobre o processo de criação de algumas obras, mostrando como era feita a escolha dos temas e a pesquisa. O Mundo da Literatura é uma série que propõe diversos olhares sobre a literatura – escritores, leitores, entre outros – para analisar obras ou autores.