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Normas europeias afetam exportadores

Regulamento impõe novas regras para o fornecimento de substâncias

CELIA DEMARCHI


Controle de qualidade: soluções inovadoras
Foto: Divulgação

Em vigor desde 1º de junho de 2008, o novo regulamento para controle de substâncias químicas da União Europeia (UE) está fazendo tremer as bases do setor industrial – e não apenas do segmento químico – do mundo todo. O Reach (Registration, Evaluation, Authorization and Restriction of Chemicals) exige que os fabricantes e os importadores estabelecidos no bloco econômico se responsabilizem pela segurança das substâncias químicas – o que antes era tarefa do governo – e a comprovem, por meio de verdadeiros dossiês sobre os riscos à saúde humana e ao meio ambiente implícitos nos processos industriais e nos artigos que possam liberá-las. Com base nas informações, a Agência Europeia de Substâncias Químicas (Echa, na sigla em inglês), criada para gerir o regulamento, poderá restringir ou mesmo proibir seu uso ao longo dos próximos anos.

A nova legislação remete aos compromissos assumidos pelos países participantes da Conferência Rio+10, em Johannesburgo, em 2002, à mobilização internacional das próprias indústrias químicas e, principalmente, ao cenário que motivou tais atitudes: das 101 mil substâncias químicas desenvolvidas até 1981, sabe-se pouco (43% do total) ou nada (21%), segundo Fernando Zanatta, gerente de Product Stewardship da Rodhia no Brasil. A partir daquele ano, apenas pouco mais de 4,3 mil novas substâncias foram lançadas – sobre estas há muito mais informações, inclusive relacionadas a riscos ambientais, porque os mercados foram se tornando mais exigentes. De todas essas substâncias, estima-se que cerca de 30 mil são regularmente empregadas pela indústria, mas surpreendentemente mais de 100 mil passaram pelo processo de pré-registro exigido pela Echa.

Os impactos da legislação sobre a cadeia produtiva serão imensos, principalmente por causa dos altos custos que implica. Segundo Zanatta, a UE estima que cerca de 2% das substâncias atualmente disponíveis no mercado mundial deixarão de ser fabricadas – ou por se tornarem economicamente inviáveis, em consequência das despesas com a regulamentação, ou por falta de segurança.

Parte das substâncias às quais o Reach se refere como "de alta preocupação" será banida, segundo Alessandra Freitas, coordenadora do Programa de Atuação Responsável para a América Latina da Basf: "A indústria terá de encontrar novas soluções. É um momento histórico".

Mercado interno

Em 2007, o Brasil exportou US$ 15 bilhões em artigos industrializados para a Europa e US$ 1,9 bilhão em substâncias químicas. Segundo afirma Nelson Pereira dos Reis, vice-presidente executivo da Associação Brasileira da Indústria Química (Abiquim), a partir de uma estimativa preliminar, aproximadamente 500 empresas brasileiras exportam ou fornecem substâncias a exportadores para a UE. E algumas delas estão optando por não registrá-las devido aos custos.

Assim, seus clientes do bloco europeu devem passar a comprar dos países membros, onde todos estão obrigados a se submeter ao regulamento. Nesse ponto, segundo Reis, a legislação começa a se parecer com uma barreira não-tarifária. Ele acredita também que poderá haver dificuldades na liberação de cargas na alfândega: "Produtores de lá eventualmente poderão se aproveitar da situação para enfraquecer a concorrência", diz, embora reconheça que os europeus foram cuidadosos ao elaborar o regulamento, que trata com igualdade suas empresas e as estrangeiras, para que não se possa caracterizá-lo como barreira comercial.

Diante de tal cenário, as indústrias químicas pediram ajuda ao governo, com demandas modestas: querem isenção de impostos sobre as remessas de recursos relacionadas aos custos de registro e o estabelecimento de um escritório da Agência Brasileira de Promoção de Exportações e Investimentos (Apex-Brasil), com especialistas no assunto, para socorrer o exportador em situações nebulosas: "A Apex poderá acionar os representantes exclusivos das empresas brasileiras e gerar fatos diplomáticos", diz o executivo, informando que as negociações com os órgãos competentes do governo federal estavam bem encaminhadas em novembro. Os representantes exclusivos dos quais ele fala são escritórios que os exportadores para a UE precisam contratar como responsáveis pelo registro de suas substâncias no bloco.

Fabricantes asiáticos (os maiores fornecedores de químicos à UE, ao lado dos Estados Unidos), para os quais o bloco talvez se torne menos atraente, poderão deixar o mercado europeu para invadir o latino-americano, pois a recessão econômica está minando, inclusive, e talvez principalmente, a antiga tábua de salvação – o poder econômico dos norte-americanos. "Essa possibilidade está no radar das empresas brasileiras e multinacionais estabelecidas no Brasil", diz Irlam Aragão, gerente de Qualidade, Produtividade, Saúde, Segurança e Meio Ambiente da petroquímica brasileira Braskem.

Assim, aumentaria ainda mais a disputa pelos mercados locais na América Latina, para onde certamente as empresas nacionais que também vierem a desistir da UE, em especial as pequenas e médias, voltarão todos os seus esforços. Na Europa, esses fabricantes seriam provavelmente substituídos por asiáticos e europeus do leste.

Diante disso, as empresas começam a acionar seus departamentos de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Para se prevenir da eventual falta de uma ou outra substância aplicada a seus artigos, a Faber-Castell investe no desenvolvimento de novos produtos, com ingredientes alternativos, segundo Paula Naidhig Puzzi, pesquisadora do departamento de P&D da companhia: "A base são substâncias que certamente serão registradas". Ao mesmo tempo, a empresa está em busca de novos fornecedores, inclusive porque, segundo Paula, algumas multinacionais com fábrica no Brasil já sinalizaram que poderão parar de produzir certas substâncias, que deixarão de ser viáveis economicamente.

A mudança mais profunda, no entanto, deve acontecer nas petroquímicas, a partir deste ano, quando poderão sair as primeiras restrições mais severas ou mesmo proibições de substâncias na UE. Isso se deve ao fato de essas empresas atuarem na química de base. Nessa fase, é maior a possibilidade de que algumas substâncias apresentem riscos para a saúde humana e o meio ambiente, embora eles possam ser eliminados até a etapa de fabricação dos artigos de consumo, diluindo-se ao longo da cadeia, conforme explica Adonis Garcia Reina, analista de segurança de produto da multinacional suíça Clariant no Brasil.

A estratégia de inovação da petroquímica Braskem – que exporta, inclusive para a UE, em torno de US$ 1 bilhão e faturou R$ 23, 8 bilhões brutos em 2007 – visa manter sua fatia no exterior. Assim, a empresa está atenta às tendências do Reach: "Quando os consórcios começarem a produzir informações, saberemos qual é a linha da comunidade europeia. No limite, a rota de produção de toda a área de substâncias aromáticas será modificada", diz Aragão, da Braskem. Os consórcios a que ele se refere serão formados pelas fabricantes, que reunirão os dados disponíveis sobre as substâncias e realizarão mais estudos e testes para submetê-las à aprovação da Echa.

O executivo explica que, se os europeus levarem à risca o que prometem com o novo regulamento e proibirem substâncias como o benzeno, classificado como de "alta preocupação", a indústria petroquímica terá de alterar o processo de produção do eteno e do propileno. As duas principais matérias-primas do plástico teriam de ser obtidas então do gás, e não mais da nafta, que gera substâncias aromáticas, como o benzeno e o oxileno, dois solventes.

Para isso, no entanto, o setor petroquímico terá de passar por uma reestruturação tecnológica (segundo Aragão, somente o grupo Quattor já detém essa tecnologia no Brasil). Outra dificuldade seria esta: a indústria teria de desenvolver outros solventes, inofensivos à saúde humana e ao meio ambiente, para substituir aqueles que deixariam de ser produzidos.

A velocidade das mudanças vai depender das tendências indicadas pelo Reach, que pode se tornar mais flexível até por questão de coerência, segundo Aragão: "Se o que se busca é sustentabilidade, é preciso levar em conta seus três pilares – o ambiental, o social e o econômico. Se a legislação provocar desequilíbrio econômico, afetará também o componente social. É preciso ir mais devagar".

Complexidade

Além de caro, adequar-se à nova regulamentação é extremamente trabalhoso. Na primeira etapa, o Reach exige registro para as substâncias distribuídas em grandes volumes nos países europeus (1.000 toneladas ou mais por ano por fabricante do bloco ou importador) e para as classificadas como de "grande preocupação", independentemente da quantidade. Em seguida, terão de ser registradas as substâncias comercializadas em volumes de 100 a 1.000 toneladas/ano e por último de 1 a 100 toneladas/ano. O cronograma foi concebido para que as pequenas e médias empresas, que em teoria produzem quantidades menores, tenham mais tempo para se adequar.

A prática, porém, está mostrando outra realidade. Veja-se o caso das fabricantes brasileiras de cosméticos que exportam para a UE, quase todas pequenas e médias. Como os componentes químicos dos cosméticos contemplam as diretivas internacionais quanto à saúde humana, mas ainda não foram avaliados em relação a eventuais danos ao meio ambiente, estão sujeitos ao Reach – têm de passar por testes de ecotoxicidade.

As fabricantes de cosméticos e seus importadores da UE estão entre as empresas que foram obrigadas a tomar uma série de providências antes de 1º de dezembro do ano passado, quando venceu o prazo para o pré-registro de substâncias, sem o qual sua comercialização fica proibida, a partir deste mês de janeiro, nos países do bloco: identificar cada substância, calcular em que volume está presente em seus produtos, passar os dados ao importador. Este, por sua vez, precisou reunir as informações de todos os seus fornecedores, avaliar quais substâncias atingem ou ultrapassam mil toneladas anuais em seu negócio, descobrir assim quais dos componentes precisam de registro e fazer o pré-registro.

Teoricamente, as substâncias presentes nos cosméticos brasileiros foram pré-registradas pelos importadores. A partir de agora, porém, eles precisarão das informações (estudos e testes) já disponíveis das substâncias. O fabricante de cosméticos terá de solicitá-las a seus fornecedores de matéria-prima, que podem simplesmente se recusar a repassá-las, alegando necessidade de preservar segredos comerciais.

Rose Hernandes, diretora de Meio Ambiente, Saúde e Segurança Ocupacional da Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec), afirma que a entidade orientou as empresas do setor, mas está insegura quanto aos resultados do esforço e preocupada com o impacto nos negócios do segmento: "Sempre há quem deixa para a última hora, ou mesmo não acredita que os europeus insistirão em normas tão rigorosas e complicadas. E ainda temos de considerar que os custos de registro serão repassados aos artigos".

Diante de tanta dificuldade, a Comarplast, fabricante nacional de algumas substâncias e principalmente de aditivos químicos, chegou a considerar a hipótese de ignorar o Reach, assustada com os custos, de saída, do representante exclusivo, exigido para companhias de fora da UE quando o importador não se responsabilizar (de € 70 mil a € 120 mil por substância), mas recuou.

Os aditivos da Comarplast, empresa de médio porte estabelecida há 33 anos na cidade de Capão Bonito (SP), chegam aos países do bloco embutidos nas exportações de pelo menos dois de seus principais clientes – Faber-Castell, para a qual vende estearato de zinco e soja hidrogenada, e Vipal, indústria de pneus, que compra sua resina sintética.

Portanto, para que Faber-Castell e Vipal continuem vendendo alguns de seus artigos para a UE, as substâncias contidas nesses aditivos têm de ser registradas. Para manter os clientes, que representam de 20% a 25% do total de suas vendas, a Comarplast precisou procurar seus fornecedores e pedir que fizessem o pré-registro das substâncias no prazo estipulado. E ainda optou por pré-registrar as próprias substâncias que vende diretamente à UE, segundo informa Marcos Frazão, coordenador de qualidade da empresa.

A Megh, de São Paulo, capital, pequena fabricante de resinas para papéis, plásticos, borrachas, ceras líquidas e ceras de polietileno, não vende nada para a UE, mas dois de seus clientes comercializam artigos que embutem seus polímeros. Essas empresas, por sua vez, pediram à Megh que averiguasse se os fabricantes das substâncias contidas nas resinas fariam o pré-registro. Como até mesmo o maior fornecedor da Megh decidiu não fazer isso, alegando que os volumes e valores envolvidos não justificavam o investimento, a empresa não poderá mais atender os clientes interessados – que tiveram de buscar outros fornecedores. "A demanda interna é forte, representa mais de 85% de nosso faturamento. No exterior, vendemos para o Mercosul e os Estados Unidos", justifica Ivan Rose, coordenador de qualidade da Megh.

Segundo Paula, da Faber-Castell, maior produtora de lápis do mundo, mais da metade dos fornecedores da unidade brasileira é constituída por empresas nacionais. Os grandes, como a Oxiteno, responderam rapidamente à demanda de informações da cliente. De acordo com Nádia Armelin, Reach administrator da Oxiteno, multinacional brasileira do grupo Ultra, a companhia procurou conhecer os interesses dos clientes potencialmente exportadores, para definir que estratégia empregar para as substâncias que comercializa no mercado interno. E decidiu pelo pré-registro de todas as que exporta – as vendas externas equivalem a cerca de 30% da produção da Oxiteno.

A companhia aproveitou a estrutura de seu escritório na cidade de Bruxelas, na Bélgica, criado como parte de sua estratégia de internacionalização, para ser sua própria representante legal e também da Oxiteno México e da Oxiteno Andina, estabelecida na Venezuela, e só avaliará a viabilidade econômica de cada item durante a fase de registro, em que se concentrarão os maiores custos. Essa foi a estratégia também de multinacionais estrangeiras com sede ou empresas na UE, como a Rodhia (de origem francesa), a Clariant (suíça) e a Basf (alemã).


Mercado exigente

A maior novidade do Reach é o fato de inverter o ônus da prova: a partir de agora, fabricantes e importadores da União Europeia (UE) terão de se responsabilizar pela segurança das substâncias químicas disponíveis no mercado. Quem exporta para a UE precisará de representante legal que se responsabilize – que pode ser o importador ou um representante exclusivo.

Entre 1º de junho e 1º de dezembro do ano passado, as fabricantes químicas da UE, assim como os importadores de substâncias e artigos que as liberam para o meio ambiente (como canetas, cosméticos, velas aromáticas) tiveram de fazer o pré-registro de suas substâncias, sem o qual não mais poderão comercializá-las, puras ou embutidas em artigos, nos países membros a partir deste mês de janeiro.

As normas são tão complexas e implicam custos tão elevados que somente agora, com a publicação da lista de substâncias pré-registradas, os fabricantes de todo o mundo poderão saber quais empresas eventualmente preferiram recuar do mercado europeu. Quando expirou o prazo estipulado pela Agência Europeia de Substâncias Químicas (Echa, na sigla em inglês), havia mais de 1 milhão de pré-registros efetuados por empresas espalhadas por todo o planeta, cobrindo mais de 100 mil substâncias.

Os custos de avaliação, que podem chegar a € 2,8 milhões para substâncias sobre as quais não se tenha nenhuma informação, segundo a consultora Nícia Mourão Henrique, poderão ser divididos entre as empresas que as fabricam, que a partir deste mês de janeiro integrarão fóruns para trocar informações sobre essas matérias-primas (o Reach prevê um registro para cada substância).

Os representantes exclusivos para fabricantes de fora da Europa cobram de € 70 mil a € 120 mil por substância. Além disso, os fabricantes terão de arcar com viagens e as taxas recolhidas para a Echa, que variam de € 120 (microempresa que exporta de 1 a 10 toneladas/ano de cada substância) a € 31 mil (exportadores de mais de 1.000 toneladas/ano).

Em primeiro lugar, serão registradas as substâncias distribuídas em grandes volumes nos países europeus (1.000 toneladas ou mais por ano por fabricante ou importador) e as classificadas como de "grande preocupação" (passíveis de causar câncer ou mutação genética, prejudicar a reprodução humana ou se acumular no organismo ou no meio ambiente), independentemente da quantidade. Em 2018, todas as substâncias do mercado deverão ter sido avaliadas e registradas.

 

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