Sesc SP

Matérias da edição

Postado em

Drogas que são movidas a esperança

Milhares de pessoas participam de experimentos arriscados de remédios e próteses

NILZA BELLINI


Arte PB

Pouca gente lembra, ao sentir uma leve dor de cabeça, que o pequeno comprimido capaz de eliminar o desconforto, ingerido na maior parte das vezes sem receituário, foi objeto de estudos antes de ser vendido. Esses testes, que envolvem experiências em tubos de ensaio, com animais e finalmente seres humanos, constituem a chamada pesquisa clínica, uma fase de experimento de novas drogas em que empresas farmacêuticas investem bilhões de dólares e da qual participam milhares de pessoas. A despeito desses procedimentos, há casos de medicamentos já aprovados cujos efeitos adversos superam os benefícios trazidos – como ocorreu com anti-inflamatórios de última geração recentemente retirados do mercado por causar infartos. Se isso acontece com produtos à venda, o que dizer de substâncias que estão em fase de investigação?

As regras que norteavam os estudos farmacêuticos para o desenvolvimento de medicamentos durante o século 20 eram discutíveis e falhas. A ingestão de alguns remédios experimentais causou centenas de milhares de malformações fetais, mortes e outros graves efeitos adversos, principalmente entre populações de países miseráveis onde pesquisas desse tipo foram conduzidas. Em 1932, 400 negros jovens que sofriam de sífilis foram recrutados no Alabama, nos Estados Unidos, para participar de um estudo sobre a evolução natural da doença, e foram mantidos sem tratamento. A pesquisa foi interrompida apenas em 1972, após denúncia do "New York Times". Restavam, na época, 74 pessoas vivas. Outro experimento norte-americano que chocou a opinião pública ao ser revelado foi o do Hospital Estadual de Willowbrook, em Nova York, entre 1950 e 1970. Nesse período, médicos injetaram o vírus da hepatite em crianças com deficiência mental. A reação veio em 1974, quando o governo e o Congresso norte-americanos constituíram a National Comission for the Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research. Foi estabelecido, como objetivo principal da comissão, identificar os princípios éticos básicos que deveriam conduzir a experimentação em seres humanos, o que ficou conhecido como Belmont Report.

Atualmente, graças à Declaração de Helsinki, um documento de regulação ética da Associação Médica Mundial (WMA), elaborado pela Assembleia das Associações Médicas de 192 países (inclusive o Brasil), o desenvolvimento de novos medicamentos obedece a regras e preceitos que tornam os procedimentos envolvidos muito mais seguros. A primeira declaração é de 1964 e já foi atualizada em 1975, 1983, 1989, 1996, 2000 e 2004. Agora, em 2009, haverá uma nova versão. Para que isso ocorra, médicos do mundo inteiro, ligados à WMA, têm se reunido em diferentes países. Como sempre tem acontecido, não ocorrerão grandes modificações na estrutura da declaração. Serão poucas as mudanças no escopo, na terminologia, que se limitarão à integração de notas de esclarecimento ao texto para ajudar a minimizar três pontos de conflito: o uso de placebo (substância inócua), a proibição de experimentos com crianças e o acesso dos voluntários às novas drogas, mesmo depois de encerrada a pesquisa. No Brasil, as discussões foram conduzidas pela Associação Médica Brasileira em um fórum realizado em agosto de 2008 e as propostas encaminhadas posteriormente aos representantes da WMA.

O principal mecanismo da Declaração de Helsinki são os comitês de ética, de constituição obrigatória quando uma universidade, clínica ou hospital pretende realizar pesquisas com humanos. Esses comitês analisam o objetivo do experimento, asseguram que os direitos dos voluntários sejam respeitados e acompanham todos os procedimentos. Eles são formados por profissionais de reconhecida competência em suas áreas de atuação e religiosos ou filósofos, que levam em consideração preceitos morais de cada sociedade onde a pesquisa é realizada. Depois, a proposta passa pela apreciação de serviços regulatórios. No Brasil, isso é feito pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep) do Conselho Nacional de Saúde. Em última instância, a Anvisa aprova ou não a realização dos estudos de acordo com a orientação da Conep, composta por um grupo de 13 pessoas, que inclui religiosos e representantes dos voluntários. A avaliação é feita em três vertentes: a da metodologia dos protocolos que vão subsidiar o registro dos ensaios; a do controle dos produtos que entram no país para ser experimentados e a dos relatos de efeitos adversos após o início do estudo.

Em 2008, foram solicitadas 325 avaliações de ensaios clínicos e rejeitados cerca de 17% deles. Em 2007, houve 281 pedidos, dos quais por volta de 21% foram negados. "É importante lembrar que esses números não correspondem aos de novas drogas experimentadas, porque cada uma delas pode demandar vários ensaios", diz Patrícia Ferrari Andreotti, coordenadora de Pesquisas e Ensaios Clínicos da Anvisa. "Os motivos para rejeitar os trabalhos foram tanto de ordem ética quanto metodológica", continua, sem individualizar casos. Por outro lado, devido a eventos adversos graves observados durante os experimentos, cerca de 5% dos estudos foram interrompidos. "Em geral a própria indústria suspende o trabalho e nos comunica", acrescenta.

A aprovação para a venda de medicamentos em território nacional cabe a outra divisão da Anvisa, a Farmacovigilância. Em 2007, 16 novos produtos entraram no mercado. Nem todos eles foram testados no Brasil durante a fase de ensaios, assim como nem todos os remédios que usam voluntários brasileiros são licenciados para uso no país. Finalmente, vale destacar que alguns fármacos podem ter sua venda suspensa depois de autorizados. Para isso são realizados outros estudos, como aconteceu com o anti-inflamatório Prexige, no ano passado.

A questão da responsabilidade

Leigos, os participantes dos testes, que podem ou não ser doentes, algumas vezes confundem pesquisa clínica com tratamento. Esclarecer detalhadamente a finalidade dos estudos aos que participarão do trabalho em desenvolvimento é uma das funções dos comitês de ética e dos médicos pesquisadores."No tratamento médico, o objetivo é a cura ou a melhora de uma patologia, mediante a utilização de técnica apropriada, devidamente reconhecida no meio científico e aprovada pelos órgãos competentes. A responsabilidade pelo resultado, inclusive legal, é do médico", destaca Freddy Goldberg Eliaschewitz, coordenador médico do Núcleo de Terapia Celular e Molecular (Nucel) da Pró-Reitoria de Pesquisa da Universidade de São Paulo (USP). "Já a pesquisa clínica visa obter um conhecimento que possa ser generalizável, tem um tempo de duração restrito por um protocolo prévio aprovado pela Comissão de Ética e busca criar evidências de eficácia. A responsabilidade é compartilhada entre o patrocinador, o pesquisador, o comitê e a instituição onde o estudo é realizado", esclarece ele.

As pesquisas clínicas estão divididas em fases com objetivos diferentes, diz Conceição Acceturi, presidente da Sociedade Brasileira de Profissionais em Pesquisa Clínica. A fase pré-clínica é aquela em que a ideia dos cientistas é testada em tubos de ensaio e com animais. Observa-se então se a medicação tem "potencial" para tratar determinada doença humana. O índice de substâncias experimentadas em animais aprovadas para a etapa seguinte, com humanos, é de apenas uma em cada mil, em média.

"A pesquisa com seres humanos se subdivide em quatro fases sucessivas", explica Conceição Acceturi. Na fase 1, feita em grupos pequenos, com no máximo 30 pessoas, em geral sadias, o objetivo é estudar a toxicidade do medicamento, verificar se ele é suportado pelo organismo. Também é nessa etapa que se determina a dose máxima e a forma de administração, se injetável ou oral, do remédio. Na fase 2, o número de pacientes é maior, mas raramente ultrapassa cem pessoas. Busca-se então avaliar o potencial de eficácia da droga e obter informações mais detalhadas sobre efeitos adversos. Na fase 3, é feita uma comparação com o tratamento-padrão já existente. Em geral, nesse estágio, que pode incluir até mil voluntários, o experimento é dividido em duas partes: um grupo recebe o tratamento antigo e o outro testa a nova droga. Também são realizados estudos, nesse momento, para verificar se a combinação de dois remédios é melhor que a utilização de apenas um. Na fase 4, o medicamento já foi aprovado para ser comercializado e são adotadas estratégias de marketing para veicular a existência da nova droga, embora teoricamente essa seja uma etapa que permite acompanhar os efeitos do medicamento durante um tempo mais longo que as anteriores.

Conceição Acceturi diz, também, que qualquer um pode participar de pesquisas, com direito a anonimato e a reembolso de gastos em decorrência do estudo clínico, como o pagamento do transporte para as consultas e exames. É muito difícil, no entanto, que alguém consiga ser inserido em um experimento se não for convidado pelo pesquisador, que terá, antes do convite, avaliado ao menos superficialmente seu estado de saúde, numa triagem feita no local onde o trabalho será desenvolvido.

Muito além dos fármacos

Se, na maior parte das vezes, a pesquisa clínica serve para testar novas drogas, ela também é necessária para aprovar próteses, válvulas, marca-passos, cosméticos e até mesmo técnicas cirúrgicas. A mastologista Marianne Pinotti ajuda a coordenar os estudos realizados na Clínica Pinotti, uma das poucas que funcionam fora do ambiente hospitalar ou universitário e que estão autorizadas a realizar pesquisas com humanos em São Paulo. Na clínica, onde fica também a Escola de Ginecologia e Mastologia J. A. Pinotti, são realizados experimentos com drogas de reposição hormonal e contra câncer de mama, além de procedimentos médicos.

Dirigida pelo ginecologista José Aristodemo Pinotti, pai de Marianne, a instituição tem apoio científico da Faculdade de Medicina da USP. Ali são desenvolvidas, em média, de sete a oito pesquisas por ano, com ou sem medicamentos.

Foi o doutor Pinotti quem inventou um método cirúrgico para o tratamento do câncer de mama que preserva as margens dos seios e reduz a recidiva da doença. Para testar o procedimento, dois grupos foram acompanhados durante dez anos: um de 112 mulheres que passaram por cirurgia com a técnica de Pinotti e outro de 149 mulheres operadas segundo o método tradicional. A recidiva com a nova técnica foi cerca de dez vezes inferior. "Nosso comitê de ética tem o mesmo modelo do Conep, porque é formado por 13 pessoas, incluindo desde médicos, dentistas e biomédicos até advogados, um filósofo e um representante dos pacientes", conta Marianne Pinotti.

O cenário dos testes

Se no caso de novos procedimentos o principal investimento é a criatividade e a inteligência do cirurgião ou médico que propõe o estudo, quando se trata de novos remédios são necessários bilhões de dólares para sua aprovação. A indústria farmacêutica é uma das mais lucrativas do mundo. Cálculos extraoficiais indicam investimentos de cerca de US$ 40 bilhões por ano em pesquisa. Desde a virada do milênio, tal indústria cresceu cerca de 15% ao ano. Em 2008, o simples boato de que uma delas havia encontrado um medicamento definitivo contra o câncer fez o valor de suas ações crescer vertiginosamente – a cotação caiu no dia seguinte, mas a empresa continuou a atrair muitos investidores.

Diante de tanto dinheiro, organizaram-se companhias internacionais – algumas com escritório no Brasil – de testes clínicos ou de contratos de pesquisa com a finalidade de recrutar voluntários para participar de experimentos. Coordenadores de estudos clínicos realizados aqui são evasivos ao falar do assunto e recorrem sempre à Declaração de Helsinki, destacando questões éticas. "O mundo inteiro vigia a condução de pesquisas com novos medicamentos", diz Conceição Acceturi. "No Brasil os comitês de ética, a Conep e o Conselho Nacional de Saúde estão sempre atentos a quaisquer irregularidades", assegura.

Na verdade, raramente surgem denúncias como as que ilustram o filme O Jardineiro Fiel, ambientado na África, do diretor brasileiro Fernando Meirelles, que conta a história, fictícia, de uma ativista, Tessa (Rachel Weisz), assassinada por representantes de uma indústria farmacêutica que fazem experimentos antiéticos com um novo medicamento contra a Aids entre a população pobre do interior daquele continente.

Por outro lado, há quem reclame do excesso de rigor da Conep. Na opinião do psiquiatra Marcio Versiani, grupos de controle com placebo são indispensáveis quando se trata de determinar a eficácia de drogas destinadas a tratar transtornos mentais. "No Brasil, desde 2000, a Conep assumiu posição radical contra o controle com placebo, reprovando todas as propostas de pesquisa da fase 3. Se em outros países da América Latina os estudos com medicamentos psiquiátricos avançaram, aqui eles estão estagnados por conta disso", diz. Segundo ele, "a comparação de remédios novos com os já existentes é ineficaz, sem o grupo de controle com placebo".

Essa restrição foi motivada por experimentos sobre Aids, transmissão perinatal e tratamento da tuberculose em Uganda, país africano, na década de 1990. Os testes envolveram dois aspectos considerados antiéticos pela comunidade científica internacional: dano permanente aos voluntários participantes e emprego de técnicas de qualidade inferior, em função de menor custo. "O que ocorreu nos experimentos sobre Aids na África nada tem a ver com o grupo de controle com placebo nos ensaios clínicos sobre transtornos mentais. Na psiquiatria, esse recurso é essencial para avaliar a eficácia dos tratamentos", reitera Versiani.

Participante ativo do fórum que discutiu as alterações da declaração de Helsinki, Versiani espera que essa questão esteja resolvida neste ano.

Remédio de graça

Em locais como o Brasil, onde o atendimento na área de saúde é precário e os medicamentos muito caros para o poder de consumo médio dos doentes, não é difícil conseguir voluntários para pesquisas. Muitos são recrutados nas filas de atendimento do Serviço Único de Saúde (SUS). Embora o pagamento pela participação seja proibido, o voluntário acaba recebendo outras vantagens indiretas, como, por exemplo, a realização de checkups quase completos com tecnologia e outros recursos aos quais brasileiros pobres dificilmente teriam acesso. Os pesquisadores são obrigados a expor claramente os objetivos do estudo, mas nem sempre os participantes têm total compreensão, devido ao baixo grau de instrução, do que está sendo explicado. A confusão continua quando o assunto é a continuidade do fornecimento da droga experimental aos voluntários dos testes.

Freddy Eliaschewitz insiste que estudo não é tratamento. "A pesquisa é restringida pelo protocolo criado para conduzi-la. Mesmo quando há interesse manifesto do participante, não se pode esquecer que ninguém deve ser submetido a tratamento experimental continuamente", afirma. O cientista lembra que, no caso de drogas em fase de desenvolvimento, não há ainda o best proven, ou seja, a prova maior de que aquele remédio poderá fazer realmente bem ao paciente. "Cada estudo é desenhado para avaliar prioritariamente um determinado aspecto da droga, que chamamos de desfecho primário", explica. "Não temos uma visão do conjunto. Mostra disso é que o relato de um estudo tem de 350 a 700 páginas e o dossiê de aprovação da droga tem de 15 mil a 75 mil páginas. Não se pode considerar apenas o eventual benefício obtido."

Para exemplificar, Eliaschewitz cita uma droga chamada muraglitazar. No início dos testes essa droga, que deveria ser destinada ao tratamento de diabetes, colesterol e outros problemas agravantes de doenças cardiovasculares, foi apontada como uma grande promessa de cura. Mereceu, inclusive, elogios da imprensa leiga, já que ajudava a reduzir significativamente as taxas alteradas no sangue. Passado um ano, porém, foi possível constatar que ela dobrava o risco de infarto. "A discussão que se faz atualmente, sobre a continuidade do fornecimento de medicamentos ainda não aprovados, mesmo quando finalizado o protocolo do ensaio, é temerária e deve ser conduzida de maneira muito responsável", aconselha.

Eliaschewitz aponta outras questões, essas éticas e não clínicas, em relação à questão. "O princípio ético que norteia a pesquisa é que ela será útil para a comunidade e que os voluntários dos testes aceitam riscos para o bem da ciência com altruísmo, abnegação e desprendimento", lembra. "Pesquisa clínica não é assistência social. Não estaremos criando uma casta de pacientes privilegiados se continuarmos a fornecer a droga experimental, em vez de disseminar o benefício para todos?", pergunta. Porém, ao sentir a mínima melhora durante o processo investigatório, doentes agregados às experiências que vislumbram nas novas drogas uma esperança não querem nem pensar em discutir essa questão. 

 

Comente

Assine