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Lucro que vem do efeito estufa

Créditos de carbono levam empresas brasileiras a investir em geração de energia limpa

CEZAR MARTINS


Lixão de Marambaia, em Nova Iguaçu (RJ): projeto
pioneiro / Foto: Divulgação

Combater o aquecimento global, mais do que uma questão de sobrevivência, tornou-se um grande negócio para algumas empresas brasileiras. A obrigatoriedade dos países ricos de reduzir suas emissões de gases causadores do efeito estufa, estabelecida pelo Protocolo de Kyoto, em 1997, abriu recentemente um mercado lucrativo para companhias que desenvolvem, no Brasil, projetos que substituem fontes poluentes de geração de energia ou sequestram carbono da atmosfera. As empresas que investem nos chamados mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL) podem, desde 2004, quando o acordo entrou em vigor, vender para indústrias estrangeiras suas reduções certificadas de emissões, nome técnico dado aos popularmente conhecidos créditos de carbono. Desde aterros sanitários que fazem o aproveitamento do metano até indústrias sucroalcooleiras que queimam o bagaço da cana-de-açúcar para gerar energia, empresas nacionais de diversos setores estão conseguindo dinheiro para colocar em prática iniciativas que, em tese, ajudam a diminuir a concentração dos gases que têm feito a temperatura da Terra subir. Esse tipo de negociação, contudo, está longe de ser visto com simpatia por cientistas e grupos de ambientalistas.

O funcionamento do "mercado da poluição" é relativamente simples. Os países desenvolvidos que aderiram ao Protocolo de Kyoto comprometeram-se a reduzir suas emissões de poluentes, no período de 2008 a 2012, em no mínimo 5,2% em relação aos níveis detectados em 1990. A única maneira de essas nações atingirem essa meta é obrigar as empresas estabelecidas em suas fronteiras a desenvolver mecanismos de produção mais modernos para impedir os gases causadores do efeito estufa de chegar à atmosfera. Na maioria dos casos, não é possível cumprir esse objetivo isoladamente, tanto por falta de tecnologia disponível quanto por causa de custos muito elevados. Por isso, o próprio acordo feito no Japão previu a existência de um mercado no qual os poluidores podem comprar créditos certificados pela Organização das Nações Unidas (ONU) de instituições baseadas nos países em desenvolvimento, que não precisam cumprir metas de redução. O Brasil, embora seja o quarto maior emissor mundial de gases do efeito estufa, devido às queimadas na Amazônia, não tem a mesma obrigatoriedade que Alemanha, França, Japão e outros. Os Estados Unidos, maior poluidor mundial, não assinaram o Protocolo até hoje e, por ora, também não são obrigados a reduzir suas emissões. Uma das alegações dos norte-americanos para não aderir ao pacto é que nações como China, Índia e Brasil são extremamente poluentes e não podem ficar fora do plano de metas. É evidente, no entanto, que por trás dessa recusa existem interesses econômicos e pressões muito fortes sobre o governo.

Cada crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixou de ser lançada na atmosfera, determinada por meio de cálculos realizados através de uma metodologia específica. Além do dióxido de carbono, existem mais cinco gases que causam o efeito estufa, de acordo com o Protocolo de Kyoto – metano (CH4), óxido nitroso (N2O), hexafluoreto de enxofre (SF6), perfluorcarbono (PFC) e hidrofluorcarbono (HFC). Para efeito de negociação, há também uma fórmula que converte a emissão desses poluentes em toneladas equivalentes de CO2.

Assim como ocorre no mercado de commodities, a venda desses créditos é, na maioria das vezes, um negócio fechado com promessa de entrega futura – com todos os riscos inerentes a esse tipo de negociação. Da mesma forma que um produtor de soja toma dinheiro emprestado para fazer o plantio e a colheita, e depois quita o débito com a venda da produção se a chuva e a terra ajudarem, as empresas dependem de amplos financiamentos para implementar projetos de MDL. Existem diversas instituições nacionais e internacionais que disponibilizam recursos para empréstimos com essa finalidade, buscando assegurar a compra dos créditos por preços mais baixos depois que o programa tiver sido aprovado pela ONU. Ocorre que o projeto pode ser vetado se sua utilidade para o combate ao efeito estufa não for comprovada, e os créditos, nesse caso, não serão aceitos para efeito de contabilidade dos países ricos. Isso torna o setor um campo em que especialistas são muito valorizados. "Existe um risco enorme. Para ser aceito, o projeto precisa provar que, sem a venda dos créditos, ele não seria viável economicamente. Depois, tem de passar por aprovação em âmbito nacional e mais tarde pela ONU. É um processo que demora de 12 a 15 meses", afirma Bruno Maier, responsável pelo setor de Originação de Projetos da EcoSecurities, agência especializada na assessoria a companhias que pretendem entrar no mercado do carbono.

A empresa de Maier foi parceira na criação do primeiro projeto de MDL aprovado no mundo. Entregue à administração privada em 2001 por um período de 20 anos, o Lixão de Marambaia, em Nova Iguaçu (RJ), foi equipado com uma central de tratamento de resíduos capaz de gerar energia a partir do processamento do metano. O sistema foi montado com apoio do Banco Mundial, que adiantou uma parte do dinheiro necessário para a realização do empreendimento em troca de um contrato que prevê a entrega de créditos de carbono até 2012. Apenas em 2007, a Novagerar Ecoenergia, empresa que administra o aterro sanitário, recebeu aproximadamente R$ 1 milhão por ter impedido mais de 70 mil toneladas equivalentes de CO2 de chegar até a atmosfera. "Quando vencemos a licitação, o escopo do contrato era construir a central de tratamento. Começamos a cogitar a hipótese de trabalhar com os créditos de carbono, mas o Protocolo de Kyoto ainda não estava ratificado, porque faltava a Rússia assinar, o que só aconteceu em 2004. Mesmo assim, apresentamos o projeto para o Banco Mundial e eles adoraram", afirma Adriana Felipetto, diretora da companhia.

A energia gerada a partir do lixo tem um custo maior do que a criada por fontes mais impactantes, como a queima de carvão e usinas hidrelétricas, que alagam extensas áreas. Por isso, a ONU aprovou o projeto no Rio de Janeiro, já que sem a venda dos créditos seria muito difícil encontrar alguém disposto a financiar a montagem do biodigestor e demais equipamentos necessários. O sucesso da iniciativa acabou inspirando a prefeitura de São Paulo, que montou um mecanismo parecido nos aterros Bandeirantes e São João e já realizou dois leilões para a venda dos créditos. No mais recente, a empresa suíça Mercuria Energy Trading arrematou 713 mil toneladas de CO2 por R$ 37 milhões, que serão investidos na recuperação ambiental e melhoria de infraestrutura para os moradores do entorno dos lixões, segundo Stela Goldenstein, secretária adjunta de governo. "Fazer o leilão aumenta a transparência e também nos permite arrecadar mais dinheiro. São créditos gerados no ano passado e já aprovados pela ONU, e que portanto podem ser entregues agora. Não há risco para os países que compram e, por isso, eles pagam mais caro", afirma a secretária. Os leilões foram realizados na Bolsa de Valores, Mercadorias e Futuros (BM&FBovespa).

Em nível global, a venda dos créditos também gera valores astronômicos. Em 2007, a movimentação esteve perto de US$ 30 bilhões, e a expectativa dos analistas era que, até o final de 2008, o número dobrasse. Não é para menos que até bancos privados, avessos a qualquer tipo de risco, decidiram entrar no negócio. O Banco Real, por exemplo, criou uma linha de financiamento por meio da qual paga antecipadamente pelos créditos e ajuda indústrias a desenvolver tecnologias que depois buscarão a aprovação da ONU. "O pagamento é à vista, mas a entrega dos créditos ocorre em datas combinadas. Usinas de cana-de-açúcar que geram energia com a queima do bagaço têm um potencial grande", afirma Maurik Jehee, superintendente da área de créditos de carbono do banco. No primeiro negócio realizado com uma indústria canavieira, localizada na cidade de Catanduva (SP), o Real pagou quase € 2 milhões por 178 mil toneladas que serão negociadas depois em bolsas europeias, com ágio.

Indulgências ambientais

O mercado criado para negociar licenças que permitem às indústrias emitir carbono por suas chaminés pode até ter se tornado uma oportunidade valiosa para as empresas compradoras e vendedoras, mas está longe de ser bem aceito por ambientalistas e pesquisadores. O inglês Kevin Smith, ativista do Transnational Institute, organização criada em 1974 para desenvolver pesquisas e análises sobre temas de interesse mundial, publicou um relatório em 2007 no qual compara os créditos de carbono às indulgências que a Igreja Católica vendia aos pecadores na Idade Média. O trabalho, cujo título traduzido para o português é "O Mito do Carbono Neutro – Indulgências para Compensar seus Pecados Climáticos", critica profundamente a ideia de que é possível combater o aquecimento global apenas cobrando um preço sobre a poluição das empresas, sem promover mudanças significativas no modo de produção e no consumo das populações mundiais.

Outros especialistas acreditam que a melhor maneira de obrigar as companhias a diminuir emissões está na criação de novos impostos e taxas sobre o carbono emitido, um mecanismo mais transparente e com maior capacidade de resistir ao lobby dos grupos poluidores. "O MDL é interessante, mas, quando esses mercados de carbono vierem a funcionar muito bem, seu efeito corresponderá a apenas 1% das necessidades de redução das emissões. Então, não se deve dourar a pílula: a liberação de carbono na atmosfera tem de ficar cara, a fim de que haja estímulo para as pesquisas científicas e tecnológicas. Se isso não ocorrer, demorará muito mais para que se viabilize o uso do hidrogênio e da energia eólica", opina José Eli da Veiga, do Núcleo de Economia Socioambiental da Universidade de São Paulo (USP).

Apesar do discurso de Veiga, reina no Brasil, onde as empresas correm para entrar no mercado do carbono e fazem previsões otimistas de ganhos, um clima mais conciliador. A maior dúvida que paira aqui é o tamanho da contribuição que projetos de reflorestamento podem trazer para o combate ao efeito estufa, uma vez que as plantações podem demorar mais de 20 anos para atingir um nível de maturidade capaz de ter algum impacto relevante na absorção de gás carbônico. "Se quiséssemos neutralizar todas as emissões do planeta, não existiria espaço para tantas árvores. Além disso, essa iniciativa não promove a mudança de matriz energética. O raciocínio é: ‘Emito o gás e, no fim do dia, neutralizo’. É como se a gente estivesse tomando um remédio para dor de cabeça, mas não combatesse a causa. É preciso buscar alternativas energéticas, novos combustíveis e modos de transporte, de modo a não emitir gases de efeito estufa", avalia Mario Monzoni, coordenador do Centro de Estudos em Sustentabilidade da Fundação Getúlio Vargas.

Outra crítica pertinente diz respeito à questão das emissões promovidas em solo nacional. Embora seja o terceiro país com mais projetos de MDL em fase de aprovação na ONU, o Brasil é um dos maiores emissores mundiais de carbono. O Plano Nacional sobre Mudança do Clima, lançado recentemente, foi objeto de diversos comentários desfavoráveis por considerar dados defasados, de 1994, e não apresentar metas específicas para controle do desmatamento. "Na melhor das hipóteses, o projeto é uma decepção. Na pior, uma embromação. Os desafios das mudanças climáticas exigem urgência e maior comprometimento do governo", afirma Marcelo Furtado, diretor executivo do Greenpeace.

Mercado voluntário

Os créditos oriundos de projetos MDL não são a única opção para empresas que desejam lucrar no mercado do aquecimento global. Embora os Estados Unidos não tenham aderido ao Protocolo de Kyoto e às metas compulsórias de redução das emissões, diversas empresas norte-americanas já investem na compra de certificados que dão a elas o direito de poluir. Esses papéis são vendidos na Chicago Climate Exchange (CCX), uma espécie de bolsa de valores que negocia os papéis do carbono. Muitas empresas brasileiras não-certificadas pela ONU participam desse mercado voluntário, paralelo ao Protocolo de Kyoto, vendendo créditos originados principalmente de áreas de reflorestamento. "É mais uma ação de marketing, relacionada à ação social e ambiental. Créditos comprados na CCX não são contabilizados pelos países signatários de Kyoto", destaca Bruno Maier.

Criada pelo capitalista norte-americano Richard Sandor em 2003, a CCX adota critérios menos rígidos de aprovação de projetos que podem emitir os créditos. Por isso, as críticas a seu modelo de funcionamento e as dúvidas sobre sua eficiência para combater o efeito estufa são constantes. O "Wall Street Journal" publicou, em outubro de 2008, uma reportagem na qual dizia que os projetos geradores de créditos negociados na bolsa de Sandor não apresentam critério de adicionalidade, isto é, não representam efetivamente ganho ambiental na comparação com um cenário onde não existissem.

Apesar das críticas e de pagar um valor inferior ao do mercado de Kyoto pelos créditos de carbono, a CCX tem atraído muitas empresas nacionais. Indústrias produtoras de papel e celulose, por exemplo, já operam no mercado voluntário e têm conseguido resultados expressivos, graças às extensas florestas de eucalipto que plantam para garantir sua produção. A Suzano Papel e Celulose conseguiu, em 2007, cerca de US$ 80 mil na primeira negociação da qual participou. A Klabin, outra companhia do ramo, ganhou US$ 58 mil por uma venda realizada alguns meses antes.

Projetos florestais como os das duas empresas brasileiras, porém, encontram grande resistência à aprovação na ONU, principalmente por causa da complexidade do processo de auditoria da capacidade de sequestro de carbono dessas áreas cultivadas. Os créditos do Protocolo de Kyoto são originados de projetos que têm de passar, inicialmente, pela avaliação de uma agência acreditada pela própria ONU. Depois, ainda no Brasil, eles precisam ser aprovados pela Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima, órgão presidido pelo Ministério da Ciência e Tecnologia. Só então são liberados para uma última análise, em âmbito internacional, na câmara técnica da ONU, onde ainda existe o risco de que sejam vetados – o que ocorre com relativa frequência. Por fim, são auditados anualmente para que seja feita quantificação dos créditos disponíveis e análise do cumprimento das exigências. Essa burocracia é uma das bases em que se apoia o discurso dos favoráveis aos mercados voluntários.

Futuro incerto

Existem outras experiências de mercado voluntário de carbono em todo o mundo. Para alguns especialistas, sem elas o sistema de compra e venda previsto por Kyoto não teria tido o relativo sucesso apresentado até hoje. Em todos os casos, a expectativa é que os ganhos das empresas que oferecem créditos cresçam, acompanhando a elevação da demanda por parte das que poluem. Em contrapartida, esse cenário denota que a redução das emissões é um objetivo bem mais difícil de atingir, confirmando o discurso dos céticos. As reclamações não passaram despercebidas por quem opera na negociação do carbono. De acordo com Bruno Maier, a venda de papéis, isoladamente, está longe de ser a solução definitiva para o problema do aquecimento global. "Existem críticos muito severos, mas é preciso entender que o Protocolo de Kyoto é parte da solução do problema, apenas um começo."

Há, ainda, outras incertezas quanto a esse mercado. Em primeiro lugar, o acordo internacional tem validade apenas até 2012 e outro documento para substituí-lo mal começou a ser negociado. É praticamente um consenso que um novo pacto global pós-Kyoto, com regras mais rígidas para redução das emissões e a participação dos Estados Unidos, precisa começar a ser planejado agora, sob risco de que haja um retrocesso fatal daqui a quatro anos. Além disso, ao mesmo tempo em que pensam como reduzir suas emissões, as indústrias poluentes terão de se preocupar também em absorver a diminuição do consumo e a maior restrição a crédito que se configura após a crise financeira que explodiu nos últimos meses do ano passado, outro ingrediente que promete tornar ainda mais acalorado o debate acerca do aquecimento global. 

 

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