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Será o fim do sonho americano?

Crise reforça a ideia de que trabalhar nos Estados Unidos deixou de ser interessante

Pesquisa e produção: Eliza Capai


Jangadas no rio Suchiate: precariedade
Foto: Eliza Capai

A partir dos anos 1980, que no Brasil ficaram conhecidos como a década perdida devido ao fracasso de diversos planos de estabilização econômica, milhares de brasileiros deixaram o país para tentar ganhar a vida no exterior. Os Estados Unidos, com sua poderosa máquina de produzir riqueza, exerciam uma atração quase irresistível sobre aqueles que então tomavam a decisão de emigrar. Até por volta de 2000, não parou de crescer o número de pessoas que para lá seguiam com a intenção de permanecer tempo suficiente para fazer um pé-de-meia em dólares. Hoje, no entanto, diversos indicadores mostram que já há algum tempo vem ocorrendo uma inversão nesse fluxo, e a recente crise que abalou o mundo financeiro deve acentuar a tendência de retorno.

Se para os imigrantes em geral, e em especial para aqueles que entraram nos Estados Unidos sem a documentação em ordem, as condições de vida e de trabalho nunca foram muito boas, a situação ficou ainda pior após os atentados de 11 de setembro de 2001, quando a preocupação com a segurança fez endurecer a lei de imigração. Diante dessas circunstâncias e com a melhora da economia brasileira, a decisão de voltar para casa foi ganhando força.

Segundo um levantamento do professor Victor Klagsbrunn, da Universidade Federal Fluminense, de 2001 a 2006 foram registrados aproximadamente 78 mil retornos dos Estados Unidos a mais do que o número de embarques para aquele país. Em 2007, uma pesquisa feita entre as agências de viagens de Nova York e de Nova Jersey mostrou que a venda de passagens somente de ida para o Brasil mais que dobrou em relação ao ano anterior. Ao mesmo tempo, de acordo com o Consulado Geral do Brasil em Nova York, vem aumentando a emissão de atestado de residência, documento solicitado por brasileiros para fins de isenção fiscal da bagagem na volta definitiva para casa. Esse conjunto de informações parece não deixar dúvida de que o maior fluxo agora é mesmo de pessoas retornando à pátria.

É natural que isso aconteça, uma vez que o mercado de trabalho nos Estados Unidos mostra sinais de retração. Em 2007, 250 mil latinos operários da construção civil perderam o emprego, e no segundo semestre do ano passado a taxa de desocupação nesse setor entre a totalidade dos imigrantes chegou a 7,5%. E o cenário deve piorar para os estrangeiros se a atual turbulência na área econômica se prolongar. Há, porém, quem veja a situação de outra maneira: "Não acredito num retorno maciço de imigrantes em curto prazo. Como a crise tem dimensão global, nada garante que o emprego perdido aqui estará disponível no país de origem dessas pessoas", diz Mark Lopez, do instituto Pew Hispanic Center, referindo-se ao contingente latino-americano como um todo.

Novos tempos

Atualmente, o brasileiro que deseja viajar para o México precisa ter o passaporte carimbado. Essa exigência passou a vigorar em 2005, em consequência da pressão das autoridades norte-americanas sobre o governo mexicano para impedir que imigrantes clandestinos atravessem a fronteira com os Estados Unidos. Antes, quando o visto não era necessário, quem partia do Brasil com a intenção de ingressar ilegalmente nos EUA voava até o México e, de lá, tentava cruzar o rio Grande, que separa os dois países.

Como não há mais essa possibilidade, agora quem sai do Brasil com idêntico objetivo e nas mesmas condições tem de desembarcar na Guatemala e, então, adentrar clandestinamente o território mexicano. Alcançar esse intento, porém, envolve vencer outro rio, o Suchiate, numa travessia em que é comum o uso de embarcações precárias. E, como a rota seguida pelos imigrantes é bem conhecida de gangues e policiais corruptos, são constantes os assaltos e o pagamento forçado de propinas.

Depois de enfrentar todas essas dificuldades, mesmo que consigam entrar nos Estados Unidos, os imigrantes ilegais ainda não estarão a salvo de apuros. As ocupações a que têm acesso são normalmente as que os norte-americanos chamam de 3D: dangerous, difficult and dirty (perigosas, difíceis e sujas). Segundo um estudo recente publicado no "New York Times", os clandestinos concentram-se principalmente nos setores de agricultura, pesca, limpeza e construção civil.

Mão-de-obra barata, com remuneração sempre menor que a de um norte-americano no exercício da mesma função – uma vantagem para o patrão que os emprega –, eles estão sujeitos, ainda, a cair nas malhas da polícia, em operações que são verdadeiras invasões de fazendas, fábricas e construções para prender e posteriormente deportar os trabalhadores que não tenham a documentação em ordem. Ainda assim, muita gente acha que vale a pena correr o risco.

De acordo com dados do Banco Mundial, dos Estados Unidos saem 25% de todas as remessas internacionais de dinheiro de trabalhadores imigrantes. O México, que responde pelo maior contingente de estrangeiros em solo norte-americano, é o destino da parcela mais robusta: foram US$ 24 bilhões em 2007. Os cálculos para 2008 ainda não foram fechados, mas é certo que já mostrarão os efeitos da crise atual, pois pela primeira vez nesta década é esperado um encolhimento nas remessas para o conjunto de América Latina e Caribe, estimado em 1,7%. De acordo com dados do Fundo Multilateral de Investimentos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (Fumin/Bid), sem o envio do dinheiro dos imigrantes que trabalham nos Estados Unidos, a pobreza na região seria 9% maior.

Em Honduras, cerca de 25% do Produto Interno Bruto (PIB) é representado por dólares mandados pelos trabalhadores emigrados aos familiares que residem no país. Em El Salvador, a parcela correspondente do PIB é de 18% – e 30% dos que recebem esses recursos pertencem à classe mais pobre. Atualmente, as estimativas são de que um quarto da população da América Central depende desse tipo de ajuda econômica.

Calcula-se que nos Estados Unidos encontrem-se hoje cerca de 12 milhões de estrangeiros indocumentados, a grande maioria sem qualificação e por isso mesmo alvo de exploração mais acentuada. Como o imigrante em geral trabalha muito e ganha pouco, a economia norte-americana não seria exatamente a mesma sem sua participação. Isso, porém, não lhe dá nenhuma vantagem. Foi o que motivou a comunidade latina nos Estados Unidos – um contingente estimado em 46 milhões, aproximadamente 15% da população – a se organizar, mobilizando-se em diversas partes do país para protestar contra as crescentes dificuldades em sua condição de vida. Em Los Angeles, mais de meio milhão de pessoas cruzaram os braços no 1º de Maio de 2006, paralisando serviços e fábricas, não só para cobrar respeito e reconhecimento como para demonstrar a importância da mão-de-obra latina – legal ou clandestina – no mercado de trabalho.

O lado feminino

De acordo com Agueda Marín, especialista do escritório da Costa Rica da Organização Internacional para a Migração, não é raro que o homem que se desloca para outro país em busca de trabalho constitua nova família e, por essa razão, com o passar do tempo diminua ou mesmo cesse o envio de dinheiro para a esposa e os filhos que deixou para trás. "Se é a mulher que migra, ela normalmente não estabelece outros vínculos, e sua ajuda financeira continua chegando para os familiares", afirma Agueda. Estima-se que hoje, em âmbito mundial, as remessas femininas de recursos já sejam maiores que as masculinas.

Nos Estados Unidos, esse fato chega a surpreender, tendo em vista que a imigrante latina é mais mal remunerada que o seu correspondente masculino no desempenho da mesma função, mesmo se tiver melhor preparo que ele. Fato é que a mulher em geral tem mais anos de estudo e maior fluência na língua inglesa, o que não a livra, no entanto, da discriminação de gênero no mercado de trabalho.

Os problemas, porém, não se esgotam aí. "Podemos observar que mesmo nos países em desenvolvimento os padrões de exploração se repetem", afirma Gilma Pérez Valladares, do Instituto de Direitos Humanos da Universidad Centroamericana, de San Salvador. No interior de El Salvador, numa região em que aproximadamente 50% das famílias recebem ajuda financeira de parentes que trabalham nos Estados Unidos, dona Helena usa parte do dinheiro enviado pela filha para pagar Esmirna. Imigrante hondurenha sem documentação, a empregada aceita receber metade do salário que seria pago a uma salvadorenha: "Em meu país eu ganharia menos ainda", confessa Esmirna.

Para a mulher, na verdade, as desvantagens em relação ao homem começam bem antes de chegar aos Estados Unidos. Nos registros dos albergues existentes ao longo do trajeto da migração clandestina – locais que na América Central recebem pessoas sem documentação por até 72 horas, oferecendo cama, banho e comida –, menos de 10% dos acolhidos são do sexo feminino. As razões disso não são difíceis de entender: além dos perigos a que as pessoas em geral estão sujeitas, a mulher é, com frequência, vítima de abuso sexual. "Estimo que mais de 60% das migrantes que passam por aqui foram estupradas durante o percurso", afirma o padre Heyman Vásquez Medina, do albergue Hogar de la Misericordia, localizado no sul do México.

Enfrentar todas essas ameaças exige coragem e determinação, mesmo quando a necessidade é grande. Por isso, para boa parte das mulheres, a decisão de deixar seu país para ir trabalhar em outro depende de já haver pelo menos um amigo ou familiar instalado no ponto de destino, o que é uma forma de atenuar a insegurança que caracteriza esse tipo de deslocamento. Foi o que aconteceu com Valdirene, a Val, como é conhecida.

Hoje ela vive e trabalha em Nova York em situação legal, mas até alcançar esse objetivo foram muitos os percalços. Nascida no sertão de Pernambuco, a caçula da família era uma criança quando foi privada do convívio com a mãe, que, inconformada com o cenário de penúria que a rodeava, resolveu tentar a sorte no Rio de Janeiro. Alguns anos mais tarde, Val foi morar com ela e, ainda adolescente, abandonou os estudos para trabalhar. Juntou algum dinheiro e mudou-se para São Paulo – onde uma de suas irmãs já vivia –, e depois de arrumar emprego voltou a estudar.

"É preciso ter foco, senão a gente acaba se perdendo", diz Val, contando que seus ganhos aumentavam à medida que ela avançava no curso de secretariado e nas aulas de espanhol. Logo, porém, percebeu que para continuar progredindo seria fundamental dominar a língua inglesa. Foi quando seu primo Riva, que morava em Nova York, incentivou-a a ir estudar lá.

Val aceitou a sugestão, desde que não precisasse passar pelas mesmas dificuldades que o primo, imigrante clandestino que saíra de Rondônia com destino a Nova York numa jornada por terra que durara três meses. Ela, então, conseguiu a duras penas tirar o visto de estudante e deu início a uma aventura que iria mudar sua vida. Uma vez lá, ela se aplicou nas aulas de inglês até conseguir o certificado Toefl, o que lhe permitiu ingressar depois no Bernard Baruch College para cursar estudos internacionais e marketing. "Não era fácil, nem sei como aguentei aquele ritmo, pois estudava em período integral e ainda tinha de ganhar dinheiro para pagar as contas", diz ela hoje, mais tranquila, trabalhando como secretária numa emissora de televisão.

A trajetória de Val, no entanto, não é representativa da realidade da maioria dos imigrantes brasileiros nos Estados Unidos. Luciana Romanini, paulistana que trabalha com eventos em Nova York, conta que muitos de seus amigos já retornaram ao Brasil e acha esse fato compreensível: "Os negócios da empresa em que trabalho caíram 30%, e toda semana vejo alguém ser demitido. Fico pensando quando será a minha vez". Uma amiga sua, também chamada Luciana, que chegou lá em 2006 com curso superior e ampla experiência profissional, de início não teve problemas para conseguir trabalho como promoter em festas: "Antes era requisitada de quatro a cinco vezes por semana, agora consigo um, no máximo dois eventos", diz ela, desanimada.

De férias em dezembro, Val estava ansiosa ao embarcar para o Brasil a fim de rever a família, depois de sete anos distante. Ela acredita que, apesar da atual crise econômica, as coisas podem melhorar para os imigrantes com a vitória de Barack Obama nas urnas. "Confio nele! Afinal, ele sabe o que é fazer parte de uma minoria", diz, com esperança.

 

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