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O Brasil como uma terra de abrigo

Fugitivos de guerras e perseguição política encontram acolhida no país

HERBERT CARVALHO


Arte PB

Conflitos internos armados, agressão estrangeira, violência generalizada e violação maciça dos direitos humanos são fatores que, aliados à perseguição por razões de raça, religião, nacionalidade e militância social ou política levam centenas de milhares de pessoas, todos os anos, a fugir de seu país ou localidade de origem. Em barcos à deriva pelo mar, vagando por selvas ou atravessando desertos, elas buscam chegar a algum outro país que as acolha. Não são migrantes, já que sua partida nada tem de voluntário. Também não são asilados, pois sua chegada a um destino não passa por qualquer trâmite diplomático. São refugiados, quando conseguem escapar, ou deslocados internos, se permanecem dentro das fronteiras do próprio país, à espera de quem os queira acolher. Abandonam sua casa, sua aldeia. Fogem para salvar a própria vida e a de seus familiares. E não raro deixam para trás, ainda, um ente querido, perdido na maré humana ou arrancado pela morte que acompanha as longas caminhadas.

"São pessoas que perderam quase tudo, menos a esperança. Mostram incrível coragem e perseverança para superar inúmeras dificuldades e reconstruir a vida", diz Javier Lopez-Cifuentes, representante no Brasil do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur). Criado pela Assembleia Geral da ONU, o Acnur iniciou suas atividades em 1951. Com sede em Genebra, na Suíça, atua com mais de 6 mil funcionários em 120 países, buscando construir uma ponte entre as zonas de conflito – África, Ásia, Oriente Médio e América Latina, onde a Colômbia e mais recentemente a Bolívia têm sido palco de violência política – e as nações que se dispõem a receber refugiados, tradicionalmente as da Europa e da América do Norte. A elas agora se junta o Brasil, de maneira ainda incipiente, acolhendo 3,8 mil do total de mais de 30 milhões de pessoas que estão sob a proteção do Acnur, entre solicitantes de asilo, refugiados, apátridas, deslocados internos e repatriados. Para fazer cumprir as convenções, protocolos e declarações internacionais sobre direitos dos refugiados, o Acnur gasta anualmente cerca de US$ 1 bilhão, dos quais apenas 2% vêm do orçamento regular da ONU. O restante é resultado de doações de governos, ONGs, fundações, empresas e pessoas físicas.

Lei avançada

Duas vezes contemplado com o Prêmio Nobel da Paz (1954 e 1981), o Acnur atua no Brasil em parceria com o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) e instituições da sociedade civil, como a Cáritas Brasileira e a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), e do setor privado, como o Senai, o Sesi, o Sesc e o Senac.

O Conare é um órgão colegiado vinculado ao Ministério da Justiça – que o preside –, ao qual compete reconhecer ou não a condição de refugiado dos estrangeiros que a solicitem, além de orientar e coordenar as ações para lhes proporcionar proteção, assistência, integração local e apoio jurídico. Para cumprir essas funções, conta com representantes de cinco ministérios (Justiça, Relações Exteriores, Trabalho, Saúde e Educação), da Polícia Federal e da Cáritas. Participa das decisões ainda o próprio Acnur, com direito a voz, sem voto.

Uma vez reconhecido oficialmente, o refugiado tem direito a documentos como Carteira de Trabalho, Registro Nacional de Estrangeiros (RNE) e Passaporte Amarelo, que serve apenas para uma viagem específica. Passa a contar também com serviços públicos, como saúde e educação, além de moradia.

Os direitos dos refugiados são assegurados pela lei 9.474/97, que o Acnur considera uma das mais avançadas do mundo, capaz de garantir ao Brasil um papel ativo no desenvolvimento de um marco regional de proteção a refugiados.

Essa é uma questão importante porque, ao longo do século 20, o que se generalizou na América Latina foi o asilo político. A sucessão de insurreições na região levou, em inúmeras ocasiões, revolucionários fracassados ou governantes depostos a buscar asilo diplomático. O Brasil tanto recebeu asilados, a exemplo do ex-ditador paraguaio Alfredo Stroessner, que aqui terminou seus dias após ser deposto, como os produziu em seguida à Revolução Constitucionalista de 1932 e como consequência do golpe militar em 1964.

Do ponto de vista jurídico, os institutos do asilo e do refúgio diferem, porque o primeiro constitui um ato soberano do Estado que acolhe o asilado, uma decisão política unilateral não sujeita a qualquer organismo multilateral. Já o refúgio obedece a uma convenção internacional e deve ser aplicado de maneira apolítica, visando à proteção de pessoas que não querem retornar ao país de origem em razão de fundamentado temor de perseguição.

Numa perspectiva histórica, o asilo é um instituto milenar, com origem na Grécia e Roma antigas, aplicado em caráter individual a quem, perseguido no interior de um país, busca abrigo em um templo religioso ou embaixada estrangeira. O refúgio, diferentemente, surge após a ascensão do nazismo, que deslocou mais de 40 milhões de pessoas na Europa e provocou, pelos crimes praticados, como o Holocausto, uma maior preocupação internacional com a dignidade humana.

A necessidade de repatriar, integrar no país em que estavam ou ainda reassentar em um terceiro país as massas humanas deslocadas pela 2ª Guerra Mundial levou a Assembleia Geral da ONU a criar o Acnur.

A partir dos anos 1950, as guerras de libertação anticolonialistas na África e na Ásia deslocaram o eixo de atuação do Acnur, que passou a priorizar também a América Latina no final do século passado, quando os colombianos se constituíram no terceiro maior grupo de refugiados do mundo, atrás apenas dos afegãos e dos iraquianos, cujos países foram invadidos e ocupados por forças dos Estados Unidos e de seus aliados.

São Paulo lidera

O Brasil, que na Constituição de 1988 declarava, no artigo 4º, reger-se em suas relações internacionais pelos princípios da "prevalência dos direitos humanos e da concessão do asilo político", começa a receber a partir da década de 1970, além de africanos – quase 80% do total dos refugiados no Brasil –, fugitivos do conflito político armado na Colômbia (ver PB 385, janeiro-fevereiro de 2008), que chegam ao país pelos municípios amazonenses de São Gabriel da Cachoeira e Tabatinga.

Com o choque na Bolívia entre apoiadores e opositores do presidente Evo Morales e a chegada ao Brasil, pelo município acriano de Brasiléia, dos fugitivos de Pando – uma das províncias rebeldes ao comando de La Paz –, a questão do refúgio passou a ocupar, na América do Sul, o espaço anteriormente reservado ao asilo diplomático.

Embora existam entre os quase 4 mil refugiados no país pessoas vindas de mais de 70 países diferentes, os grupos maiores de fora do continente são provenientes do outro lado do Atlântico, principalmente de Angola, em razão de sua longa guerra civil, e do Congo, convulsionado também por conflitos internos.

São Paulo é o estado que mais tem acolhido refugiados (44% do total, com o Rio de Janeiro em segundo lugar, com 28%) e foi o pioneiro na criação de um comitê governamental para atendê-los. "Trata-se de uma atuação integrada com o fim de assegurar aos refugiados condições dignas de vida, de modo que possam contribuir para o progresso e a paz da sociedade paulista, marcadamente cosmopolita e construída a partir da participação de milhões de estrangeiros que ajudaram a formar a identidade deste estado e do país", diz Luiz Antônio Marrey, secretário da Justiça e Defesa da Cidadania, que coordena o comitê composto por representantes de dez secretarias estaduais, inaugurado no ano passado pelo governador José Serra, ele próprio um exilado brasileiro no exterior nos anos de chumbo.

Na capital paulista, uma autêntica rede opera com eixo no Centro de Acolhida para Refugiados, dirigido pela regional de São Paulo da Cáritas Brasileira, organização da sociedade civil que faz parte da Caritas Internationalis, braço de atuação social da Igreja Católica presente em mais de 200 países, com sede em Roma.

Fundada por dom Helder Câmara no âmbito da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), a Cáritas Brasileira surgiu em 1956 com o objetivo de articular nacionalmente as obras sociais católicas e distribuir alimentos então doados pelo governo norte-americano. Em 1989, a Cáritas Arquidiocesana de São Paulo assumiu o atendimento aos refugiados, que desde 1977 já era feito pela Comissão de Justiça e Paz, liderada pelo cardeal dom Paulo Evaristo Arns.

Após firmar, na Polícia Federal, o Termo de Declarações sobre as razões que o levaram a deixar o país de origem, o candidato a refúgio comparece ao Centro para Refugiados da Rua Venceslau Brás, nas proximidades da Praça da Sé. Ali preenche um questionário que pede sua identificação completa, qualificação profissional, grau de escolaridade e o relato das circunstâncias e fatos que fundamentam seu pedido, indicando, na medida do possível, elementos de prova do que afirma.

No início, tanto as pessoas com a condição de refugiado já oficializada como aquelas que a solicitam podem receber, durante alguns meses, assistência financeira para subsistência. Além disso, passam a contar com programas de integração social, cultural, legal e econômica. Elas recebem informações sobre o Brasil e são encaminhadas ao mercado de trabalho, ganham acesso aos serviços públicos de saúde e, quando necessário, o Acnur cobre seus gastos com medicamentos, exames médicos e tratamentos específicos.

Para tornar possível esse atendimento multidisciplinar, a Cáritas conta com parceiros. O Sesc São Paulo, além de ter elaborado dois manuais, um com orientações para solicitantes de refúgio e outro destinado aos refugiados reconhecidos pelo governo brasileiro, oferece cursos de português, tratamento odontológico e atividades esportivas. Os departamentos regionais do Sesi, do Senai e do Senac proporcionam capacitação profissional para adultos e ensino fundamental para as crianças. A OAB-SP colabora com atendimento jurídico e divulgação do direito internacional do refugiado.

A par disso, o Instituto Paulista de Psiquiatria do Hospital das Clínicas desenvolveu para eles um programa de arte-terapia e outro de investigação do perfil psicológico, para que possam libertar-se dos pesadelos deixados para trás e transformá-los em força para viver.

Música e esporte

Uma iniciativa que marcou a comemoração no Brasil, em 2008, do Dia Mundial do Refugiado (20 de junho) foi o lançamento do CD Livre Cantar, uma coletânea de 12 canções compostas e executadas por refugiados angolanos, colombianos, congoleses, cubanos e palestinos. Participaram a cantora angolana Lysoka Ngury, os colombianos Antara e Trio Luseda, o grupo BrasCuba, os corais africanos Nkanda, Wanbote Wa Npa e Amor do Senhor e o compositor palestino Ghazi Shahin.

Algumas canções são temas populares dos países de origem, enquanto outras refletem a experiência do refúgio. "Foi uma forma original de exprimir a ideia de proteção que está na essência de nosso trabalho no Brasil e no mundo", diz Lopez-Cifuentes. "Num país conhecido por sua musicalidade e diversidade cultural, o constante respeito aos direitos dos refugiados permite que a música funcione como instrumento de integração social", completa.

Além da música, também o esporte pode representar uma ponte para superar os traumas do passado, como no caso do refugiado palestino Ali Khaled Abu Taha, de 19 anos. O futebol sempre foi uma das brincadeiras prediletas desse jovem, que nasceu no Iraque e passou quatro anos em um campo de refugiados no deserto da Jordânia, onde jogava com os amigos e sonhava em se tornar profissional. "Era mais uma diversão. Não tínhamos chuteiras nem uniformes. Apenas uma bola", recorda Ali.

Com pouco mais de um ano no Brasil, seu sonho começou a tornar-se realidade: desde o ano passado esse "Ronaldinho das Arábias", como é chamado por seus colegas e pela torcida, veste a camisa 9 do Brazsat Futebol Clube, time profissional que disputa a segunda divisão do Distrito Federal. "É um exemplo de perseverança para toda a equipe", afirma o técnico Alexsander Gomes. "Para nós, ele é motivo de carinho e respeito", acrescenta o diretor de futebol, José Benedito Bonetti. "Estamos orgulhosos por ser o primeiro time de futebol do Brasil a ter na equipe um refugiado", completa o presidente do clube, João Gilberto Vaz.

Após passar no teste que o garantiu no time com um salário mensal de R$ 1 mil, livre de despesas, Ali já pensa em trocar uma possível faculdade de direito pelos gramados. "Vou continuar lutando para chegar a um grande time", diz, esperançoso, mas ao mesmo tempo realista: "Será difícil. Acompanhei as Copas de 1998 e 2002 e sei que os brasileiros são os melhores do mundo". Um desses craques – Carlos Alberto Torres, capitão do time na conquista do tri na Copa de 1970, acha que o sonho de Ali é possível. "Ele tem uma marca brasileira, que é a vivacidade dentro do campo", diz o veterano, atual consultor do time brasiliense.

Reassentamento

Ali Taha e sua família desembarcaram no Brasil como parte de uma leva de 108 refugiados de origem palestina acolhidos pelo Programa de Reassentamento Solidário, implementado pelo governo federal em parceria com o Acnur e organizações da sociedade civil. O reassentamento é considerado uma solução duradoura para aqueles refugiados que, por questões de segurança ou dificuldade de integração, não podem permanecer no primeiro país de acolhida nem retornar ao de origem.

O caso mais frequente é o dos palestinos, que, embora não constituam o maior são o mais antigo grupo de refugiados e vivem em diversos países árabes desde 1948, quando foram expulsos de suas casas pela guerra árabe-israelense.

No Iraque, após a queda do regime de Saddam Hussein, os palestinos tiveram de deixar o país por ter se tornado alvo de milícias sectárias. Em 2003, as famílias que conseguiram escapar – algumas simplesmente "desapareceram" – chegaram à fronteira jordaniana e foram alojadas no deserto. No campo de Ruweished, a 70 quilômetros da fronteira com o Iraque, 15 mil pessoas conviviam com escorpiões, cobras, tempestades de areia e clima que ia de um verão escaldante a inverno com temperaturas abaixo de zero.

Depois de quatro anos vivendo em tendas a família Taha hoje mora numa casa de dois quartos no centro de Mogi das Cruzes, cidade da região metropolitana de São Paulo que recebeu cerca de metade dos palestinos provenientes da Jordânia em 2007. Os demais foram para cidades do interior gaúcho que já abrigavam comunidades árabes.

Durante dois anos, os refugiados palestinos beneficiados pelo Programa de Reassentamento Solidário contam com auxílio-subsistência, casa mobiliada alugada, orientação psicossocial, assistência médica e odontológica, tradutores, aulas de português e cursos profissionalizantes.

"O programa brasileiro de reassentamento é o mais avançado da América Latina. Ao receber os refugiados palestinos vítimas do conflito iraquiano, que estão entre as populações mais vulneráveis do ponto de vista humanitário, o Brasil reafirma seu comprometimento com os direitos humanos", avalia Lopez-Cifuentes. Diferentemente de países como Estados Unidos e Canadá, o Brasil aceitou acolher os refugiados palestinos em grupo, sem processo de seleção.

"Os brasileiros são solidários e receptivos. Mesmo com problemas de comunicação, as dificuldades de integração são quase nulas", diz o pintor Iossef Al Manasir, instalado no Rio Grande do Sul, onde já trabalha como marceneiro. "Quero agradecer ao Brasil por ter aberto suas portas para nós", ele acrescenta, enquanto pinta quadros de sua terra natal, para minimizar as saudades.

"Aqui não existem diferenças entre religiões e há mais humanidade. Tenho parentes em outros países onde não há esse respeito, pois muitas pessoas puxam o véu das mulheres muçulmanas na rua", conta a iraquiana Huda Altami, que vive com o marido e dois filhos palestinos em Mogi das Cruzes.

Para Antenor Rovida, secretário regional da Cáritas Brasileira em São Paulo, a acolhida dispensada aos refugiados palestinos é um dos pontos mais positivos do processo de integração. "Eles não querem sair daqui porque vêem o Brasil como o país que lhes deu esperanças e oportunidades para recomeçar a vida."

Apesar do amor pelo Brasil, porém, os palestinos ainda não se sentem cidadãos. "Não queremos continuar refugiados para sempre. Queremos nos tornar brasileiros", garante Huda. 

 

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