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Concerto para cordas

I

Através de Judas chega-se a Jesus, tanto quanto através de Jesus chega-se a Judas. Eis a equação sagrada; o Drama da Paixão; a tensão necessária que deve haver entre o arco e as cordas da lira. Como obra de arte, a história de Jesus ali contada só se resolve quando este ordena a Judas que o traia. O Mestre havia dito, pouco antes, que um dos que comiam à mesa com ele o denunciaria.

Quando lhe perguntam quem se atreveria a tanto, ele diz: É aquele a quem eu der o pão que colocarei no molho. Tendo umedecido o pão, ele o dá a Judas. João, em seu evangelho, diz que com o bocado de pão entrou nele Satanás; e Jesus lhe disse (a Satanás, então) que fizesse depressa o que ele tinha a fazer. Como era Judas o encarregado da bolsa comum, alguns pensaram que Jesus lhe dissera que comprasse o necessário para a festa da Páscoa, no dia seguinte. Tendo tomado o pedaço de pão, Judas saiu imediatamente. Eis a comunhão que só é encontrada no Quarto Evangelho.

Tudo teria acontecido para que se cumprissem as profecias. Tratava-se de uma história que já se anunciara mais de 30 anos antes, nos dias em que nasceram os seus personagens fundamentais: Jesus, João Batista e Judas, filho de Simão Iscariotes. João Batista batizaria Jesus; o entregaria, assim, à vida plena de seu ministério. Judas o conduziria ao seu destino final. É intrigante imaginar que os três tenham compartilhado a infância numa mesma aldeia.

II

Marcos e João não mencionam em suas narrativas o nascimento de Jesus. Em compensação, Mateus e Lucas nos revelam fatos estupendos acerca do acontecimento. Mateus havia sido cobrador de impostos, e fora conclamado por Jesus a participar do grupo dos doze que o seguiriam mais de perto. Lucas, que era médico, não chegou a conhecer Jesus, tendo começado a fazer suas anotações quando se tornou uma espécie de secretário do apóstolo Paulo.

A informação que nos vem de ambos os evangelistas é a de que Jesus foi um judeu muito pobre que teria nascido incidentalmente em Belém e vivido, desde a infância, em Nazaré, no norte da Palestina. Ele pertencia a uma família profundamente religiosa. Ambas as narrativas coincidem em muitos pontos fundamentais, mas cada uma apresenta suas particularidades.

É da soma de ambas que o comum das pessoas costuma lembrar-se quando se pensa no Natal. A origem de tudo foi assim: nos tempos de Herodes, rei da Judeia, houve um sacerdote de nome Zacarias, cuja mulher chamava-se Isabel. Estavam já em idade avançada e não tinham filhos porque Isabel era estéril. O “Anjo do Senhor” apareceu a Zacarias e lhe disse que Isabel iria ter uma criança, a quem deveria ser dado o nome de João. Pouco tempo depois Isabel concebeu. 

Perto dali, em Nazaré, vivia Maria, uma prima de Isabel. Maria estava comprometida em casamento com um carpinteiro muito mais velho que ela, chamado José, mas, antes que coabitassem, ela percebeu que estava grávida. José, não querendo denunciá-la publicamente, resolveu repudiá-la em segredo, mas, em sonho, um anjo apareceu-lhe para esclarecer que a gravidez de Maria havia sido obra do Espírito Santo.

Tratava-se do anjo que aparecera a Zacarias seis meses antes. Foi ainda através desse mesmo anjo que Maria teve notícias de Isabel: Também tua parenta concebeu um filho na sua velhice. Para Deus nada é impossível. Dias depois, Maria foi visitar sua prima. Ora, quando Isabel ouviu a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre. “Donde vem que a mãe de meu Senhor me visite”, disse Isabel à prima, afiançando que seu embrião estremecera de alegria dentro dela. 

III

Judas Iscariotes foi concebido naquele mesmo perío-do. Porém, nada foi anunciado prematuramente à sua mãe, mas o seu papel no ministério e na morte de Jesus já estava predestinado, de acordo com as Escrituras. Judas nasceu em Nazaré mesmo ou nas proximidades. O “Anjo do Senhor” devia estar atento também à sua concepção, uma vez que ele haveria de constituir-se numa espécie de contraponto de João Batista.

Numa região como a Galileia, escassamente povoada e constituída apenas de pequenas aldeias, é de supor-se que a mãe de Judas tivesse tido notícia dos prodígios relativos a Maria e Isabel. O fato é que quando soubera que Isabel ficaria grávida, Zacarias, o marido, estava em serviço como sacerdote de turno na sinagoga. Ele não acreditou na notícia trazida pelo anjo, e este o condenou a ficar mudo até o dia em que a profecia se consumasse.

O fato deve ter repercutido intensamente na comunidade local. É natural imaginar-se que também a mãe de Judas deva ter sentido alguma coisa ao saber das notícias que corriam. Um estremecimento também? Com relação aos anos seguintes, o pouco que se sabe, evidentemente, é sobre a vida de Jesus. Quanto a Judas ou João nada foi registrado, a não ser que João sentia uma forte atração pelo deserto.

Como imaginar naqueles tempos aquilo que o destino reservava aos três pequenos personagens que corriam soltos pelas ruas, misturados às outras crianças? Jesus ia a Jerusalém todos os anos com seus pais, para a festa da Páscoa. Numa dessas vezes, quando já voltavam para casa, ele escapuliu, perdeu-se na multidão, e José e Maria só o encontraram três dias depois, no Templo de Jerusalém, sentado em meio aos doutores da Lei, ouvindo-os e interrogando-os. Os presentes estavam extasiados com ele. Era extraordinário que um menino de doze anos tivesse tal conhecimento acerca das Escrituras.

IV

A Igreja consagrou em seu cânone apenas quatro evangelhos, mas sabe-se que muitos outros foram escritos. Até mesmo Lucas atesta isso logo no início de seu texto, referindo-se aos muitos que já tentaram recompor os fatos que se cumpriram entre nós.

Os estudos canônicos fazem referências a centenas de textos escritos com a finalidade de registrar a vida e os feitos de Jesus, entre eles até mesmo um “Evangelho de Judas Iscariotes”, usado pelos gnósticos chamados caimitas, nome tomado de Caim, a quem veneravam por sua suposta força espiritual. A propósito desse texto, Santo Ireneu de Lyon (130-201 d.C.) comenta em sua obra “Contra as Heresias”: E dizem que Judas conheceu essas coisas e que somente por conhecê-las é que consumou o mistério da traição.

V

Quantas coisas mais Judas devia saber. É natural que tanto ele quanto João tenham feito muitas perguntas a Jesus sobre a longa conversa que ele tivera, dias antes, com os sacerdotes do templo. João era, logicamente, mais interessado no que se havia conversado a respeito dos meandros da Lei judaica, cujo rigor Jesus ousaria contrariar muitos anos depois em benefício da autoconsciência e da liberdade de escolha.

Era isso o que mais interessava a Judas segundo o seu evangelho pessoal, o que o levaria certamente a fazer indagações de um gênero mais particular, para que se soubesse, no futuro, entre tantas outras coisas, o quanto o sumiço do menino Jesus desagradara a seus pais. Maria queixara-se: Veja como estávamos aflitos te procurando. Mas Jesus não se retratou; antes, justificou-se: Por que me procuravam? Não sabiam que eu tenho que me ocupar das coisas de meu Pai? Lucas deixou o testemunho de que nem José nem Maria conseguiram entender a estranha argumentação do menino.

VI

Conhecedor precoce das velhas Escrituras, Jesus desde cedo aprendeu, decerto, a temê-las. Ainda que pudesse ser o Messias, ele havia nascido para viver a plenitude da condição humana. Seria natural que, como criança, pudesse ter pesadelos ao inteirar-se das punições que lhe poderiam advir em casos de condutas indesejáveis. O Deuteronômio prescrevia a pena de morte para os filhos desobedientes que persistissem no erro.

E Jesus era obstinado quanto às suas ideias, como se sabe; sempre seria. A família chegaria, mais tarde, a chamá-lo de louco quando operou as primeiras curas. Judas, como tensor das cordas da lira, tinha como seu papel provocá-lo, indagá-lo à exaustão. Sabia o quanto José era rigoroso com relação à observância da Lei e cumpridor das vontades de Deus. Por isso, era natural que Judas tivesse tido também curiosidade quanto aos pesadelos do menino Jesus. Muito particularmente, acerca de um deles, o mais terrível de todos, no qual, do alto dos céus, Javé clamava, como fizera antes com Abraão: José, José; se me temes, sobe ao monte Moriá e me oferece como dádiva o teu filho.

Sílvio Fiorani é autor, entre outros, Investigação sobre Ariel (Girafa, 2005), pelo qual recebeu o prêmio Machado de Assis, da Biblioteca Nacional, de melhor romance de 2005