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Liberdade cinematográfica

Com a chegada constante ao Brasil de imigrantes japoneses, desde o início do século 20, o país passou a abrigar, já na década de 1930, o maior contingente de nikkeis do mundo. Foi no bairro da Liberdade, durante os anos de 1950 e 1960, que a metrópole paulista contou com uma das mais intensas manifestações culturais oriundas do Oriente.

Quatro salas de cinema – Cine Niterói, Cine Joia, Cine Nikkatsu e Cine Nippon – exibiram filmes dos principais estúdios nipônicos, trazendo uma diversificada programação. A colônia japonesa passou a frequentar essas salas, que representavam espaços mágicos de contato com o idioma e com as paisagens de um país fascinante, enraizado na memória de imigrantes e descendentes.

Porém, a descoberta dessa cinematografia passou também a ser uma preocupação – para não dizer obsessão – de jovens artistas brasileiros que buscavam novas referências. Cineastas, críticos, escritores e outros artífices, entre eles Antunes Filho, Cláudio Willer, Carlos Reichenbach, Walter Hugo Khouri, Jairo Ferreira, Juan Bajon, Orlando Parolini e Rubem Biáfora, tornaram-se habituais espectadores e fãs do cinema nipônico. “Foi uma época de muita vivência dos costumes japoneses e era um interesse quase doentio por esses filmes”, recorda o cineasta Carlos Reichenbach.

Recentemente, a mostra O Japão em Imagens e Sons, que ficou em cartaz até o dia 31 de julho, no Sesc Pinheiros, trouxe uma exposição com cartazes de filmes que foram exibidos no bairro. O responsável pelo resgate desse material foi o cineasta Juan Bajon, que assina a curadoria e possui uma considerável coleção de cartazes. “O Brasil não tem memória e muita coisa se perde.

Os japoneses têm um lado sentimental muito intenso com essas lembranças”, explica o diretor, que conta também que o primeiro desses filmes que chamou sua atenção foi Quando a Mulher Sobe a Escada, de Mikio Naruse.

Cada sala tinha uma identidade. O Cine Niterói (1953-?-1975) exibia dramas de época, musicais e filmes de samurais, atraindo jovens e apreciadores desses gêneros. O Cine Nikkatsu (1954-1957) privilegiava a Nouvelle Vague japonesa, os policiais e eróticos, seduzindo também a juventude.

Já o Cine Nippon (1959-1980) atraía principalmente o público feminino e idosos, com os seus melodramas e comédias românticas. Por fim, o Cine Joia (1952-1987) era o mais eclético, apresentando ficções científicas, suspenses e comédias. “A estética diferente dos filmes e o mundo que mostravam me fascinaram. Interpreto esse momento como expressão da diversidade e do pluralismo da cidade”, conta o poeta Cláudio Willer. Ele lembra também que, ao entrar no Cine Niterói pela primeira vez, ficou espantado com A Espada Diabólica, de Tomu Uchida.

Alguns diretores japoneses foram conhecidos aqui, antes mesmo de fazerem sucesso na Europa, como Akira Kurosawa e Yasujiro Ozu. Além disso, muitos espectadores admitem ter bebido nessa fonte para suas experiências com a sétima arte. “Sem dúvida, essa experiência me estimulou a seguir a carreira, inclusive tendo me influenciado esteticamente.

O Yasuzo Masumura, que abordava muito o universo feminino, foi uma influência considerável”, afirma Reichenbach. Em um artigo publicado no Guia da Cultura Japonesa (JBC, 2005), o cineasta Walter Hugo Khouri (1929-?-2003) admite ter assimilado elementos dessas obras: “Eu realmente ‘absorvera’ muito do que o cinema japonês e o intimismo de seus mestres me transmitiram através dos anos”.

Hana to ryu (A Flor e o Dragão, 1965) foi dirigido por Kosaku Yamashita, que trabalhou durante anos para a Toei, um dos mais atuantes estúdios japoneses. O cineasta foi o primeiro a demonstrar que os filmes sobre a Yakuza poderiam ir além da mera exploração da violência, construindo um retrato profundo da condição humana.

Considerada a mais longa série de filmes, com 48 episódios distribuídos em 26 anos, Otoko wa tsurai yo (É triste ser homem) foi dirigida pelo cineasta Yoji Yamada, o entrevistado da edição de outubro de 2000 da Revista E. O personagem do caixeiro viajante Tora-san, interpretado por Kiyoshi Atsumi,tornou-se ícone popular no Japão.

Ore wa Matteru ze (I am waiting, 1957) é um filme do estúdio Nikkatsu, dirigido por Koreyoshi Kurahara, cineasta responsável por recordes de bilheteria no país. O longa é considerado um exemplar do cinema noir japonês e traz no elenco o astro Yujiro Ishihara, apelidado de Elvis Presley japonês e irmão do governador de Tóquio, Shintaro Ishihara.

Gion no shimai (Irmãs de Gion, 1936) foi dirigido por Kenji Mizoguchi. O cineasta é considerado  um dos primeiros a fazer filmes de cunho feminista, revelando a depreciação da mulher em uma  sociedade machista. Uma das protagonistas do filme é a atriz Isuzu Yamada, conhecida por seu  trabalho ao lado de Akira Kurosawa.


Sensações do Japão
por Antunes Filho


Desde criança, sou viciado em cinema. Ia às salas duas ou três vezes por semana – contando com as sessões infantis no D. Pedro II, aos domingos de manhã: Irmãos Marx, o Gordo e o Magro, Buster Keaton, Chaplin etc., etc. – além de todos os faroestes e dos seriados do Flash Gordon, O Sombra, Fu Manchu.

E frequentava, no Centro-Liberdade, as matinês com os filmes de longa-metragem no Recreio e no Santa Helena, próximos à Catedral da Sé: Mickey Rooney, Jackie Cooper, Wallace Beery, Shirley Temple, Errol Flynn, Harry Carey e aí afora. Aconteceu, para minha felicidade, que, ao voltar diariamente da escola (primário), às 13 horas, quando almoçava, ouvia na Rádio Record críticas diárias dos filmes em cartaz, feitas pelo radialista inovador Otávio Gabus Mendes (ainda me recordo dos seus elogios a William Wellman, John Ford, Orson Welles...).

Anos e anos depois, já grandinho, no tempo em que comecei a frequentar o Centro de Estudos Cinematográficos, dirigido por Alberto Cavalcanti (onde tive a revelação de Joana D’Arc do Dreyer), por influência do crítico de cinema Rubem Biáfora e, mais tarde, de Walter Hugo Khouri, que se tornou meu amigo, admiradores do cinema japonês, comecei a frequentar o Cine Joia, o Cine Niterói e um outro, que não me lembro mais o nome – todos na Liberdade, obviamente. Fiquei tão apaixonado como quando descobri, sozinho, os filmes do Bergman, que ninguém sabia do que se tratava. Foi, para mim, uma revelação de um outro mundo.

Assistia maravilhado, como se o próprio Japão fosse um cenário, onde aquelas histórias e aquelas pessoas fossem paralelas às aventuras das Mil e Uma Noites. Sabor trágico, dramático, os rostos e posturas imóveis, de sentido enigmático, fatal. E os filmes de samurais, então?...

Terríveis, cruéis, profundos nas suas dobraduras. A expressão artística asiática, principalmente a japonesa, sempre me envolveu numa aura mágica, de aventuras quase transcendentais. Cheguei ao topo, como se sabe, com Kazuo Ohno. Esses impactos de emoção e sensações sempre procuro imprimir nos meus espetáculos – a arte tem que transportar, fazer perder o chão!

Claro que, na época, pouco poderia saber dos diretores dos filmes a que assistia – com os nomes japoneses, então! Com o tempo, deduzi que seriam: Uchida, Mizoguchi, Inagaki, talvez Ozu e o melancólico Naruse. É difícil identificar os filmes e diretores depois de tantos e tantos anos. Mas as sensações ficaram e estão, até hoje, gravadas no meu espírito. Devo muito a eles, claro! ::