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Profissão Silêncio

Falar é prata, calar é ouro (provérbio do mundo)

Ele era magro, tal um alfinete de cabeça; e silencioso, qual uma noite em Alcobaça. Quase nem fazia barulho para andar, como um gato. Sabia que, a todo barulho, corresponde o silêncio. Ficava com este lado da moeda. Quando nasceu, pouco chorou, e sorveu discretamente, sem gula, o leite materno. Foi crescendo junto com o próprio cabelo, já ralo, deixando ver o contorno craniano, ausência de recheio.

Ele era assim. Espelho liso, escorregadio, semente, planta, chuva e mar. Um produto da terra que a ela voltaria naturalmente, sem ruído. Desfilava sem preconceitos sua postura econômica de gestos e sentimentos. Sabia que, quando se fecha a janela num dia de sol, a escuridão fica apenas aqui dentro, pois, para todo breu, há o equivalente em luz. Tinha essa mania de buscar o outro lado das coisas.

Lembrava, aos cinco anos, quando era convocado a cantar para a avó enferma, o quarto com um cheiro antigo de remédios, a ausência de oxigênio, “canta filho, aquelas em italiano”. Lembrava também que o velocípede encalhava na areia fofa toda vez que queria correr. A vida nunca foi um deslizar fluido, e sim uma pesada sucessão de fatos bruscos, pulos, sustos brunos. Quase chegara aos vinte anos sem beijar uma mulher e, quando beijou, ela lhe mordeu a língua, não aceitou o agrado. Mesmo assim, o gosto de sangue sempre lhe trouxe alegria e felicidade, até que se tornou matador profissional, aos 26 anos. Já que não fazia barulho nem sequer para respirar, poderia cumprir bem essa tarefa.

Não se importava com o quê. Ele passava pela vida como um trem pela estação. Ida e volta, ida e volta, passageiros em frevo, em aflição, violões e marchas fúnebres, pandeiros e carnavais, neve, sol, areia, tormenta e desassossego. Ele apenas passava, desejando, ainda uma vez, a polenta amarela da mãe, perfeitamente regada com o molho de tomate quase alucinógeno. A única coisa que lhe causara prazer na vida e não se repetiria, pois a mãe estava morta. Estavam todos mortos.

A cada despedida, maior se tornava o vácuo, aquele que, verdadeiramente, não transmite sons. Nem uma palavra de revolta, nem uma palavra de consolo. Calma. Equilíbrio. Ele jamais seria tempestade; era garoa fina caindo na montanha sem árvores. O observar, sempre. Nunca participar das cenas principais do drama — ou da comédia — da vida. Coadjuvante.

Nunca seria o começo, apenas o fim. Ele sabia que todo nascimento carrega, em si, a morte. E não hesitou em se dedicar aos meios que apenas abreviavam a espera. O primeiro trabalho foi realizado com tal precisão que o chefe se impressionou. Um tiro certeiro na nuca e pouco sangue. Pegou o pagamento e saiu sem ouvir os elogios até o fim. Não tinha ideia do que fazer com tanto dinheiro. A vida vale assim tanto dinheiro? A vida vale?

Pela primeira vez, respirou fundo e ouviu o próprio respirar. O sofá era de um tecido escocês vermelho, amarelo e branco, os braços de madeira castanha, a cama viera da mãe, assim como as panelas e o fogão. Deitou ali e decorou 128 filmes de criminosos. Quase sem som. Quieto, durante dois meses aguardou o nome do segundo condenado. O dono de um banco que andava crescendo muito. Para todo banco que cresce há pequenos bancos que desaparecem, pensou. E foi em frente. Circulou feito um pião em torno da vida do ser humano e, finalmente, encontrou o ângulo perfeito. Havia uma possibilidade mínima daquela bala passar entre a árvore e o poste, entrar pelo vidro da janela da sala e atingir o coração do homem. Ele tinha nascido, porém, com o dom da pontaria. E ansiava pela perfeição.

Recebeu o dobro do dinheiro, dessa vez em dólares. Flutuando na própria solidão, reencapou o sofá e traduziu seus desejos em sorvetes de chocolate. Pensou em se casar, mas um matador, não. Pensou numa prostituta, mas não tinha suficiente coragem — a todo ato corajoso sobrevém uma dose de medo — e menos ainda disposição para isso. Pensou numa viagem, mas viajava a serviço, separava acontecimentos. Pensou. Exausto. Pegou no sono.

Certa vez, o avô pediu que ele fosse buscar uma garrafa de vermute na loja de importados do centro da cidade. Cumpriu a tarefa. Aos 14 anos, já cumpria tarefas discreta e corretamente. Como recompensa, pôde provar o vermute.

Então, desejou o aroma do vermute e voltou à loja, mudo. Bebeu uma garrafa na mesma noite, deixando livres as lágrimas bêbadas de saudades do velho. O único homem com quem trocara algumas palavras. Falavam de futebol, chuva e armas. Exímio atirador, o avô lhe ensinara a profissão. Lugar-comum, fato incomum, nosso homem superou o mestre. Mas ele sabia que toda superação — a qualquer momento — encontra uma relação direta com o fracasso. Portanto, puxar o gatilho com perfeição era, além de acertar o alvo, sair do cenário, ileso. Como o avô.

No terceiro trabalho viajou à Espanha. No quarto, ao Brasil. E eles se sucederam. Ao todo, quinze mortes secas. Olhos secos. Não conhecia as vítimas. Conhecia o mundo, de passagem. De passagens, imagens, mensagens, pousos e decolagens. Recebeu cada um dos fartos pagamentos em total abstenção de palavras e obras. Em taciturna despresença. Carregava consigo, além da violência fria, a estranha qualidade de esvair-se no ar.

Era leve e invisível. No trabalho seguinte, voou para os Estados Unidos. Deu fim a um militar da reserva, sabe-se lá por quê, nem a pedido de quem. Antes de voltar, porém, foi ao parque. Montanha-russa e trem fantasma, o cavaleiro salvando a princesa, Branca de Neve e Cinderela, lindas. Fugiu do barulhento tiro ao alvo. A arma dele tinha silenciador.

Em casa, buscou, empenhou, desejou, até quando? Pensou novamente em ter companhia. Seus fundos já eram milhões, espalhados em mil bancos. Melhor permanecer, rever, ver, abster. O tempo. O sonho. Assistiu a 128 filmes nos dois meses seguintes. Só que românticos. Um novo sofá, negro, de couro. Que não rangesse. Uma nova pintura, toda branca. Como se esperasse alguém. Nem notou que esteve quatro meses inerte, moderado, ensimesmado. Cuidado. Mal cuidado.

Sorveu um longo e sigiloso gole do vermute antes de atender ao telefone que o enviava a Veneza, terra do avô e da tal bebida. Fez as malas. Um trabalho perigoso. Quando o risco é maior, a equivalência surge em oportunidade. Dizem. Cada cor tem a sua cor complementar. Não ofereciam o vermute do avô no avião. Tomou apenas água, prevendo um batismo de dor, de amor, de suor, de pudor.

O serviço, minucioso, exigiu uma ronda de sessenta dias em torno do homem marcado. A mulher dele, as filhas, duas filhas, não queria que elas fossem espectadoras da morte. E adiava o balaço na têmpora. A próxima viúva parecia uma artista dos filmes românticos italianos que assistira. Belíssima, a veneta. Parecia, queria, que dia, que noites em claro, ele saberia. Ela não lhe saía da cabeça. Os italianos falam alto, pensou. E realizou.

A bala do fuzil que utilizava entregou a morte ao italiano voando a 900 metros por segundo. Dessa vez, o atirador não se esvaiu como água pelo ralo. Queria vê-la, precisava vê-la. Andava devagar e corria o risco. Acompanhou o funeral de longe, já sem a mira.

Caminhou dois dias por ali, tão triste quanto a própria Veneza. Desejava não ter feito. Gostaria de consolar a mãe e as filhas. Voltar no tempo. Recusar-se. Comoveu-se ao vê-las chorar. Um matador que se comove está acabado. Pegou o avião para casa e, de novo, não serviram vermute.


Laís de Castro é jornalista, participou da antologia Le grand Show des Écrivaines Brésiliennes, lançada em 2010, no Salon du Livre de Paris. Autora do livro de contos Um velho almirante, publicado pelo selo ARX (Siciliano).