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Cultura e imaginário

Lucia Leão é escritora e professora de Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Escreveu artigos e livros, dentre os quais O Labirinto da Hipermídia – Arquitetura e Navegação no Ciberespaço (Iluminuras, 1999) e A Estética do Labirinto (Editora Universidade Anhembi Morumbi, 2002), no qual, segundo sua definição, fez uma viagem antropológica pela história cultural. “Fiz um trajeto antropológico pela história da cultura, trazendo as imagens do labirinto desde as cavernas, passando por romances labirínticos, jogos, até chegar ao videogame”, disse durante encontro com o conselho editorial da Revista E.

Também artista, Lucia expôs suas obras em grandes centros culturais, museus brasileiros e internacionais. Durante a conversa, ela discorreu sobre a sociedade de controle, questionou as relações entre as transformações dos meios e o comportamento humano e como as tecnologias da comunicação e informação podem ajudar a resgatar a memória. A seguir, trechos:
 
Labirintos

O livro Labirinto da Hipermídia – Arquitetura e Navegação no Ciberespaço é uma pesquisa que associa os labirintos e a hipermídia. Nessa obra, discuto as redes, a Internet, o ciberespaço, a navegação, as estruturas labirínticas e os sistemas complexos dinâmicos. Já em Estética do Labirinto, fiz um trajeto antropológico pela história da cultura, trazendo as imagens do labirinto desde as cavernas, passando por romances labirínticos, jogos, labirintos de castelos, jardins, artes plásticas e videogame. A estética do labirinto fala de um tipo de sensibilidade e atração por tudo o que é complicado, complexo.
 
Metáforas e mitos

Algumas teorias da cultura se esforçam para “desmitologizar”, isto é, excluir os mitos e as imagens em suas investigações. Mas há outras que falam: “o mito é importante, é fundamental para entender a cultura”. O mito se relaciona com a capacidade humana de dar significado ao “ser” e sua existência no mundo. Essa capacidade que todos temos de elaborar uma visão do mundo e de si mesmo através do mito recebeu o nome de “mitopoiesis” pelo estudioso francês Gilbert Durand [mitólogo francês]. Nessa perspectiva, os mitos são formas elaboradas de imaginário, ou ainda, o mito é um sistema dinâmico de símbolos, de arquétipos.

As metáforas, assim como as analogias e os mapas conceituais, são tipos de raciocínios com grande potencial criativo. Vários estudos contemporâneos sobre a natureza dos sistemas conceituais humanos apontam a força cognitiva da metáfora. Holyoak & Thagard, por exemplo, no livro Mental Leaps: Analogy in Creative Thought, contam como as metáforas são usadas na linguagem poética para falar de questões afetivas complexas. Além disso, as metáforas estão presentes em vários outros momentos da vida cotidiana, como estruturas que organizam vários de nossos pensamentos e ações – ver, por exemplo, o livro de Lakoff & Johnson, Metáforas da vida cotidiana (Editora Mercado de Letras, 2002).

Individual e coletivos

Para Gilbert Durand, todo pensamento tem sua matriz nas imagens, imagens estas que indicam o tipo de sistema simbólico que permite o “ser no mundo” do pensamento.  Mas, podemos nos perguntar o que é o imaginário. Noção plástica e polissêmica, várias são as redes conceituais que se articulam em torno do tema. Para Durand, o imaginário é um elemento constitutivo e instaurador do comportamento específico do homo sapiens. Nessa concepção, o imaginário é um reservatório, museu de todas as imagens, narrativas, valores, perspectivas, pontos de partida, processos cognitivos, mitos, lendas, obras de arte, molduras conceituais que interferem na percepção do mundo e na construção da cultura. No senso comum, costuma-se separar imaginário e real, dada a ênfase que se coloca no processo de imaginação, como o processo de criação de imagens. Assim, nessa perspectiva, o imaginário distorce o real. Mas, na abordagem defendida por Durand, essa dicotomia é falsa, na medida em que, em sua complexidade, todo imaginário é real e todo real é imaginário. A rigor, a existência do ser ocorre no imaginário.

Em Michel Maffesoli [sociólogo francês], a noção de imaginário se amplia. Para ele, o imaginário é uma força, um catalisador, um patrimônio de grupo que dá sentido às tribos, uma vez que define os valores, as narrativas, afetos e estilos de vida que o grupo compartilha. E existe o imaginário individual, cuja construção se dá, essencialmente, por identificação (reconhecimento de si no outro), apropriação (desejo de ter o outro em si) e distorção (reelaboração do outro para si). Pelo imaginário o ser constrói-se na cultura.

Traduções e linguagens

Como se sabe, as traduções semeiam a cultura, aqui pensada como conjunto de tradições. Para alguns autores, toda obra é, por princípio, tradução de algo, anterior à própria obra. Proust [escritor francês, 1871-1922] falava do ato de escrever como tradução e, nesse sentido, a escrita se torna memória – ver, por exemplo Em busca do tempo perdido (Ediouro, 2002). Por outro lado, a memória exige esquecimento, pois é seletiva. Isso nos leva a pensar em algo corriqueiro na era das redes, pois vivemos um período de gigantesca produção de arquivos. As mídias digitais facilitam e estimulam a proliferação de bancos de dados. Mas esse excesso gera um paradoxo, pois muito do que é produzido fica apenas como acúmulo, lixo.

Em outras palavras, a quantidade de dados em si não implica necessariamente geração de memória. Para se falar em memória, é preciso que se inclua o componente da reflexão. Aí, a importância dos filtros, do selecionar e cortar. Gosto muito de um conto de Jorge Luiz Borges que ilustra esse problema, Funes, o Memorioso. No conto, o protagonista Funes, obcecado por lembrar de tudo detalhadamente, acaba vivendo o pesadelo de precisar de um tempo exagerado para se lembrar de questões simples. A memória, quando subordinada ao arquivamento direto, sem seleção, se torna inútil, mero acúmulo. Assim, a reflexão sobre a experiência vivida, assim como o esquecimento das particularidades, é elemento constitutivo da memória.

Uma outra lição pode ser apreendida a partir desse conto: ao tentar criar um sistema tradutório para organizar seus dados, Funes cai no erro de acreditar que as passagens tradutórias podem ser operadas por analogias. Como tão bem já postulou Jakobson [pensador russo, 1896-1982]: toda tradução implica passagem e, nessa passagem, muito se perde. Mas, voltemos às mídias digitais.

Remixagem, mash-ups, releituras são fenômenos frequentes no ciberespaço. Tais procedimentos são processos criativos que traduzem questões do imaginário para as mídias digitais e, nesses processos, apontam para a questão das passagens entre linguagens. As mídias digitais, por suas características abstratas, facilitam o processo de tradução entre meios. O que se observa nessas produções é que os imaginários são compartilhados e construídos em rede, ao mesmo tempo que são vivenciados e retraduzidos como universais.

A escritora e professora de Comunicação e Semiótica ?da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Lucia Leão esteve presente na reunião do Conselho ?Editorial da Revista E em 17 de agosto de 2010.

“O mito se relaciona com a capacidade humana de dar ?significado ao ‘ser’ e sua existência no mundo"