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A dança das reformas

De 1992 a 1994, época em que o país se debatia entre as crises da inflação altíssima e o doloroso processo de impeachment de Fernando Collor, convocou-se uma revisão constitucional, prevista na Carta de 1988. A epopéia começou em outubro de 1993 e no elenco das batalhas figuravam um novo sistema eleitoral, reforma partidária, financiamento das campanhas, fidelidade partidária e representação na Câmara Federal. Calmaria igual nunca se viu. Imobilismo explícito e interesses corporativos prevaleceram no Congresso e a revisão não passou de uma oportunidade perdida.

Na época, o cientista político Bolivar Lamounier era um dos defensores mais influentes da reforma política, que deveria ser feita durante a revisão constitucional. "O governo dificilmente terá condições de governar, porque estará em confronto permanente com o Congresso", dizia ele. Hoje todos vemos como Lamounier tinha razão. O cientista lembra ainda que o plebiscito de 1993, que aprovou a continuidade do regime presidencialista, em prejuízo do parlamentarista, amorteceu o ímpeto reformista que, bem ou mal, ainda se respirava no país. A chegada do Real e do governo FHC, pouco depois, completou a infeliz tarefa, ao criar a "falsa sensação de que podemos seguir em frente com a reforma econômica, apesar de nossa estrutura política defeituosa".

O cientista político não tem dúvidas, porém, de que a médio prazo o tema voltará à cena, pela simples razão da ingovernabilidade da nação. "Nem todos os políticos têm o prestígio e as credenciais de liderança de Fernando Henrique", lembra ele.

A reforma política, conceda-se, não está morta. Persiste em debate em Comissão Especial do Senado, que tem como relator o senador Sérgio Machado, mas quem acredita nela?

Na verdade, as dificuldades continuam as mesmas, e o Legislativo brasileiro, embora parcialmente renovado nas eleições, padece sempre dos mesmos males. A barganha é norma e os cargos públicos moeda forte, mais ou menos valorizada, de acordo com as necessidades e pressões do momento. A questão se complica com a fragmentação partidária e conseqüente disputa entre bancadas e lideranças, que levam o governo a abandonar negociações e legislar por medidas provisórias, garantidas pela inércia dos políticos.

Um observador paciente pode descobrir, sem grande esforço, que apesar de um relativo enxugamento o número de partidos ainda é exagerado. São 22 definitivamente registrados, mais quatro com registro deferido ad referendum do tribunal, além de três com registro provisório e um, o PDT do B, cuja solicitação está em andamento. Será a sociedade brasileira tão variada que precise de tantas siglas? Acredita-se que não, principalmente se se levar em conta que muitos partidos pouco diferem entre si, especialmente quando se trata de brigar por comissões, cargos e posições junto à Corte.

Lamounier, que também é diretor do Instituto de Estudos Econômicos e Políticos de São Paulo (Idesp), lembra porém que com o sucesso do Real muitas lideranças se enfraqueceram, permitindo a montagem de uma coalizão governo-Parlamento, que "bem ou mal vem funcionando". Os próprios partidos de esquerda, lembra ele, dão sinais de aliança e até de fusão.

Outro cientista político, Leôncio Martins Rodrigues, da Unicamp, não se preocupa tanto com a fragmentação partidária. "O número de partidos na Câmara Federal não é um problema em si mesmo", diz. Ao contrário, considera esse fator até importante, "porque dificulta a formação de maiorias estáveis e obriga o Executivo a negociar permanentemente".

Conhecendo a qualidade de nossos representantes, o problema pode estar exatamente nessa negociação. Basta ver o que ocorre, por exemplo, com a reforma administrativa, que mostrou recentemente - e ainda mostra - o alto grau de patriotismo que se respira no Congresso. Discutiu-se o limite para as aposentadorias dos funcionários públicos, e o valor sugerido - R$ 10.800 - não foi aceito por um forte grupo de parlamentares, temerosos de seu próprio futuro. Emendas surgiram duplicando o valor, mas a reação popular foi tão negativa que o autor da proposta sequer revelou seu nome. Mas a pendência não foi resolvida e os reformistas de plantão esperam ver reduzido o clamor do público para voltar à carga. Dessa reforma, sabem os deputados, depende em grande parte o controle do déficit público, tal o peso da folha de pagamento dos funcionários do governo nos orçamentos oficiais.

Satisfeitos com o poder

Como se vê, já foi o tempo em que os partidos eram mais ideológicos que pragmáticos. Bom para a estabilidade democrática, afirma Leôncio Rodrigues, pois "o excesso de ideologia significa a exacerbação dos conflitos". Por essa ótica, a dispersão político-partidária não ameaçaria uma eventual maioria governista, desde que se buscasse coesão em torno de pontos comuns. Mas essa suposta maioria, que muitos alegam existir na base do governo FHC, "é mais frágil do que se pensa", rebate Lamounier. Também por isso o acerto em torno das reformas está cada dia mais complicado nas tratativas entre governo e Congresso. Pior: o impasse parece não incomodar tanto as lideranças partidárias e o próprio Executivo, aparentemente satisfeitos com o poder que exercem.

Quem faz esse comentário é a professora Maria Victoria Benevides, do Departamento de Sociologia da USP, que pede uma urgente "definição das relações de poderes entre o governo FHC e o Legislativo". Em sua opinião, há no Executivo uma fixação pela estabilidade conseguida com o Real e isso está levando o país a arcar com um custo social absurdo, decorrente de "mecanismos artificiais, como as taxas de juros altas, medidas provisórias e manipulação do Congresso".

Enquanto o Poder Executivo vive à sombra do Real, o Legislativo busca o personalismo, lembra Maria Benevides, já que não tem programas e projetos próprios. Coisa que vem de longe, diz ela, lembrando o historiador Sérgio Buarque de Holanda, que em Raízes do Brasil já enfatizava a ausência de democracia no país, enquanto não existissem partidos políticos de verdade. O que temos, repete a socióloga, é um "poder oligárquico e personalismo".

Uma transformação política, evidentemente, exige um prazo mais longo, uma vez que não motiva a opinião pública da mesma maneira que as reformas administrativa e previdenciária. Para a população é quase uma abstração falar de uma mudança na representação dos estados nas Casas do Congresso, fidelidade partidária ou financiamento de campanhas eleitorais. A opinião é de Maria Dalva Gil Kinzo, professora da área de ciência política da USP e autora, entre outros, do livro Radiografia do sistema eleitoral no Brasil. A reforma político-partidária não deve ser assim tão urgente, diz ela com alguma ironia. Se fosse, o país estaria mergulhado no caos há muito tempo, pois o tema não sai da agenda do Congresso, mas é "sempre adiado para o futuro". Há uma fragilidade estrutural no sistema, afirma ela, e a inoperância do Legislativo leva naturalmente o Executivo a lançar mão das medidas provisórias, que muitos chamam de "poder imperialista". Esse poder recebe inúmeras críticas, especialmente dos congressistas, mas, segundo Maria Dalva, não passa de uma conseqüência do "sistema desagregador dos partidos brasileiros".

Voto distrital

Fazer reforma política, no Brasil, vai exigir algo mais do que partidos agregados e coerentes. Como corrigir, por exemplo, a proporcionalidade das cadeiras na Câmara Federal se os estados menores, nessa hipótese, perderiam assentos em favor dos mais populosos? É quase como colocar raposas cuidando do galinheiro. Suicídio político, mesmo que o chamemos de patriotismo, certamente não está ao alcance de nossos ilustres representantes.

Mesmo assim, está aí a tentativa de implantar o voto distrital misto, que garantiria o princípio de proporcionalidade. Uma medida que sofre objeções "que remontam à República Velha", diz Maria Dalva, "quando havia excessivo predomínio político de São Paulo e Minas Gerais dentro da federação". Hoje o predomínio mudou de mãos, ou de regiões, mas as objeções continuam fortes.

Pelo voto distrital misto, o eleitor terá direito a dois votos desvinculados: o primeiro será dado ao candidato da sua circunscrição distrital e o segundo à legenda partidária de sua preferência. Assim, garante-se a representação, pois o eleitor terá que escolher um candidato da região em que mora, sem prejudicar o partido de sua preferência, que receberá o segundo voto.

Leôncio Martins Rodrigues tem percepção diferente sobre esses benefícios. Se o objetivo é melhorar a qualidade da composição parlamentar, afirma ele, esse não parece ser o melhor caminho. Em sua opinião, o voto distrital misto deve aumentar as chances dos candidatos provincianos, em detrimento de personalidades mais significativas. Saem prejudicados também os candidatos corporativos, como os da Polícia Militar, bancários, sindicalistas e professores. Enfim, discussões à parte, as mudanças precisam ser feitas.

Engrenagens complexas

Outra discussão envolta na reforma política é o voto obrigatório. No começo deste ano, a comissão especial já aprovou o fim da obrigatoriedade determinada pelo artigo 14 da Constituição. Segundo a nova norma, o voto seria facultativo, no sistema distrital misto, e não haveria segundo turno para governador e prefeito. Mas não houve consenso entre os senadores e ainda faltam duas votações, no Senado e na Câmara.

A falta de consenso não se restringe somente ao Congresso. Maria Benevides, por exemplo, é favorável ao voto obrigatório, que considera "uma escola de educação política". Mas grande parte da sociedade não aceita a obrigatoriedade. A mudança, entretanto, é difícil, assim como é complicada a introdução do voto distrital. Como diz Lamounier, nada será aprovado se não houver antes uma ampla reforma partidária, pois as engrenagens do sistema eleitoral são complexas e não será possível reformular um ponto isolado. E quando se fala em reforma do sistema eleitoral, entenda-se: controle, transparência e fiscalização das práticas de financiamento das campanhas e dos partidos. Um grande tabu.

Estaca zero? É o que parece. Uma reforma depende da outra, e a outra da outra, e todas elas da vontade de nossos políticos, de seus interesses...

Lamenta-se aqui, como em quase tudo no Brasil, que o governo não desça ao "olho do furacão", envolvendo a sociedade num debate realmente profundo sobre essas reformas, seus objetivos e alcance. Falta comunicação inteligente entre o governo e os segmentos da sociedade envolvidos no assunto (ver box na pág. ao lado). Comunicação que poderia alimentar um legítimo movimento de pressão, de baixo para cima, forçando a classe política a tomar decisões de interesse da população e do país.

A questão do déficit

Uma das reformas em questão, a previdenciária, passou por momentos que podemos chamar de, no mínimo, absurdos. O projeto original foi de tal forma alterado que, na prática, tudo continuou como era antes e o atraso do país nessa área permanece atrelado aos interesses de minorias.

Estranhamente o governo ignorou o êxito da privatização da previdência no Chile, experiência da qual poderia extrair lições e subsídios. Os fundos de pensão criados no país vizinho tornaram-se uma poderosa alavanca para sua economia, hoje em situação excepcional, agindo como grandes investidores locais e já se beneficiando do dispositivo legal que permite aos mesmos investir 10% de seus recursos no exterior. Sabe-se que as privatizações no Brasil estão na alça de mira desses fundos.

Discute-se se a aposentadoria pode ser por idade, por tempo de serviço, etc., mas não se discutem os privilégios das classes dirigentes ou dos funcionários das estatais, beneficiados por salários e aposentadorias altíssimos em relação aos de milhões de outros brasileiros.

Enquanto esses temas, que mexem diretamente com a população, ocupam a ordem do dia, outros assuntos igualmente importantes ou até mais significativos não conseguem sensibilizar nem a grande massa nem os privilegiados de maior renda que ocupam o topo da pirâmide social. As discussões sobre o fantasma do déficit público e do déficit da balança comercial transitam apenas pelas colunas especializadas em economia e pela voz de uns poucos políticos e empresários. A política governamental optou por buscar capitais externos para financiar o balanço de pagamentos, embora muitos se preocupem com uma futura alteração no panorama da liquidez internacional.

Por trás desse debate está o crônico desequilíbrio do setor público, que recorre aos financiamentos externos para fazer face aos seus gastos excessivos e aos déficits da balança comercial e dos serviços. O governo e os especialistas que apóiam sua política econômica, contudo, mostram-se tranqüilos, alegando que a conjuntura econômica internacional favorece a entrada de capitais, além de evidenciar a predisposição para o financiamento de déficits comerciais nas Américas, que crescem em velocidade maior que no resto do mundo. Além disso, o governo disporia de instrumentos para combater o desequilíbrio da balança, tais como as restrições às importações e a aceleração das privatizações.

Reconhecendo os riscos, assim como os ventos internacionais favoráveis, o governo acredita que se a economia se mantiver no nível atual e as despesas públicas permanecerem aceitavelmente equilibradas, o conseqüente crescimento das receitas governamentais resultará na redução do déficit público. Isso abrirá caminho para uma indispensável reforma fiscal, sem a qual não haverá estabilidade para o Real e o desenvolvimento do país ficará ameaçado.

De fato, a verdadeira âncora do Real é a reforma fiscal, como definiu em recente artigo o diretor da Escola de Pós-Graduação em Economia da Fundação Getúlio Vargas, Carlos Ivan Simonsen Leal. Mas para implementar uma reforma desse porte, que não seja somente de fachada, o governo precisa dispor de força no Congresso, isto é, uma maioria estável e confiável, o que não ocorre no momento. O impasse nos remete de volta à reforma político-partidária, verdadeiro nó górdio que desafia os que lutam para tirar o Brasil do atraso.

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