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São Paulo em busca de cara nova

por Carla Aranha

Em fevereiro, a Praça Roosevelt, em São Paulo, deixará de ser frequentada somente à noite. Conhecida pelas apresentações de grupos como Satyros e Parlapatões, que trouxeram novos ares à cena teatral paulistana, a região vinha sofrendo com a degradação e permanecia praticamente deserta quase o dia todo – mesmo a plateia que costuma lotar os teatros ia àquela parte da cidade com certo receio. Como uma das iniciativas para recuperar a praça, que foi um conhecido ponto de encontro nos anos 1960, e trazer de volta a antiga vitalidade a essa área do distrito da Consolação e arredores, será inaugurada no local, num edifício de 11 andares, a sede definitiva da SP Escola de Teatro, por onde deverão passar diariamente 200 alunos em média. Segundo a Secretaria de Estado da Cultura, o novo espaço deverá promover uma mudança positiva na região.

A escola é mais um passo concreto para a revitalização do centro de São Paulo, que há anos vem sendo implementada pelas administrações municipais. A prefeitura irá investir cerca de R$ 40 milhões na recuperação da praça. Os recursos serão destinados a várias melhorias, como a demolição das estruturas de concreto, visando à integração dos dois lados do espaço público, o plantio de árvores, a instalação de luminárias e a construção de um conjunto de escadas e rampas acessíveis a cadeirantes. Haverá ainda quiosques para floriculturas e playground.

Além da Praça Roosevelt, a área conhecida como Cracolândia – no entorno das avenidas Rio Branco, Duque de Caxias, Ipiranga e São João –, o Parque Dom Pedro II e a região da Bela Vista deverão passar por reformas urbanísticas nos próximos anos. Rebatizada como Nova Luz, a Cracolândia, hoje ocupada por consumidores de crack, deverá ser totalmente reformulada. Segundo o secretário de Desenvolvimento Urbano de São Paulo, Miguel Bucalem, cerca de 30% das construções locais serão demolidas. Bucalem estima que por volta de 50 mil metros quadrados de áreas residenciais e 300 mil metros quadrados de edifícios comerciais sofrerão intervenções. Deverão ser derrubados três quarteirões da Rua Santa Ifigênia, polo do comércio de produtos eletroeletrônicos em São Paulo, além de seis quadras da Avenida Rio Branco. O objetivo do projeto é atrair novos moradores, principalmente pessoas que trabalham no centro e dariam preferência a residir ali. O programa prevê também a instalação de empresas na região.

Uma licitação, que deverá ser realizada até abril, escolherá os empreendedores responsáveis pelas reformas. O consórcio vencedor terá o direito de desapropriar imóveis, restaurar prédios tombados pelo patrimônio histórico e construir novas calçadas, praças e parques, seguindo uma concepção arquitetônica previamente definida pela prefeitura. As obras, que ainda não têm data definida para começar, deverão custar cerca de R$ 150 milhões.

As ruas e praças da Nova Luz ganharão projetos inspirados em espaços públicos de outros países. A ideia é que a Rua Vitória, principal vitrine da Nova Luz, fique parecida com a Rambla de Barcelona – a via terá um calçadão arborizado de 800 metros de comprimento na faixa central, como a avenida catalã. E, ao longo da rua, os prédios passarão a ter uso misto, de acordo com o projeto da prefeitura: no andar térreo ficariam restaurantes e cafés e, nos de cima, escritórios ou residências.

A Rua dos Timbiras ganhará um calçadão de 20 metros de largura, com várias espécies de árvores. Na Avenida Duque de Caxias e na Rua Mauá, os carros passarão a transitar por três faixas, e não seis, como acontece atualmente, para que os pedestres possam circular mais à vontade. Além disso, será criada uma ciclovia. Está prevista ainda a construção de um parque similar ao Bryant Park, de Nova York, na Rua dos Gusmões.

Entre arquitetos e urbanistas, o projeto tem provocado críticas por não conter ofertas de lazer que possam atender à população local, como locais para apresentação de música popular, e por copiar o que já existe lá fora. “Ainda é muito cedo para fazer críticas, mas as imagens divulgadas pela prefeitura do croqui da Nova Luz lembram muito centros europeus. Parece uma transferência de projetos internacionais e, se for assim, tem poucas chances de funcionar, porque aqui há uma realidade distinta”, diz o arquiteto Paulo Giaquinto, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Na opinião da urbanista Lucila Lacreta, da ONG Defenda São Paulo, algumas características da região, como a grande vitalidade da Rua Santa Ifigênia, não foram levadas em consideração na planta apresentada pela prefeitura. “Não dá para transformar o centro no Shopping Iguatemi”, diz ela. Paulo Garcia, diretor da associação de comerciantes da Rua Santa Ifigênia, acredita que se houvesse mais interferência do poder público no programa, que será conduzido pela iniciativa privada, muitas questões seriam facilmente resolvidas. De acordo com ele, um maior envolvimento da prefeitura no projeto poderia ajudar a dar garantias de que todos os comerciantes serão indenizados por possíveis desapropriações, por exemplo, o que ainda não aconteceu.

Segundo a prefeitura, a revitalização da área trará mais visitantes ao local nos finais de semana, tornando o centro um grande atrativo turístico da cidade. Com um bom espaço disponível para moradias, a ideia também é que mais gente passe a morar na região, em vez de procurar bairros já saturados, em que o trânsito é complicado e o valor dos imóveis costuma ser mais alto.

A todo o vapor

Parte da reforma urbanística do centro de São Paulo já começou. Nas imediações do Parque Dom Pedro II, teve início em setembro do ano passado a demolição do Edifício São Vito. A obra está sendo feita manualmente, tijolo a tijolo, para não danificar os 32 vitrais alemães do Mercado Municipal, situado bem ao lado. No terreno ocupado pelo edifício, será criado um parque de 5,4 mil metros quadrados, que deverá ligar o Mercado Municipal ao Palácio das Indústrias, onde já funciona o Catavento, espaço cultural e educacional voltado principalmente à difusão da ciência. Também está prevista a construção de um prédio próximo ao mercado, destinado a cursos de gastronomia. Nos subterrâneos, provavelmente, haverá uma garagem. Além disso, serão derrubados quase dois quarteirões entre as ruas Dom Pedro II e 25 de Março. Só não irão para o chão os prédios históricos. O Edifício Mercúrio, próximo ao São Vito, está entre os que vão desaparecer. O Viaduto Diário Popular, inaugurado em 1969 para ligar a Rua do Gasômetro à Avenida do Estado, também deverá sair do mapa. A construção, com condições técnicas que deixam a desejar, acabou sendo pouco utilizada e não resolveu o problema de tráfego no local.

A reforma da região, em discussão desde 2005, não vai apenas mudar a paisagem de São Paulo. A prefeitura já anunciou que deverão ser removidos mais de 4 mil moradores, na maioria pessoas carentes. Só no Edifício São Vito residiam cerca de 3 mil, que receberam indenizações de R$ 4 mil a R$ 8 mil. Segundo o arquiteto Gabriel Kogan, muitos antigos condôminos acabarão indo morar em regiões distantes do centro, intensificando a segregação social da capital. “Planeja-se uma cruel periferia e uma cidade limpa, asséptica, dividida, que derrama seu próprio veneno a cada chuva e a cada congestionamento”, declara. Os defensores do fim do São Vito, como os técnicos da administração municipal, afirmam que o prédio havia se transformado em cortiço e era um empecilho para a criação de uma área verde na região, carente de arborização.

A demolição da antiga Estação Rodoviária de São Paulo, na Luz, entre a Avenida Duque de Caxias, a Praça Júlio Prestes e as ruas Helvetia e Barão de Piracicaba, tem despertado menos polêmica. As marretadas devem acabar em meados de 2011. O governo estadual deverá construir no local o Complexo Cultural Luz, um conjunto de três teatros projetados pelo escritório suíço Herzog & de Meuron, que custará R$ 600 milhões. O local deverá contar também com escola de dança, biblioteca, auditório, café, praças e lojas de convivência.

Aberta ao público em 25 de janeiro de 1961 pela administração Adhemar de Barros em um terreno de 19 mil metros quadrados, a rodoviária foi desativada em 1982, quando foi inaugurado o Terminal Rodoviário do Tietê. Anos depois o prédio passou a abrigar um shopping popular de confecções. Segundo o arquiteto e urbanista Jorge Wilheim, a rodoviária teve vida curta porque foi mal planejada. Suas imediações eram densamente frequentadas – os ônibus intermunicipais, geralmente maiores que os de transporte urbano, tinham dificuldade de se locomover e o trânsito da região ficou ainda mais complicado. Em 2007, o espaço foi desapropriado por R$ 34 milhões, após quase duas décadas de protestos dos moradores: eles reclamavam do grande fluxo de pessoas provocado pela instalação do centro de compras, que teria trazido mais barulho e congestionamento.

A prefeitura também prevê o fim do Elevado Costa e Silva, o Minhocão, que passa sobre as avenidas Amaral Gurgel, São João e General Olímpio da Silveira. A obra sempre foi muito criticada por diversos motivos, entre eles a curta distância, de somente cinco metros, entre suas muretas e as janelas dos prédios. Idealizado pelo prefeito José Vicente de Faria Lima durante sua gestão, de 1965 a 1969, no período do regime militar, o projeto desde o início foi rejeitado por engenheiros e arquitetos e acabou engavetado. Porém, quando Paulo Maluf assumiu a prefeitura, sucedendo Faria Lima, a obra foi concretizada.

O preço pago pela população foi alto. Praticamente de imediato os imóveis da região foram desvalorizados, houve aumento da degradação e a poluição tomou conta do local. Na visão de muitos arquitetos, a área do entorno também perdeu muito com a construção do Minhocão, que espantou moradores e visitantes. Segundo Nilson Ghirardello, vice-diretor da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Bauru, a obra representou um momento político em que a prioridade era o veículo particular e não o transporte coletivo. Até então pensava-se pouco em metrô e em outras alternativas que possibilitassem o deslocamento das pessoas sem carro. Além disso, na época não havia discussão popular e democrática de projetos urbanísticos, e o elevado acabou sendo aprovado sem que houvesse um consenso sobre sua necessidade.

Apesar de haver poucas opiniões contrárias à sua demolição, o Minhocão deverá continuar de pé por mais algum tempo. A prefeitura já deu seu aval à derrubada, mas não há prazo para que ela aconteça. Especialistas estimam que o desmonte do Minhocão não sairá por menos de R$ 80 milhões, valor bastante alto para os cofres públicos. O caminho, afirmam os arquitetos, seria a busca de parcerias com a iniciativa privada para viabilizar a obra, mas por enquanto não há nada confirmado. No momento, a prefeitura está estudando alternativas para escoar o trânsito na região. Existe a ideia de abrir uma avenida de ligação entre os bairros da Lapa e do Brás, paralela ao trajeto de uma antiga ferrovia. Só depois de completada essa obra seria dado início à demolição do Minhocão.

Novidades na Bela Vista

Seguindo a tendência de rever obras dos anos 1960 e 1970 que acabaram não sendo favoráveis ao planejamento urbanístico de São Paulo, a administração municipal também estuda demolir o Viaduto Doutor Plínio de Queiroz, sobre a Praça 14-Bis, na Avenida 9 de Julho. Empresários da Bela Vista, onde se situa o elevado, demonstraram interesse em arcar com parte das despesas. Entidades instaladas na área, como a Fecomercio (Federação do Comércio de Bens, Serviços e Turismo do Estado de São Paulo), apoiam a medida. Inaugurado no começo dos anos 1970 como parte das obras viárias que transformaram o centro de São Paulo, na visão de vários especialistas ele acabou não cumprindo o objetivo de melhorar o trânsito na região, por não oferecer vias de acesso a ruas secundárias, e tornou-se um elefante branco. De acordo com vários profissionais, o viaduto é completamente dispensável. “Trata-se de uma coisa inútil”, diz o arquiteto Carlos Lemos.

No Bexiga – bairro tradicional do distrito da Bela Vista, também grafado popularmente Bixiga –, cerca de 40 entidades, a maioria organizações não governamentais, se uniram para criar um projeto, ainda em análise pela prefeitura, que promete proporcionar o renascimento da região. O plano Bixiga 2014, como é chamado, foi elaborado pela Rede Social Bela Vista em conjunto com a Universidade Mackenzie e o escritório Zoom Arquitetura. O intuito é aproveitar a Copa do Mundo de 2014 para recuperar o antigo charme do bairro boêmio de São Paulo. O projeto prevê a restauração de parte dos 900 edifícios históricos do local, além da criação de teatros, centros de cultura e escolas de música.

Os arquitetos também desenharam ciclovias e faixas verdes, com árvores, nas ruas. Para estimular encontros entre moradores e uma procura maior pelo espaço público, a Rede Social Bela Vista pretende fazer projeções de cinema ao ar livre a partir de 2014. As escadarias da Rua Avanhandava ganhariam cadeiras, em anfiteatros improvisados, para que as pessoas pudessem assistir em telões aos jogos de futebol. “O projeto representará um mote de mudança na vida da população local”, afirma Renata Moura, da Rede Social Bela Vista.

Ocupado desde o século 16 por donos de sítios, o Bexiga é um dos bairros mais antigos de São Paulo. No século 19, as terras locais foram compradas por Antônio José Leite Braga, que sofria de varíola e ficou com cicatrizes conhecidas como “bexigas” – daí o nome da região. Mais tarde, a área foi dividida em pequenos lotes, que interessaram aos imigrantes italianos que chegavam a São Paulo. Cantinas, teatros e centros de arte começaram a surgir, tornando o bairro um dos mais efervescentes de São Paulo. É esse espírito que os moradores locais desejam recuperar.


O fim de um símbolo

Construído em 1959 pelos arquitetos Aron Kogan e Waldomiro Zarzur – responsáveis também pelo projeto do Edifício Racy, na Avenida São João –, o São Vito ficou conhecido como símbolo da degradação do centro de São Paulo. Com a mudança de grande parte da população e das empresas para outras regiões da cidade, nas últimas décadas, o entorno do prédio, localizado na Avenida do Estado, começou a ser disputado por consumidores de drogas e alcoólatras. Além disso, a administração do condomínio não se preocupou em fazer restaurações, e o edifício, assim como toda a região, acabou entrando em decadência.

No conceito original, o São Vito foi pensado para abrigar migrantes de baixa renda, que trabalhavam no centro. Assim, eram evitados grandes deslocamentos populacionais, aliviando o trânsito. Nos anos 1960, o edifício foi um dos maiores exemplos da arquitetura modernista em São Paulo. Com grandes painéis de vidro e estruturas de concreto, tinha 25 pavimentos com 600 pequenos apartamentos, além de uma cobertura que abrigava um auditório onde se apresentavam artistas famosos e uma sobreloja com unidades comerciais. O topo do São Vito oferecia uma visão de toda a cidade, da mesma forma que o Edifício Itália. Do alto, era possível avistar a Catedral da Sé, arranha-céus, o bairro do Brás, o Mercado Municipal e o canal do rio Tamanduateí.

Ao longo das décadas de 1970 e 80, o prédio passou a ser endereço de trabalhadores informais, traficantes e travestis. Muitos eram atraídos pelo aluguel barato, de cerca de R$ 250, e condomínio de R$ 130, em valores atualizados. Os apartamentos, de 27 metros quadrados, custavam em média R$ 13 mil, também em preços de hoje. O prédio adquiriu as feições de cortiço, e passou a ser conhecido como treme-treme. Mesmo assim, sua demolição não foi uma unanimidade. Na opinião do arquiteto Gabriel Kogan, neto do fundador, o São Vito poderia ter sido reformado para continuar abrigando moradores de baixa renda, em vez de expulsar a população carente para a periferia.