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Moçambique, um irmão desconhecido

por Milu Leite

Pouco se divulgou no Brasil, mas em janeiro último Moçambique chorou a morte de um filho ilustre, Malangatana Ngwenya, seu artista plástico mais importante, um pintor de peso semelhante ao que tem para nós Candido Portinari. O talento de Malangatana foi inúmeras vezes exaltado por Mia Couto, o mais conhecido escritor moçambicano, com livros editados em muitos países, inclusive o nosso.

A falta de informação a respeito dessa bela nação localizada na costa oriental da África, no entanto, não é culpa dos cerca de 22 milhões de habitantes de lá, nem dos mais de 190 milhões de brasileiros. Apesar de falarmos a mesma língua, nos desconhecemos. Melhor dizendo, nós os desconhecemos, porque lá eles ouvem nossa música, assistem nossas novelas, promovem exposições com nossos artistas e, às vezes, se divertem com as mesmas piadas que contamos a respeito dos portugueses. De quem é a culpa, então? Provavelmente dos governos. Ou será da mídia?

No âmbito dos negócios, Moçambique vem despertando a atenção de investidores. A Feira Agropecuária, Comercial e Industrial de Moçambique (Facim), realizada anualmente em Maputo, capital do país, recebe cada vez mais brasileiros interessados num mercado consumidor que pouco a pouco se estrutura, depois de uma longa guerra civil. Em 2010, a Facim contou com a participação de 488 empresas, 60 delas oriundas do Brasil. Segundo declarou o organizador da feira, Marcos Audrá, houve um crescimento de 40% de brasileiros em relação ao ano anterior. Uma das razões para isso seria a melhora na infraestrutura e o crescimento do país, que, embora tímido, é promissor.

A guerra praticamente devastou a economia local, mas o estrago não foi só esse. Um passeio pela cidade de Maputo não deixa dúvidas quanto ao alcance da destruição. Há inúmeros prédios em estado precário, o lixo se acumula nas ruas e os serviços públicos – transporte, saneamento, saúde e educação – dão conta apenas do mínimo. Os salários são baixos, o custo de vida, alto. O que sobra é a esperança. Os moçambicanos se mostram confiantes no restabelecimento do país. Talvez por isso recebam tão bem os mulungos, nome com que designam os estrangeiros no idioma changana, um dos 20 falados no país em escala igual ao português. Em Maputo, por exemplo, é comum ouvir os moçambicanos conversarem entre si numa dessas línguas diante das barraquinhas de bugigangas que ocupam as calçadas do centro da cidade. Tal qual ocorre em São Paulo ou em qualquer grande núcleo brasileiro, veem-se camelôs espalhados por todos os lados, vendendo frutas, flores, sapatos e equipamentos de telefonia celular. Há ainda o artesanato (são exímios nos trabalhos em madeira), oferecido principalmente nas praças ou cruzamentos de ruas que recebem os turistas nos horários do almoço e do jantar.

Aridez e descontração

Os mulungos, de regiões variadas do planeta, são poucos. Maputo não é uma cidade atraente para quem vem de fora. Pelo contrário, vista da janela do avião, o que ela mostra é uma infinidade de casebres, construções semelhantes a contêineres, e muita aridez. Muita. Essa aridez, contudo, contrasta com a maneira descontraída com que os habitantes locais, especialmente em Maputo, parecem viver o dia a dia. Mais: ela não é forte o suficiente para impregnar a capacidade do moçambicano de se adaptar rapidamente ao cenário. Um exemplo?

Em setembro de 2010, o presidente Armando Emílio Guebuza, de uma tacada só, decretou o aumento nos preços de energia, combustíveis, água e pão. A população se revoltou. O aeroporto de Maputo foi fechado por agitadores, as estradas bloqueadas. Houve tiros e mortes. Depois da eclosão de conflitos entre polícia e população nas ruas de Maputo e de outras duas cidades próximas, o que o mulungo inexperiente esperava era um recrudescimento dos atritos entre governo e povo, ou a permanência do clima de medo e da violência que se espalharam pela cidade nos três dias precedentes. O que se viu, entretanto, foi um período de readaptação aos estragos (lojas saqueadas e destruídas, postos de gasolina queimados), uma tomada de consciência acerca do poder de ação da população e muita conversa nas esquinas. Ao cabo de mais dois dias, com a possibilidade de o governo recuar, tudo parecia ter se normalizado e as piadas, com o presidente da república como protagonista, se impuseram sobre os escombros.

Nada que lembre as trevas da guerra civil. De início, o mulungo não compreende bem por quê, mas acaba concluindo que talvez tudo seja diferente justamente pelo fato de o povo já ter vivido uma longa e dolorosa guerra. Depois de lutar pela independência durante dez anos, Moçambique deixou de ser colônia portuguesa em junho de 1975, quando foi instituído um regime socialista de partido único, representado pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo). A crise econômica e o descontentamento com um sistema político opressor culminaram em uma guerra civil que se estendeu de 1976 a 1992. Em 1994, graças a um acordo de paz assinado com uma frente partidária de oposição, a Resistência Nacional Moçambicana (Renamo), aconteceram as primeiras eleições pluripartidárias. O atual presidente de Moçambique, assim como todos os antecessores, pertence à Frelimo. Eleito em 2005 e reeleito em 2009, ele deve ficar no poder até 2014.

Para alguém nascido no Brasil, não é difícil encontrar certas semelhanças com os moçambicanos, como o senso de humor e o jogo de cintura. Somos, conforme demonstram esses e outros traços, todos filhos de Portugal e, mesmo separados territorialmente, falamos a mesma língua. Ou quase.

A reforma ortográfica, que já está em prática no Brasil, não é bem vista por uma parcela dos moçambicanos. Eles não creem nos ganhos alardeados pelo governo brasileiro com as mudanças. Não é à toa que em Moçambique ainda se discuta a maneira de aplicá-la. As razões da desconfiança são muitas, mas se destaca uma apontada pelo escritor Rogério Manjate: a reforma foi feita de baixo para cima. Não é um desejo do povo, mas daqueles que lidam com negócios na área. “Esse acordo atende a anseios do Brasil. Os grandes beneficiários serão, entre outros, as editoras brasileiras”, destaca Manjate, que acentua ainda outro aspecto: “Não acredito que algum país africano ratifique o acordo. De onde sairia o dinheiro para fazer todas as mudanças necessárias?”

Mesmo sendo um escritor publicado no Brasil, Manjate discorda da reforma e acredita que ela não acontecerá de fato em Moçambique, país que mantém vivos muitos idiomas. Sua postura é coerente com o modo como faz literatura. Seu livro infantil O Coelho que Fugiu da História (Editora Ática) traz no final um glossário com os termos utilizados em português de Moçambique, em changana e em ronga, transformando as diferenças linguísticas em fonte de curiosidade. Ou seja, para ele, melhor do que padronizar é ampliar e informar. Assim, por exemplo, é que a criança leitora de sua obra fica sabendo que “guarda-fatos” quer dizer “guarda-roupa” e que “machamba” significa “horta”, “plantação”. Essa mesma criança, se conscientizada das diferenças, poderá passar sem problemas pelas diversas grafias das palavras de uma mesma língua, sem ter de recorrer à uniformização da ortografia.

Rogério Manjate é cineasta, escritor, ator e dramaturgo. Obteve prêmios importantes em cada uma dessas áreas, mas é pouco conhecido entre nós. Já veio ao Brasil meia dúzia de vezes, sempre a trabalho. Por causa de seu livro, recebe convites de feiras e eventos literários. Conhece e admira a obra de muitos brasileiros, entre eles Guimarães Rosa, Ferreira Gullar e o contemporâneo Bernardo Carvalho. Atualmente, é professor titular da cadeira de teatro da Universidade Eduardo Mondlane, a principal de Moçambique, e alia o trabalho acadêmico à escrita e ao cinema. Em setembro do ano passado, ensaiava com atores moçambicanos uma adaptação de Dois Perdidos numa Noite Suja, a famosa peça escrita pelo brasileiro Plínio Marcos nos anos 1960.

Apesar de a literatura, as artes plásticas e o teatro produzidos no Brasil cavarem espaço na cultura moçambicana, nada se compara à força da música popular brasileira. Adriana Calcanhoto e outros músicos populares são conhecidos por lá, mas é o samba que é mais apreciado, encorajando produtores locais a apostar em shows com Alcione e Mart’nália, entre outros. Não se trata, porém, de intercâmbio, como bem esclarece o produtor cultural Licinio Mauaie. “O que assumo existir é um grande fluxo de informação cultural do Brasil a entrar em Moçambique”, informa ele com conhecimento de causa, pois dirige a revista eletrônica “Moz Culture”, que aborda temas ligados à cultura e aos esportes daquele país.

Racismo

O desequilíbrio na balança cultural, porém, não significa que a produção de alguns artistas moçambicanos não chegue a nós. Mauaie cita de cabeça os casos do rapper Mc Roger, do músico Cheny Wa Gune e da atriz Lucrécia Paco, todos bastante populares no país natal. Lucrécia é considerada a mais importante atriz moçambicana e, quando esteve em São Paulo em 2009, a convite do Itaú Cultural, foi vítima de um episódio vergonhoso de racismo. Enquanto esperava para trocar dólares na fila de uma casa de câmbio num shopping da cidade, foi objeto da desconfiança da mulher que estava à sua frente, sem nenhum motivo para isso, conforme relatou depois aos jornalistas.

O episódio joga luz sobre uma gritante diferença entre ambos os países. Em Moçambique os negros são a esmagadora maioria, o que os coloca em situação oposta à vivenciada no Brasil. Por essa razão, Lucrécia narrou com espanto o caso de racismo. Em seu país, nunca tinha sofrido nada parecido. Isso não quer dizer que, em certa medida, também não haja preconceito lá. A produtora cultural independente Isabel Zacharias conta que muitos sul-africanos residentes em Moçambique encaram os habitantes locais com ar de superioridade, revelando um tipo de preconceito social. A verdade é que, a julgar pelo que dizem as pessoas, as relações entre os dois povos não são de todo afáveis. Os moçambicanos se queixam, por exemplo, da maneira como os sul-africanos segregam os imigrantes que vivem no país de Nelson Mandela.

A música brasileira, contudo, passa incólume por esses problemas, e a prova está num dos ídolos brasileiros mais cultuados no país africano: Roberto Carlos. O cantor é lembrado por muitos moçambicanos como sinônimo de música brasileira. Seja entre músicos, seja entre simples cidadãos, a menção ao Rei é quase sempre acompanhada de elogios.

“Na época colonial, a música de Roberto Carlos era tocada sempre nos clubes noturnos. As pessoas pediam. Depois, com o governo socialista, ficamos proibidos de apresentar música estrangeira. Só se tocava música do partido”, relembra o guitarrista Baba Harris, atualmente presidente da Associação de Músicos de Maputo. Pontuando críticas ao antigo sistema, Baba narra histórias trágicas que envolveram até mesmo o confinamento de artistas em campos de concentração. “Muitos músicos foram obrigados a migrar, os melhores. A situação só começou a mudar a partir dos anos 1980”, avalia.

Foram anos de vazio cultural, e Moçambique ainda se ressente disso. “Os cotas [velhos] pararam no tempo”, critica Baba, acrescentando: “Eu, não; sempre bebi da experiência de outros músicos estrangeiros e aprendi muito”. Encorajado a citar alguns nomes, Baba é rápido na resposta: Tom Jobim, João Gilberto, Djavan. “Toco pelo menos três músicas brasileiras em meus concertos”, revela. A afirmação endossa o ponto de vista de Mauaie. O tal fluxo de informações realmente acontece.

Não são, porém, apenas os fluxos legais que fortalecem as relações entre os dois países. Ao falar de seu novo projeto, o escritor Rogério Manjate conta que pretende escrever uma história cuja protagonista transporta drogas do Brasil para Moçambique. “Há uma relação clara entre São Paulo e Moçambique. Muitas mulheres atuam como aviões, trazendo drogas de lá para cá, como se fossem vendedoras de roupas. Várias delas estão presas no Brasil”, diz.

Uma busca nos arquivos não deixa dúvidas quanto à afirmação de Manjate, como mostra uma nota publicada no site da TVM, o canal público de TV de Moçambique, a respeito de duas mulheres detidas no aeroporto de Maputo com heroína: “A droga foi escondida entre as peças de roupa (camisas de homem, jeans, blusas de senhora). Nos últimos dois anos, a capital moçambicana viu-se repleta de estabelecimentos comerciais que vendem todo tipo de vestuário fabricado no Brasil”.

“É triste que as coisas sejam assim”, afirma Manjate. “É triste também que haja tanto desconhecimento sobre a África no Brasil, sobretudo por aqueles que se dizem descendentes de africanos.”

Longe das raízes

Para ilustrar esse desconhecimento, Manjate conta que sempre que retorna ao Brasil se surpreende com a maneira como os afrodescendentes se apegam a traços culturais que há muito deixaram de existir em Moçambique e em outros países africanos. Ao analisar a questão, arrisca uma teoria. Isso talvez aconteça porque os afrodescendentes não vivenciam a cultura africana da mesma maneira, por exemplo, que um moçambicano. Na opinião de Manjate, por estar longe da terra mãe, muitos deles tendem a se apegar a tradições porque é a única maneira de se sentir mais perto da raiz. Por isso, mantêm costumes que os africanos substituíram por outros há centenas de anos. “Certa vez me perguntaram o significado de uma palavra e eu respondi que não sabia. Provavelmente era um termo utilizado por escravos. Ele foi conservado no Brasil, mas aqui eu nunca tinha escutado ninguém falar”, diz.

O inconstante e incipiente intercâmbio, porém, pode se intensificar com o andamento de um projeto assinado entre os governos de Brasil e Moçambique destinado a parcerias no âmbito educacional. Conforme divulgou em novembro de 2010 o Ministério da Educação e Cultura do país africano, a Universidade Pedagógica de Moçambique será a primeira instituição estrangeira a fazer parte da Universidade Aberta, programa de ensino a distância criado em 2006 pelo governo brasileiro com o objetivo de formar professores para a educação básica. O acordo prevê cursos de licenciatura nas áreas de biologia, pedagogia e administração pública em Maputo, Beira e Lichinga. As aulas começam em março, e estão inscritos 600 alunos. Serão ao todo 40 professores, metade brasileiros, metade moçambicanos.

Ao andar pelas ruas de Maputo, sente-se a pulsação das pessoas. Não é difícil detectar entre elas um sentimento misto de esperança e pressa. Capital de um país praticamente destruído pela guerra, a cidade tem estatuto de província e acolhe quase 2 milhões de habitantes. Os contrastes são muitos e pouco diferem dos que encontramos nas metrópoles brasileiras. O centro é maltratado, há muita pobreza nas ruas, mas existem os bolsões de riqueza e bairros com casas luxuosas começam a surgir rapidamente. Seja no Brasil seja em Moçambique, o mundo se globaliza e as pessoas não estão no centro das atenções.