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Carlos Byington

A psicanálise tornou-se, a partir do início do século 20, modus operandi na compreensão do mundo. Nas teorias sobre gênero, que culminou no feminismo, nas teorias literárias e na filosofia, passou a ser ferramenta de apoio à articulação de conceitos.

Das descobertas iniciais de Josef Breuer (1842-1925) no tratamento da histeria, em Viena, ao desenvolvimento das teorias da sexualidade com Sigmund Freud (1835-1930) até chegar ao conceito de Totalidade e dos Arquétipos realizados pelo médico suíço Carl Gustav Jung (1875-1961), muitas correntes se formaram em torno da ideia originária do inconsciente.

No Brasil, a psicologia junguiana ganhou força ainda na década de 1950 por meio da psiquiatra Nise da Silveira. Em 1978, o médico psiquiatra Carlos Amadeu Botelho Byington funda, com colegas, a Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica – centro formador e propagador das teorias de Jung.

Formado no Instituto Jung, na Suíça, Carlos Byington revela em entrevista à Revista E alguns dos processos necessários para que o indivíduo atinja o equilíbrio e a saúde. “A psiquiatria moderna tende a medicar excessivamente e rotular a depressão como um mal e com isso favorece a indústria do consumo – que quer todos felizes.

Só que o controle exacerbado do sofrimento via pílulas encobre a percepção da sombra”, afirma. Para o analista, a cura se dá pelo contato com o próprio mal inerente a todo ser humano, para, então, o indivíduo buscar a realização pessoal. “A tarefa primordial do ser humano é transformar-se numa pessoa capaz de realizar seu potencial.”


Como se estrutura o pensamento de Carl Gustav Jung dentro da psicologia analítica?

Os arquétipos são a base do pensamento de Jung. Sua principal descoberta são os arquétipos do inconsciente coletivo. Isso quer dizer que, quando você ouve uma pessoa, não está ouvindo somente um indivíduo. Ouve-se toda a humanidade.

Porque os arquétipos vêm das mutações que deram origem ao homo sapiens e lá estão desde sempre. Nós procuramos perceber os arquétipos imemoriais dentro de cada pessoa e, para isso, temos que atravessar as aparências, o discurso consciente e racional, através do símbolo. O símbolo é o centro da psicologia analítica.

O símbolo é a representação do self, que é a totalidade. O self possui um arquétipo central que coordena as representações da psique – porque a psique é feita de representações do mundo –; então, ele coordena as representações do mundo para fazer o processo de individuação: o desenvolvimento daquela pessoa em direção à própria totalidade.

Tudo na vida é simbólico. E por isso nós temos técnicas expressivas na terapia para representar os símbolos. A psique trabalha para levar esses símbolos adiante para que eles revelem o seu conteúdo. É através da elaboração simbólica que o arquétipo central retira o significado de dentro dos símbolos e os coloca na consciência, na identidade.

E vai transformando a pessoa. Então nós temos a ligação do centro com a consciência. A ideia de Deus é a projeção do nosso arquétipo central. Nós achávamos que Deus morava no céu. Aos poucos percebemos que existe o Deus imanente, cuja imagem é a projeção do nosso arquétipo central.


Como esses símbolos operam?

As elaborações são feitas pelas funções vitais, que chamamos funções estruturantes por meio da visão, da audição, da respiração e também por meio da raiva, da inveja, do ciúme... Por exemplo, no estado de ansiedade, a respiração fica mais acelerada.

Nosso coração também se acelera. São funções estruturantes que fazem a elaboração simbólica. Esse é o trabalho da psique. É uma fábrica de significados para formar a nossa consciência. Daí a nossa inteligência. A vida surgiu há quatro bilhões de anos na Terra e evoluiu por meio de mutações até formar nossa espécie há 200 mil anos.

Há pessoas mais medrosas que outras, por exemplo, porque o gene transmite a possibilidade do medo. Ao longo da vida, ocorrem fatos que interagem com o gene e que podem, ou não, acentuar o medo. Segundo Freud, quando o medo é fixado, ele gera a fobia.


Na sua interpretação, Deus seria a projeção dessa evolução?

Sim, porque o arquétipo central coordena a elaboração simbólica e esta produz a consciência, que, concomitantemente, coordena tudo o que nós fazemos. Os símbolos formam mitos que orientam a cultura. Veja, por exemplo, o mito cristão: primeiro, representamos os símbolos daquele que morreu, sacrificou-se para unir o Filho ao Pai e formou a Trindade.

O mito cristão veio do Velho Testamento, que originou o Novo Testamento e estruturou a consciência coletiva com a bondade, o amor, a consideração pelo outro. Podemos pensar simbolicamente em uma orquestra. É como se fosse uma orquestra na qual o arquétipo central é o regente e os músicos são os demais arquétipos.

Mas a orquestra pode desafinar: alguns músicos passam a ter medo de errar – aí teremos o símbolo da ansiedade. Outros começam a desanimar – símbolo da depressão. O que ocorre? Fixações da elaboração simbólica: esta é a obra da patologia que, no mito, corresponde ao diabo. Todas as culturas têm o Deus e o diabo.

E o que faz o diabo dentro do mito? Ele paralisa a elaboração simbólica. Ele fixa a elaboração simbólica e, ao fixá-la, essas funções estruturantes como a ansiedade, a emoção, a inveja etc. se transformam em defesas. Isso quem descobriu foi Freud. O que faz o demônio [o uso da palavra demônio não se relaciona a nenhuma crença religiosa, serve de metáfora para as deformações da psique]? Ele faz a disfunção da elaboração simbólica.

Freud a chamou fixação. Essa fixação paralisa o desenvolvimento. Forma-se ?a sombra. A sombra é o arquétipo do mal dentro de nós, que paralisa e atua dentro de disfunções: a neurótica, a psicopática, a borderline e a psicótica, esta a maior disfunção de todas.

O sujeito tem um símbolo de grandeza e, em vez de trabalhar e ganhar dinheiro para comprar um apartamento, sobe numa árvore e diz que é Napoleão. É o mesmo símbolo, só que operando na sombra de maneira psicótica. Essa é a sombra, que se forma pela fixação e deformação do símbolo desde o início da humanidade.


Pode-se dizer, então, que carregamos uma herança que se manifesta além da nossa vontade?

Com certeza, porque não é a consciência que controla o self. É o arquétipo central. E o arquétipo central reúne e forma a consciência e a sombra. Vamos supor que, em uma criança cheia de vida, forma-se uma fixação que a leva para a droga, para o crime, para a transgressão.

A intenção do ego pode ser boa, mas a formação dele ficou fixada em algum complexo e o levou para a sombra. Às vezes a criança teve uma boa formação, mas desviou-se. O importante é ir ao passado e compreender esse processo. Freud, com sua genialidade, descobriu que o ego se forma pelas relações primárias. Eu sou junguiano e sou um grande admirador de Freud, por isso as pessoas ficam desconfiadas (risos).

A maior descoberta de Freud, para mim, diz respeito à formação da identidade, que começa nas identificações primárias que formam o ego. Com Freud, você descobre que essa identidade que cresceu, que casou e escolheu uma profissão optou por esse caminho muito em decorrência das relações primárias do ego.

Agora entra Jung: coordenado pelo arquétipo central, todo o seu potencial é transformar isso num processo compreensivo. A tarefa primordial do ser humano é transformar-se numa pessoa capaz de realizar seu potencial. Essa é a função do arquétipo central. E que se chama processo de individuação.

Freud ficou na infância, nas relações primárias. Então veio Jung e encaminhou as discussões para a Totalidade, que ele chamou de Deus. Só que ele chamou de Deus psicologicamente e descobriu o arquétipo central e a busca de totalidade da personalidade.


Por que ocorre a busca pela fé e por Deus ao longo da história da humanidade?

O jornalista John Freeman fez uma entrevista com Jung, em 1959, para a BBC de Londres e obteve uma resposta surpreendente do psiquiatra. Freeman era materialista e marxista, e perguntou se Jung acreditava em Deus.  Ele respondeu: “Eu não acredito, eu sei”.

O jornalista ficou espantado com essa declaração. O que quer dizer isso? Quer dizer que a pessoa sabe que Deus vem de um arquétipo dentro dele que desenvolveu sua elaboração simbólica e sua individuação e que formou inclusive a sua sombra. Ao buscar o autoconhecimento, ela vai ao encontro desse arquétipo para compreender o sentido da sua vida.

Por isso, a pessoa vive com Deus. Ela sabe quem é Deus. Ela não acredita em um Deus sentado numa nuvem administrando o mundo. É o arquétipo central que projeta a ideia de Deus nas religiões, e, através dos símbolos, a pessoa vive com ele.


Em uma sociedade em que a ciência promete longevidade às pessoas, como lidar com a questão da morte?

Nossa sociedade está cada vez mais próxima da ?doença, pois, com o prolongamento da vida, há o prolongamento da velhice e o aumento da doença. A criança descobre a morte. Ela vê o avô que morre, ela descobre a morte. A morte é um arquétipo, mas o ego não sabia de sua existência. Quando o conhece, a criança deprime.

Fica abatida, porque ama seu pai e sua mãe e descobre que eles vão um dia morrer. Mas ela tem tanto medo disso que nem pronuncia o nome da morte. O arquétipo da vida funciona com o arquétipo da morte. Eles interagem nas transformações.

A depressão é a entrada na morte, no sofrimento, e no mal, que dentro do mito é o inferno. Por isso a depressão é uma função ética. É o momento em que o indivíduo vai examinar o que ele está fazendo de errado com sua vida e vai mudar. Toda patologia humana está na sombra.

Ela não é destituída de simbologia. Quem fez a depressão ser exclusivamente patológica foram as multinacionais farmacêuticas. É preciso medicar a depressão patológica sem esquecer a depressão normal que está junto com ela e nos faz confrontar nossa sombra.


Na sociedade contemporânea, tudo é transformado em patologia. E há remédio para os menores males. Esse modelo de sociedade quer nos transformar em doentes?

A depressão foi considerada somente anormal devido à sociedade de consumo, pois vive-se no frenesi da alegria, das festas e das compras. Até mesmo muitos médicos consideram a depressão exclusivamente como doença, pois não foram formados para compreender a psicologia das emoções e os sintomas como símbolos do sofrimento humano.

Estamos descobrindo que há uma epidemia de depressão no mundo e muitos médicos decidem que todos têm que tomar um comprimido. Mas a depressão é uma função estruturante ética e, quando não é seguida, ela se torna destrutiva e, aí sim, patológica. A pessoa pode se tornar, eticamente, um autômato. Vive-se para o prazer, nunca se deprime, e não se vê a sombra.

O que a pessoa faz com a sombra que não quer ver? Projeta a maldade nos outros. A psiquiatria moderna tende a medicar excessivamente e rotular a depressão como um mal e com isso favorece a indústria do consumo – que quer todos felizes. Só que o controle exacerbado do sofrimento via pílulas encobre a percepção da sombra. E a sombra da sociedade de consumo é inclusive a alienação ética.

Estamos formando junto com a negação da depressão uma alienação ética, em que as pessoas não se deprimem, e não veem o mal que estamos causando ao planeta, pondo em perigo a nossa própria sobrevivência.


Seria importante termos consciência das nossas dores? O filósofo Friedrich Nietzsche dizia que é importante manter a memória da queda...

Perfeitamente. Nietzsche tinha a dimensão da supraconsciência. De que o ser humano é ao mesmo tempo luz e sombra. Então, cuidado: quando você achar que é o dono da bola e sabe tudo de que seu filho precisa, preste atenção! Pois você estará esquecendo a existência da sombra. Só que a sombra sai por bem ou por mal.

Tudo o que está na psique sai. Sai pela projeção no mundo. Se eu não vejo o que há de errado em mim, e o projeto no mundo, sem o querer, estarei propagando o mal.

O avanço das tecnologias da comunicação tem feito as pessoas buscarem mais exposição. Como o senhor enxerga esse fenômeno?

O padre jesuíta e filósofo francês Pierre Teilhard de Chardin predisse que a tecnologia um dia construiria um sistema de comunicação que uniria o planeta de tal forma que, abaixo da atmosfera, existiria uma camada inteligente que seria a noosfera, a camada do espírito e da lucidez. Acho que sua profecia se realizou com a Internet.

Ainda que, como todas as grandes descobertas, ela também possa ser usada para o mal, a possibilidade ?de as pessoas se comunicarem além das fronteiras, com suas ideias e buscas afetivas, ultrapassou barreiras que separavam as distâncias humanas, de uma forma praticamente milagrosa.

A tecnologia da informação e da comunhão existencial ampliou a consciência planetária de tal forma que, hoje, podemos exercer de maneira irrestrita a ânsia de conhecimento dos outros que trazemos dentro de nós.


A luta pelo poder e pela riqueza é regida apenas pelo arquétipo patriarcal?

Os arquétipos estão presentes e eles interagem. Se olharmos para a História, o grande ideal burguês era a liberdade oriunda do Iluminismo. Só que, aos poucos, o arquétipo patriarcal subverteu esses valores e implantou novamente a autocracia.

A sociedade alardeia a democracia e a liberdade, dentro da alteridade, mas o capital é controlado por poucos. Para onde vão a democracia e a alteridade quando alguém quer se candidatar às eleições? Mas para tanto é preciso desembolsar muitos milhões de dólares para financiar uma campanha eleitoral.

Acabou a democracia porque o poder, representado pelo arquétipo patriarcal, elimina a liberdade representativa. A grande luta da modernidade configura-se entre o arquétipo patriarcal e o arquétipo da alteridade, na qual o poder econômico tem um papel central.


Que papel o senhor tem no desenvolvimento das ideias de Jung na América Latina?

Minha criatividade foi sempre dirigida para reunir a psicanálise e a psicologia analítica dentro de uma moldura arquetípica, na qual os símbolos da normalidade e da patologia (sombra) são compreendidos dentro do processo de individuação.

Reuni meus artigos e palestras nos livros Psicologia Simbólica Junguiana e Construção Amorosa do Saber – O Fundamento e a Finalidade da Pedagogia Simbólica Junguiana. Neles, procurei mostrar que os símbolos formam a identidade do ego e da consciência, sempre coordenados por arquétipos que operam à volta do arquétipo central do self. Minha principal contribuição foi conceituar o arquétipo da alteridade, como o arquétipo do amor, da criatividade artística, científica e do socialismo democrático.


“Freeman [o jornalista John Freeman] era materialista e marxista, e perguntou se Jung acreditava em Deus. Ele respondeu: ‘Eu não acredito, eu sei’”


“A tecnologia da informação e da comunhão existencial ampliou a consciência planetária de tal forma que, hoje, podemos exercer de maneira irrestrita a ânsia de conhecimento dos outros que trazemos dentro de nós”


“[...] a depressão é uma função ética. É o momento em que o indivíduo vai examinar o que ele está fazendo de errado com sua vida e vai mudar”


“A grande luta da modernidade configura-se entre o arquétipo patriarcal e o arquétipo da alteridade, na qual o poder econômico tem um papel central”