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Poesia das imagens

O fotógrafo Emidio Luisi e o jornalista e crítico teatral Sebastião Milaré são observadores privilegiados da obra de um dos mais importantes encenadores contemporâneos. Milaré acompanha profissionalmente as peças de Antunes Filho desde Peer Gynt, de 1971, e é autor de três livros sobre seu trabalho: Antunes Filho e a Dimensão Utópica (Perspectiva, 1994), Hierofania (Edições Sesc SP, 2010) e o recém-lançado pelas Edições Sesc SP, em parceria com Luisi, Antunes Filho, Poeta da Cena (veja boxe Cenas de palco).

Já o encontro de Luisi com o diretor é marcado pelo acaso. “Fiz uma exposição chamada Palco [1981] no MIS [Museu da Imagem e do Som], que tinha fotos de Macunaíma e de O Eterno Retorno, que fotografei para uma amiga que fazia parte do elenco” diz Luisi. “O ator Arciso Andreoni [que trabalhava com o diretor] acabou indo ver a exposição e resolveu me apresentar para o Antunes.” A partir daí, o fotógrafo passou a integrar o dia a dia do então Grupo de Teatro Macunaíma, tendo acesso livre aos ensaios e carta branca para fotografar os espetáculos. 

Ambos veem Macunaíma (1978), adaptação teatral do livro homônimo do escritor Mário de Andrade, como um divisor de águas na obra do encenador. A peça, que projetou o diretor internacionalmente, é apontada por teóricos como uma das mais significativas obras teatrais do século 20.

“Nas peças anteriores, os cenários e figurinos eram de grandes produções, já em Macunaíma ele usa elementos do cotidiano, é uma ruptura total com o teatrão”, afirma Luisi. O conteúdo estético vigoroso do espetáculo foi resultado de um processo criativo desenvolvido no curso de interpretação criado por Antunes, que deu origem ao Centro de Pesquisa Teatral – CPT/Sesc.

Os integrantes do elenco estavam, ao mesmo tempo, aprendendo técnicas de atuação e trabalhando na adaptação da obra, dinâmica que se incorporou ao método do diretor. Macunaíma inaugura também outra característica importante do trabalho de Antunes que consiste no processo de criação integrada entre os atores e as outras áreas da montagem. “Eles [cenógrafo e figurinista] estavam completamente envolvidos no espetáculo como um todo e não só fazendo o cenário ou o figurino que servisse para uma ideia, participavam organicamente do trabalho”, afirma Milaré.

O exagero de traços do cineasta italiano Federico Fellini (1920-1993) e o quadro Les Demoiselles d’Avignon, de Picasso, estão entre as referências estéticas de Macunaíma. “O Antunes é muito ligado às artes plásticas e ao cinema, por isso a concepção visual dos espetáculos está sempre relacionada a uma ou várias escolas que ele junta e sobrepõe”, analisa Milaré.

Segundo o crítico, não se nota no trabalho do encenador uma predileção por determinada linha estética, as referências vão do expressionismo de Paraíso Zona Norte (1989) à pop art em A Falecida Vapt Vupt (2009). Luisi aponta o impacto da descoberta do dançarino japonês Kazuo Ohno (1906-2010), um dos criadores do butô, na estética das peças de Antunes. “O encontro de Antunes com Kazuo mudou a maneira dele de dirigir o ator, isso aparece principalmente no gestual de Paraíso Zona Norte”, diz. A paleta de cores também varia de acordo com o espetáculo. “Se em Macunaíma e Gilgamesh havia uma exorbitância de cores, Paraíso Zona Norte era praticamente em preto e branco”, diz Milaré.

A parceria de Antunes com o cenógrafo José Carlos Serroni, que coordenou de 1987 a 1997 o Núcleo de Pesquisa e Cenografia do CPT/Sesc, traz outro elemento marcante para as montagens que é a noção de economia do espaço cênico. Isso significa que a cenografia é composta apenas de elementos extremamente significativos e com objetivos muito claros dentro da ação dramática, não havendo espaço para itens decorativos. “Em muitos espetáculos ele dispensa completamente a cenografia, usando apenas alguns objetos para trabalhar a cenografia com o corpo dos atores e com a iluminação”, afirma Milaré.

Cenas de palco

Livro revisita 30 anos da obra de um dos maiores diretores teatrais brasileiros em atividade

No início de dezembro, as Edições Sesc SP lançaram, no Sesc Consolação, Antunes Filho, Poeta da Cena, publicação que reúne imagens da trajetória do diretor feitas por Emidio Luisi e texto de Sebastião Milaré. O evento também marca a abertura de exposição homônima que exibe parte das fotos dos espetáculos do CPT/Sesc contidas no livro, além de cartazes originais das peças.

Captar em imagens as características da obra do encenador foi um dos desafios do trabalho, segundo Luisi. “Tentei fazer as fotos sem muito rebuscamento, buscando pegar um pouco deste espírito dele da limpeza”, diz. “A maioria das imagens não tem muitos elementos, e, mesmo nas que têm, o foco é o ator, seu gestual e expressões faciais, muito por influência da metodologia do Antunes.”

A escolha do preto e branco também tem o objetivo de ser fiel ao estilo do diretor. “O Luigi Mamprin [1921-1995, fotógrafo italiano] dizia que a vida é colorida, mas a realidade é em preto e branco e acho que o Antunes trabalha com a realidade, com o íntimo do homem, talvez isso justifique a minha escolha, além da maior dramaticidade que o preto e branco dá”, afirma.

A publicação retrata cenas dos espetáculos produzidos nas últimas três décadas, a partir de Macunaíma, de 1978, até Policarpo Quaresma, de 2010, além de imagens do diretor e dos atores nos bastidores. Das 1.200 fotos que Luisi reuniu para começar a edição, 200 foram selecionadas para compor o livro. O nome de Milaré para a elaboração do texto foi sugerido pelo próprio Antunes, quando Luisi apresentou a ideia do projeto.

“No Hierofania havia um ponto de vista mais teórico em que eu procurava entender o desenvolvimento da técnica interpretativa; neste livro eu passei o enfoque para a questão estética”, afirma o crítico. Além da análise das peças, o texto de Milaré mostra como a trajetória do diretor se mistura a momentos marcantes da história do teatro brasileiro, como o surgimento e consolidação de importantes companhias que revolucionaram a cena nacional, como o Teatro de Arena e o Oficina, além das primeiras criações influenciadas pelas teorias do diretor, ator e teórico russo Constantin Stanislavski (1863-1938) e do poeta, dramaturgo e diretor alemão Bertolt Brecht (1898-1956).

Em 1986, Raul Cortez vive o protagonista de A Hora e a Vez de Augusto Matraga, adaptação teatral de um dos contos de Sagarana, de Guimarães Rosa.