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Rumos literários

Sendo o Brasil um país marcado pela diversidade cultural, é natural que as linguagens artísticas reflitam essa pluralidade de pensamentos e sotaques. É o que ocorre também na literatura contemporânea brasileira. No entanto, livros recentes compartilham tendências estéticas e temáticas.

Por exemplo, um dos caminhos adotados pela prosa de ficção é a revisão crítica de personalidades históricas e de grupos sociais por meio do experimentalismo. Na poesia, percebem-se apostas nas expressões não discursivas, imagéticas, na atualização da contracultura e em novas vertentes do surrealismo. Em artigos inéditos, o crítico e professor Fábio Lucas e o poeta e tradutor Claudio Willer destacam o que há de mais estimulante na produção literária atual e analisam obras de novos autores.

Poesia brasileira: a boa safra de 2010-2011

por Claudio Willer

Terão os poetas contemporâneos brasileiros enlouquecido? Entrado em pânico? Em irrefreáveis surtos visionários?
É a impressão que se tem ao ler versos como estes, do recente Uma Cerveja no Dilúvio (7 Letras, 2011), de um poeta do Rio de Janeiro, Afonso Henriques Neto:

há um incêndio a lavrar pela noite
lambendo as páginas da agonia
verbo carbonizado nos cornos do apocalipse
nas cenas de uma bíblia enlouquecida
lábios por onde a poesia
vomitara lascas de labaredas
árduas centelhas do mito
evangelhos soterrados sob negros estampidos
relâmpagos solvidos em rochedos de neblina

Veemente anúncio de um fim do mundo em tom, ritmo e imagens que lembram Jorge de Lima.
Encontra eco em outro lançamento recente, Poemas Perversos (Pantemporâneo, 2011), de Celso de Alencar, paraense radicado em São Paulo:

Devolvamos o rio
Devolvamos tudo aquilo que lhe pertence
[...]
Devolvamos a morte estremecente
e, além da morte,
o cemitério viajante e afundado.
Devolvamos tudo, inclusive o leito experimentado
que acolhe a vastidão de nomes inteiros
e a vida com suas mamas profundamente desfiguradas.
Devolvamos o rio.

Afonso Henriques Neto e Celso de Alencar são poetas maduros, que estrearam, respectivamente, na década de 1960 e 1970. Seus lançamentos estão entre os mais importantes do biênio. Outros mais jovens exacerbam essa dicção através de imagens, de modo não discursivo. Proclamam seus apocalipses pessoais (no duplo sentido da expressão apocalipse, como fim de mundo e revelação).

Um deles, Chiu Yi Chih, de São Paulo, com Naufrágios (Multifoco, 2011):

inclino-me áspero pinheiro / nos ecos do Amargo
a rachadura é dourada / flor que desafeiçoa
nada nos assegura neste assombro de pássaros.
sinistra morada, esta que nos lança à desaparição.
irreparável símbolo, meu rosto: planeta fora do seu berço

Faz par com o vigor de Augusto de Guimaraens Cavalcanti, do Rio de Janeiro, em Os Tigres Cravaram as Garras no Horizonte (Editora Circuito, 2010): tropicália exacerbada, contracultura atualizada por um poeta jovem, releitura do melhor da beat, surrealismo hoje.

Querem mais imagens poéticas? Mais expressões não discursivas? Novos exemplos de poesia onírica? Que tal José Geraldo Neres, do ABC paulista, com sua prosa poética em Olhos de Barro (Multifoco, 2010): “Água e silêncio. Dedos vazios mergulham à procura dos peixes outrora semeados. Nem girassóis, nem milagres e a carne das palavras. Dou ao tempo outro cardume”. Texto onírico, regido pelo deslocamento.

A seu lado – lançaram juntos – Edson Bueno de Camargo em Cabalísticos, enunciando uma poética e citando Ginsberg:

o poeta é sacerdote
da própria religião
[...]
Rimbaud foi
bruxo a seu tempo
usou a extinção de sua quintessência
e fez poesia além da palavra

A destacar, também, uma obra coletiva fio, fenda, falésia (edição das autoras, Proac-São Paulo) de Érica Zíngano, Renata Huber e Roberta Ferraz, que acabara de lançar lacrimatórios, enócoas (Oficina Raquel, 2009). Comparecem com uma apoteose da fusão de gêneros, da escrita em todas as direções e possibilidades, mas sempre bem resolvidas, com um padrão consistente nessa diversidade: livro que não deveria ser apenas lido, porém estudado e carinhosamente decifrado.

As novas possibilidades da edição – do hipertexto em papel de Érica, Renata e Roberta, passando pelos objetos mais estranhos da produção contemporânea, propositadamente confundindo tudo, à leveza digital de Elizabeth Lorenzotti: a experiente jornalista e poeta estreante mostra como o macrocosmo está evidentemente presente no microcosmo (desde que se saiba ver) com As Dez Mil Coisas (Amazon, 2011), disponível só em e-book.

Analogia coexiste harmonicamente com ironia em Livro Ruído (Eucleia, 2011), de Davi Araujo, paulista prolífico que encontrou editor em Portugal e escreve sobre “Adeus a deus” e “O teatro e meu duplo”.

Poesia se faz no Brasil todo. Josoaldo Lima Rego já foi chamado por mim de “maranhense cosmopolita” por ver “Uma Nadja, sorrateira pelos becos” e proclamar que “é preciso sonhar a anistia dos manicômios” em Paisagens Possíveis (7 Letras, 2010). A propósito de maranhenses cosmopolitas, além de literariamente elegantes, Samarone Marinho, com Atrás da Vidraça (7 Letras, 2011), incluindo a inquietante série intitulada “(imemoriáveis aleijões beckettianos sussurrados da janela do quarto)”.

São exemplos. Haveria mais. Mineiros alquimistas, místicos de elevada dicção, como Andityas Soares de Moura, com Aurora Consurgens (7 Letras, 2010), e Abílio Terra, com Numa Floresta de Símbolos (Alcance, 2010). Mostras de que o romantismo é contemporâneo, em O Pó das Palavras (Ponteio, 2011), do carioca Claufe Rodrigues, experiente difusor e divulgador de poesia.

A safra de poesia de 2010-2011 foi vigorosa. Cabe perguntar se a crítica se deu conta. Infelizmente, à exceção de uma bela resenha de Moacir Amancio (outro poeta extraordinário) tratando de Poemas Perversos, de Celso de Alencar (publicada no suplemento Sabático de O Estado de S. Paulo), nada disso foi comentado, ou quase nada – nossos críticos continuam preferindo os poetas inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bem-comportados.

E continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que se passa ao seu redor. Uma Cerveja no Dilúvio, de um poeta da qualidade e importância de Afonso Henriques Neto, ainda não ter recebido nenhuma resenha importante em órgãos da grande imprensa – assim pagando o preço por ser avesso ao mundanismo literário – é admissão de alheamento geral.

Talvez tão importante quanto as boas edições em livro seja a ampliação dos espaços públicos, das chances de poetas se mostrarem ao vivo e se comunicarem com leitores efetivos ou potenciais. Em Belo Horizonte, uma programação semanal e já tradicional. No Rio de Janeiro, aquelas récitas, proliferando há décadas.

Em São Paulo, além da importante função da Casa das Rosas como polo irradiador, graças ao esforço de Frederico Barbosa e colaboradores, estimulando novos saraus (uns 40 por mês na cidade toda, ao que consta), há programação em unidades do Sesc, em bares e casas noturnas, no refinado Lugar Pantemporâneo. E um novo e importante espaço institucional para a poesia, com a abertura da programação de leituras e palestras no Centro Cultural São Paulo, coordenado por Claudio Daniel, também poeta de qualidade.

Caberia mencionar alguns bons mecanismos de subvenção, como o Programa de Ação Cultural (Proac) em São Paulo, compensando o preconceito de alguns editores e muitos livreiros. Existem, também, premiações inteligentes. Precisaria, ainda, falar das revistas que publicam poesia; da continuidade de Coyote, do reaparecimento de Babel, entre outras. E do que circula no meio digital. Mas isso demandaria outra matéria. Importa registrar que só não repara na boa poesia contemporânea brasileira quem não quer; quem sofrer de total inaptidão para o gênero.

“Nossos críticos continuam preferindo os poetas inteligentes: aqueles racionais, precisos, rarefeitos e bem comportados. E continuam a lamentar a ausência de novos poetas, sem atentar para o que se passa ao seu redor”

Claudio Willer é poeta, ensaísta, tradutor e autor, entre outros livros, de Um Obscuro Encanto – Gnose, Gnosticismo e Poesia (Civilização Brasileira, 2010) e Geração Beat (L&PM Editores, 2009).

 

Marcos atuais da ficção brasileira

por Fábio Lucas

Se considerarmos que a Literatura carrega consigo a atemporalidade, desde que, a cada período, cada leitor realiza a sua leitura em conformidade com as expectativas da época e com o seu repertório emocional e cultural, podemos admitir que, na variada e descentralizada produção brasileira, inserida no horizonte Ocidental, apresentam-se simultaneamente sintomas de esgotamento e de iluminações autônomas.

O diagnóstico tendencional vem sendo organizado. A partir do Modernismo, de ampla filiação às vanguardas europeias, sente-se a lenta descontinuidade do foco narrativo. A repentina urbanização no século 20 e a complexidade das relações sociais convidaram os romancistas a propor a orquestração de muitas vozes. John dos Passos e Blaise Cendrars, no eixo Nova York-Paris, ensinaram os primeiros passos da desmontagem da herança psicológica e reflexiva do Romantismo e do seu imediato opositor, o racionalismo documental-historiográfico do Realismo e do Naturalismo.

Tudo isso esteve em crise. O linguajar mostrou-se descuidado, adotou-se o hibridismo idiomático à custa das imposições mercantis e tecnológicas do imperialismo globalizado. Perante o cânone vigente, confundiu-se o avanço tecnológico com a superioridade intelectual. Foi-se cultivando a ordem pela via indireta, em favor do grotesco, que dispensa o olho crítico e a sátira. Daí a ascensão da vulgaridade, confundida com a originalidade. Ergueu-se o falso tributo ao popular, mediante a baixa reflexividade, a hegemonia do trivial, com a proposição da aparência no lugar da essência. Era da imagem, do espetáculo narcíseo.

Dominou como tema a apatia do protagonista ensimesmado, o romance policial como apologia da violência e do poder organizado, a mercancia como a suma ideologia. O best seller passou a definir a qualidade mediante a quantidade.

Mas, aos poucos, tornou-se sensível a lenta mudança de paradigma. Foi-se arquitetando volumosa consciência internacional à margem do grande aparato informativo dos dominadores. Nesse meio movediço, dá-se, no Brasil, grande concentração da consciência criadora na temática de natureza histórica, sem historismo. Não mais como exaltação dos grandes nomes impostos às consciências ingênuas ou como simples mistificação dos atributos dos vitoriosos.

Ressurge, expressivamente, o trabalho criativo em torno de figuras emblemáticas. As eminências históricas, guardadas nos centros preservadores da memória coletiva, são buscadas pelo experimentalismo ficcional, jogando-se luzes humanizadoras sobre as estátuas e os arquivos. Dá-se uma alquimia contemporânea, diante da qual se rebatizam os vultos fabricados pela historiografia ou, como querem alguns, pela mitografia.

O primeiro exemplo que ocorre é o romance de Lúcio Roberto Marzagão, Freud, Sua Longa Viagem Morte Adentro (Belo Horizonte: Ophicina de Arte e Prosa, 2007), fruto de acurado estudo e deleitosa imaginação. A capa reproduz retrato da casa do psicanalista em Londres, quando lá se refugiou, graças aos cuidados da Princesa Marie Bonaparte. O romancista concede à empregada do cientista, Paula Fichth, um belo fluxo de consciência, no qual se transladam trechos dos discursos de Ernest Jones e de Stefan Zweig à beira do túmulo. No dizer de Zweig, “trata-se de apenas uma suave passagem da mortalidade para a imortalidade”. (op. cit., p. 119).

Outra obra de relevo foi a de Jeannette Rozsas, Kafka e a Marca do Corvo (São Paulo: Geração Editorial, 2009), cujo subtítulo é: Romance biográfico sobre a vida e o tempo de Franz Kafka. Segundo Nelson de Oliveira, apresentador do trabalho, kafka em tcheco é corvo. Com efeito, a autora narra a ida de Kafka, em companhia do amigo Max Brod, a Paris. Desejavam ver, na capital francesa, um avião pela primeira vez. Kafka se julgou um azarão, pois chegara ao destino coberto de furúnculos, tendo de voltar. No romance, diz Kafka: “Já está no meu nome. Levo a marca do corvo...” etc., (op. cit., p. 72).

Enfileiro aqui O Pastor das Sombras (Belo Horizonte: Pulsar, 2009), de Luís Giffoni, que romancia a vida de Dom Frei Manuel da Cruz, primeiro arcebispo de Mariana, controvertida personalidade. Viera do Maranhão, submetera-se aos maiores riscos, chegara sob altas festividades, relatadas em célebre texto barroco: Áureo Trono Episcopal, editado em 1749.

O estilo de Luís Giffoni atinge um dos seus mais felizes momentos, tanto na apologética, quanto na ironia crítica, sem descuidar do ambiente diegético, em que despontam conflitos dentro da própria Igreja. O frei Manuel da Cruz foi agente do clero e da nobreza, num cenário de saques, explorações predatórias, arbítrio e violência. No romance de Luís Giffoni tem-se oportuna releitura do passado mineiro, do ouro e do diamante, em circunstâncias que apanham a formulação da subcultura local dentro do quadro brasileiro.

Não apenas as personalidades já consagradas pela História se tornaram matéria de ficção. Grupos sociais também. Agora esperamos apontar o caso de Beatriz de Almeida Magalhães, autora de Caso Oblíquo (Belo Horizonte: Autêntica editora, 2009), em que, a poder de pesquisas, se recolhem panfletos, jornais, anúncios, leis, decretos e avisos, para recompor o nascimento de uma cidade: Belo Horizonte. O romance de BH, sem disfarce nem alusões encomiásticas. Ou com tudo isso mais o olho crítico e demolidor, que observa os disfarces e as ilusões traçadas para esconder as astúcias do poder e do mandonismo.

Não foi necessário articular o discurso acusatório nem emitir denúncias apoiadas na indignação ou na contestação direta. Bastou revisitar os documentos, revigorar os textos extirpados pela Historiografia oficial, alegremente dar ao público o que ficou escondido, guardado sob pudor e cautela. E, conforme fez Beatriz de Almeida Magalhães, conferir ordem narrativa às parcelas.

Os fragmentos falam por si. A História vira estória. Conta-se e relata-se a produção da cidade, com as miríades de falsificações e disfarces com que os donos da verdade ficcionaram a falsa história de BH, a farsa positivista e republicana da nova capital de Minas. O leitor haverá de encontrar, face a face, os usos e costumes de época, a numerosa nomenclatura dos seres e objetos que faziam o cotidiano do final do século 19 e do início do glorioso século 20.

Tem mais: Rui Mourão ficcionou Ouro Preto, antigo e contemporâneo, em Boca de Chafariz (Belo Horizonte: Villa Rica, 1991). No pórtico da obra consta: “Os nomes das personagens deste romance na sua maioria constam do registro civil, mas as ações são imaginárias e as ideias pertencem ao autor”.

A obra original traz dois protagonistas em destaque: Cláudio Manuel da Costa e Aleijadinho. Em outra obra de ficção, Rui Mourão gravou o governo Collor, o pícaro autoritário. Antes de encerrar, é justo que celebremos duas figurações inestimáveis de Machado de Assis.

A primeira se realizou sob inspirado gesto investigativo de Marco Lucchesi, em O Dom do Crime – romance (Rio de Janeiro: Record, 2010). Através de levantamento epocal do escritor-patrono da boa ficção brasileira, Lucchesi localizou um perturbador crime passional que teria ferido a sensibilidade do nosso mestre. Ademais, o golpe homicida fora desfechado pelo ciúme, estado de espírito confluente com a paixão, o sentimento da posse e o medo. O “Dom” do título remete ao romance Dom Casmurro, efeito talvez daquele evento que sacudira a aristocracia carioca e afetara Machado de Assis mergulhado no seu drama particular.

O segundo trabalho não se configura como ficção propriamente, pois guarda profundo perfil de ensaio. Ensaio iluminador da obra O Alienista produzido por Ivan Teixeira: O Altar e o Trono – Dinâmica do Poder em “O Alienista” (São Paulo: Ateliê, 2010). O documento ilustrativo brotou da ampla consulta da revista que se publicou no Rio, destinada às leitoras da Corte. O fim seria divulgar a elegância francesa para as leitoras. Ivan Teixeira, por sua vez, compulsou o acervo de Machado de Assis, colheu as anotações do mestre nos livros de psicologia, levantou minuciosamente o campo diegético. O Machado doente, analista voraz da morbidez do espírito, algo, para o narrador fragilizado, preocupante e ameaçador.

E o Machado de Assis, no quadro racista, puxado por Gobineau e pelos escravagistas? Isso é tema do arguto machadiano Eduardo de Assis Duarte. E a ficção científica? Osmar Pereira Oliva publicou Agosto: a Ficção conta a História (Montes Claros: Ed. Unimontes, 2006), obra em que disseca o romance Agosto, de Rubem Fonseca, célebre pela linguagem da violência somada à pornografia. A fabulação histórica carrega-se de “inferências fictícias”, naquele romance policial.

Fábio Lucas é professor, ensaísta e ficcionista, autor, entre outras obras, de O Poliedro da Crítica (Caliban, 2009), O Núcleo e a Periferia de Machado de Assis (Amarilys, 2009) e Ficções de Guimarães Rosa: Perspectivas (Manole, 2011).
 

“As eminências históricas, guardadas nos centros preservadores da memória coletiva, são buscadas pelo experimentalismo ficcional, jogando-se luzes humanizadoras sobre as estátuas e os arquivos”