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Ruas sem saída para a chuva

por Elisa Almeida França

No Rio de Janeiro, a Praça da Bandeira fica alagada a cada chuva forte, inacreditavelmente, desde 1910. Não é que se trate de um pântano ou que exista algum problema incontornável – essa é apenas uma amostra de como a drenagem urbana é tratada na segunda maior cidade brasileira. No restante do país, a história se repete. No início de 2010, o bairro Jardim Romano, na zona leste de São Paulo, ficou dois meses alagado, após as fortes chuvas que caíram na capital paulista. Até Brasília, bem longe dali, padece desse mal – algo notável, já que a capital federal tem áreas permeáveis relativamente extensas e é bem menos adensada que a maior parte das grandes cidades do Brasil.

Como acontece com qualquer outro tipo de infraestrutura dos centros que crescem desordenadamente, o sistema de drenagem geralmente não é objeto de ampliações que acompanhem o aumento da demanda. Assim, todos sofrem com o problema, causado em primeiro lugar pela maciça impermeabilização da superfície. “Numa condição natural do terreno, o solo permite a infiltração de 95% da água que nele cai”, explica a mestre em engenharia civil Eufrosina Terezinha Leão Carvalho, doutoranda pela Universidade de Brasília (UnB). “Com a impermeabilização, o número se inverte, e o solo absorve apenas 5% da água que recebe. A pavimentação, as construções e a compactação inviabilizam a infiltração.”

Outra característica comum da urbanização acelerada é a retirada da vegetação. “A cobertura vegetal tem como efeito a interceptação de parte da precipitação e a proteção do solo contra a erosão”, diz o pesquisador Carlos Tucci, professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em seu manual Gestão das Inundações Urbanas, de 2005.

Além disso, as áreas verdes regulam o clima e reduzem o efeito “ilha de calor”, que torna as chuvas mais torrenciais. Isso acontece porque, em primeiro lugar, as árvores e outras plantas diminuem a incidência dos raios solares sobre a pavimentação e as edificações, que, sem elas, armazenam calor e esquentam a cidade; além disso, a evapotranspiração (liberação de água no ar pelas folhas) também ameniza as temperaturas. A vegetação contribui ainda para que o solo não fique compactado e, portanto, mantenha-se permeável, e ajuda a reduzir a poluição do ar e o barulho da cidade. Os espaços verdes, em quintais, praças ou parques, garantem adicionalmente a circulação do ar entre as edificações, diluindo poluentes e atenuando, novamente, o calor.

A grande dificuldade em manter áreas permeáveis nas cidades reside na pressão do mercado imobiliário, exercida pelas grandes empresas e também pelos proprietários, desejosos de usar ao máximo seu lote. “Entre outros fatores, isso decorre do alto valor que a terra urbana possui”, explica Maria do Carmo Bezerra, doutora em arquitetura e urbanismo e professora na UnB. Por outro lado, a dispersão da cidade por bairros distantes é mais um vetor que a impermeabiliza. Além disso, dificulta a instalação de melhorias como asfalto, eletricidade e rede de drenagem. “A cidade densa é mais barata e pode ser mais permeável, desde que se adote baixa taxa de ocupação e prédios altos. Dessa forma se atenderia à pressão imobiliária e se manteria a permeabilidade”, diz a professora.

Assim, segundo Maria do Carmo, para solucionar o problema é preciso antes de tudo fazer o planejamento da drenagem urbana, que necessariamente depende de duas variáveis interligadas: o chamado “uso e ocupação” do solo da cidade, que terá consequência direta em seus índices de permeabilidade, e a construção de infraestrutura para dar destino ao volume de chuva que não poderá infiltrar-se no solo. Se o plano diretor local estabelece a existência de praças e jardins, lotes com menores taxas de ocupação e o uso de pavimentos permeáveis, nas calçadas ou na malha viária, as obras de engenharia relacionadas à drenagem resultarão mais eficientes e menos custosas, já que, afirma a professora, “serão apenas as estritamente necessárias para garantir um funcionamento corriqueiro das vias em momentos de grandes chuvas”.

Antiquados

Nos países desenvolvidos, a drenagem urbana já passou por três fases. A primeira, higienista, do início do século 20, propunha a evacuação expressa da água pluvial. O objetivo era que ela levasse consigo as doenças que poderia propagar, por causa do esgoto que também era jogado nos rios. No Brasil, vêm desse conceito os canais tão comuns em algumas cidades, como Santos (SP), Niterói (RJ) ou Fortaleza. “Essa foi a tática adotada até as décadas de 1950 e 1960”, explica Carlos Tucci. “Com o crescimento das cidades, percebeu-se que ela era insustentável, pois transferia o problema para outras pessoas rio abaixo. Além disso, era cara, já que seriam necessários canais cada vez maiores”.

A medida também causa forte impacto ao despachar um grande volume de água, em alta velocidade, para os córregos, rios e áreas próximas, que sofrem erosão e alagamentos. Padecem também o lençol freático e as nascentes urbanas, que, sem a infiltração da chuva no solo, acabam desabastecidos. “Qualquer lago urbano tem problema de recarga”, afirma o engenheiro civil Luiz Géa, da Comissão de Gestão Ambiental do Ministério Público de Goiás. Os reservatórios de água que abastecem a cidade também podem ser afetados. “Embora geralmente estejam localizados em pontos anteriores ao centro urbano [isto é, os rios que os alimentam correm em direção à cidade], nem sempre o município consegue manter os loteamentos afastados das regiões de captação”, explica o especialista.

Na segunda fase, denominada corretiva, os investimentos passaram a ser feitos no tratamento do esgoto e no amortecimento do fluxo de águas pluviais a ser lançado nos rios. Em uma década, os Estados Unidos direcionaram US$ 300 bilhões a essa finalidade.

O conceito em que se apoia a terceira fase surgiu no fim dos anos 1980, quando se passou a falar em drenagem sustentável, que defende maior infiltração para garantir a recarga dos rios.“No Brasil, porém, ainda estamos na primeira fase”, afirma Tucci. Além disso, segundo ele, os projetos ainda são muito fragmentados, quando na verdade deveriam levar em consideração toda a bacia de drenagem para propor uma boa administração das águas pluviais. “Os custos acabam sendo altíssimos e por trás disso existe o interesse das empreiteiras de ganhar mais”, acrescenta.

A canalização, por exemplo, é adotada até hoje, apesar de ser considerada antiquada, uma vez que, como explica Luiz Géa, apenas transfere os problemas para o local onde desemboca. Quem paga a conta é toda a sociedade, dado que o poder público cedo ou tarde tem de tomar providências para retirar pessoas das áreas de risco, remediar erosões ou prevenir o colapso de casas e prédios.

Para evitar esses problemas, o recomendado é lançar em cursos de água somente aquilo que eles têm capacidade para receber, o que pode ser calculado com algumas fórmulas matemáticas. Para alcançar esse objetivo, há inúmeras alternativas. Os “piscinões” de São Paulo são uma das mais comuns. Na verdade, são apenas grandes reservatórios que acumulam a água pluvial, que depois é liberada paulatinamente para a rede de drenagem, por gravidade ou por bombeamento, dependendo do nível em que estejam.

Há no entanto quem os critique, por serem grandes, caros e sujos – acumulam todo o lixo que está nas ruas ou nos rios, que não é pouco, e exigem limpeza regular, para que suas saídas de água não fiquem entupidas, inutilizando o equipamento. A capital paulista tem hoje 19 reservatórios desse tipo e, para se ter uma ideia, de julho a setembro foram retiradas 7 mil toneladas de resíduos somente do piscinão do Bananal, que fica na Brasilândia, na zona norte da cidade.

Outra opção seria a criação de espaços de uso múltiplo, como quadras de esportes ou parquinhos, instalados abaixo do nível da rua, de modo a receber a água quando a rede de drenagem não suportasse a vazão da chuva. Ou ainda valas de infiltração localizadas nas calçadas, que absorvessem a água antes que ela fosse para a rua ou para a rede de drenagem. “Podem ser instalados também poços de detenção e infiltração nas praças”, diz Luiz Géa. “A ideia principal, na verdade, é tentar aplicar soluções pontuais de baixo custo. O somatório delas teria efeito maior que o dos piscinões.”

Curso pouco natural

Há nos municípios brasileiros muitos córregos e rios escondidos debaixo do concreto. No Rio de Janeiro, próximo a sua residência, no bairro Cosme Velho, o engenheiro Flávio César Borba Mascarenhas, professor responsável pelo Laboratório de Hidráulica Computacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), vê passar o rio Carioca. Ilustre como fonte de abastecimento para os colonizadores e por ter sido lugar de banhos da família real portuguesa no século 19, o caudal, no entanto, some debaixo do asfalto mais adiante.

“A cidade tem muitos rios assim”, conta o professor. “Na zona norte, próximo ao rio Maracanã, os cursos de água cobertos geram transtornos terríveis.” Segundo ele, porém, os bairros já se estabeleceram e não seria mais possível recuperar essas áreas. “A solução ali me parece que são as contenções de cheias. Fizemos um estudo e propusemos a construção de vários pequenos reservatórios, que, infelizmente, no fim das contas, não serão feitos.”

Em São Paulo, o projeto Rios e Ruas contabilizou mais de 300 cursos de água sob o concreto. Por isso, quando cai uma chuva forte, é principalmente nas áreas por onde eles passam que a água se acumula, provocando transtornos na cidade.

Já as margens dos cursos de água não encobertos são ocupadas indevidamente, oferecendo riscos a seus habitantes, em especial quando se trata de várzeas – áreas que naturalmente são ocupadas pelo transbordamento dos rios. As matas ciliares, por sua vez, cuja função seria conter o assoreamento e garantir que a calha do rio seguisse comportando o mesmo volume de água, são retiradas, aumentando as ocorrências de alagamento.

Mesmo na cidade, as margens dos rios são consideradas áreas de preservação permanente (APPs) pelo Código Florestal (tanto a lei vigente como o texto que deve modificá-la, ainda em discussão no Congresso Nacional no fechamento desta reportagem). Isso significa que é totalmente vetado ocupá-las. Porém, segundo a arquiteta e urbanista Maria do Carmo, da UnB, não é possível tratar com os mesmos instrumentos o campo e a cidade. “A falta de definição de um uso urbano compatível com a preservação ambiental, aliada à opção pela intocabilidade dessas áreas, levou a sua ocupação pelas mais impactantes e precárias formas de urbanização”, afirma.

Responsabilidades

Os prejuízos causados pelas chuvas se acumulam nos congestionamentos, nas casas alagadas e nos deslizamentos de morros, assim como na transmissão de doenças, como a leptospirose, resultantes da mistura da água da chuva com o esgoto, a urina de ratos e o lixo, uma combinação perigosa. Porém, o que pouco se estuda no Brasil é a qualidade da água pluvial depois que ela lava a cidade, levando consigo partículas oriundas da degradação do asfalto, dos motores dos veículos e do derramamento de substâncias químicas nas indústrias, além de lixo, muito lixo, que não só entope a rede de drenagem como contamina os rios.

Em qualquer cidade, portanto, o planejamento da drenagem urbana está diretamente relacionado ao gerenciamento de resíduos sólidos. Estes, por sua vez, requerem coleta e varrição eficientes, assim como a participação da população em sua destinação. Por um lado, é clara a responsabilidade do poder público no que respeita a soluções para a drenagem, seja por meio de fornecimento e manutenção de infraestrutura adequada, seja pela proposição de leis e seu cumprimento. Por outro, cabe a cada um dos cidadãos manter as ruas limpas – a opinião dos especialistas consultados pela reportagem é que, embora a culpa não seja toda deles, quando dispõem resíduos inadequadamente estão agravando a situação. Pior é quando a própria prefeitura, por meio das empresas que contrata, varre o lixo para dentro das bocas de lobo, como revelou a CPI das Enchentes da Câmara Municipal de São Paulo, em dezembro de 2010.

No âmbito legal, a professora Maria do Carmo acredita que houve avanços. Com a Lei Nacional de Saneamento Básico (11.445/2007), tornou-se obrigatória a elaboração de planos de drenagem municipais. O problema é que, por enquanto, a exigência não foi muito adiante, e são poucas as cidades que contam com esse instrumento.

O Ministério das Cidades chegou a encomendar o projeto de um plano nacional de drenagem ao pesquisador Carlos Tucci, que em 2005 entregou-o à pasta, mas não se falou mais nisso. Até o fechamento desta reportagem, o ministério não havia respondido à solicitação de informações sobre o assunto. Segundo Tucci, a existência de um plano nacional teria o mérito de cobrir uma lacuna aberta pela falta de especialistas no assunto, na maioria dos 5.565 municípios brasileiros.

Em Goiânia, a Secretaria Municipal de Planejamento e Urbanismo (Seplam) discute a elaboração de um projeto de lei de drenagem desde abril do ano passado, com a previsão de apresentá-lo à Câmara de Vereadores no início deste ano. A intenção, ao menos na fase de diálogo com órgãos como o Ministério Público do estado, era propor que todo novo empreendimento na cidade se tornasse responsável por 100% da água pluvial que lhe correspondesse – não mandando nada para a rede pública ou, pelo menos, garantindo uma vazão igual à de antes de sua construção.

“A drenagem urbana começa no lote de cada um, e todo empreendedor deve dar conta do seu”, diz Luiz Géa, que tem participado das discussões. “O ônus não deve ser transferido para a sociedade.” Porto Alegre, uma das raras cidades dotadas de um plano diretor de drenagem, observa esse princípio.

Respostas

Num lote, diferentes estruturas podem contribuir para que a água se infiltre no solo ou para que só seja lançada na rede pública após o pico das chuvas. No subsolo, é possível instalar poços ou valas de infiltração, que recebam a água e a eliminem gradualmente por meio de pequenos orifícios. Poços de contenção também podem ser colocados no terreno, tanto debaixo do solo quanto sobre a superfície. Para uma casa construída num lote de 300 metros quadrados, seu custo giraria em torno de R$ 700.

Para decidir qual sistema adotar, é necessário consultar um especialista, que avaliará, por exemplo, se o terreno suporta a infiltração ou se ela pode representar algum tipo de risco para a estrutura da construção. De acordo com a solução escolhida, a água captada também pode ser usada para fins não potáveis, como a lavagem do carro ou da calçada, a descarga no banheiro ou a irrigação do jardim.

Os telhados verdes, ideia que já se tornou realidade em países como Austrália e Alemanha, são construídos de forma a comportar terra e plantas. Segundo estimativa do professor Flávio Mascarenhas, da UFRJ, eles podem absorver entre 30% e 40% da água que cai em um terreno, dependendo de sua extensão e da área do telhado.

As calçadas também podem dar sua parcela de contribuição. De concreto ou asfalto porosos, os pavimentos permeáveis são bem parecidos com os tradicionais, com a diferença de que entre os produtos misturados em sua composição não entra o chamado “material fino”. Outra opção são os blocos intertravados, que chegam a garantir cerca de 40% de permeabilidade. É possível também usar esses revestimentos em ruas, desde que tenham pouco tráfego, pois do contrário eles podem perder sua capacidade de ajudar a escoar a água.

Algumas cidades pelo mundo também têm adotado os chamados parques lineares, projetos que recuperam fundos de vale e têm enorme função de drenagem. A capital sul-coreana, Seul, instalou vários deles em 2009 à beira do rio Han, após despoluí-lo durante 20 anos. Já no município de São Paulo, a criação dessas unidades faz parte do Programa de Recuperação Ambiental dos Cursos d’Água. Belo Horizonte também tem projetado parques lineares para implantá-los ao longo de córregos não retificados – embora haja dificuldade para desocupar as margens já povoadas dos leitos.