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200 anos de samba

Arte: Werner Schulz
Arte: Werner Schulz

A origem do samba é rodeada por uma série de histórias – outro tanto de versões delas –, ritmos ancestrais se misturando e figuras-chave do surgimento da música popular urbana brasileira, sobretudo, em São Paulo, no Rio de Janeiro e na Bahia. Fazem parte dessa equação o célebre quintal da Tia Ciata – “a baiana mais conhecida na história do samba”, conforme escreveu André Diniz em seu Almanaque do Samba (Zahar, 2006); as rodas do mestre Hilário Jovino, frequentadas por nomes como Heitor dos Prazeres; e o primeiro samba da história a ser registrado, Pelo Telefone (em 1916, por Ernesto dos Santos, o Donga).

A composição seria gravada um ano depois, por Bahiano, na Casa Edison, no Rio de Janeiro, sob protestos de que Donga teria se “apropriado de uma criação coletiva cantada na casa da Tia Ciata”, relata Diniz. O fato é que Pelo Telefone entrou para a história como precursor do gênero. “A partir daí, o termo [samba] ganhou popularidade”, escreve o autor. “E, em apenas algumas décadas, passaria a ser identificado como símbolo da musicalidade brasileira.”

Nascem os mestres

O eixo Rio-São Paulo acabou se tornando o difusor dessa manifestação. “O samba do Rio de Janeiro impregnou o Brasil inteiro”, atesta o músico e compositor Eduardo Gudin. “A ideia de samba de Ismael Silva, Ari Barroso e Dalva de Oliveira – que tocavam no rádio – acabou se espalhando.” No entanto, Gudin ressalta que não há como negar os ótimos compositores paulistas que têm lugar marcado na história nacional do samba. “Tem Vadico, que compôs muitas músicas com Noel; Garoto, um marco da música brasileira moderna; Germano Mathias, que faz um samba de malandro paulista e é um dos artistas mais bem resolvidos deste país.”

Enquanto tudo isso acontecia, duas figuras atravessavam a adolescência, a juventude e entravam na idade adulta envolvidos por todo esse batuque. E mesmo sem se terem encontrado, eles estavam destinados a aparecem juntos na resposta clássica ao pedido de citar alguns dos grandes mestres do samba. No bairro de Vila Isabel, cidade do Rio de Janeiro, veio ao mundo Noel de Medeiros Rosa, em 1910; e, em Valinhos, interior de São Paulo, nasceu, no mesmo ano, João Rubinato, ou melhor: Adoniran Barbosa.

O menino da Vila

O primeiro menino era de classe média. A mesma que, no início dos anos de 1930, quando Noel começou, não fazia samba, segundo o autor e pesquisador musical Sergio Cabral. “Quando Noel Rosa começou, o samba estava nos lugares mais ?populares, estava nos bairros mais pobres, nas favelas. E ele se apaixonou exatamente por esse samba tido antigamente como samba de morro”, informa.

O rapaz de organismo frágil e espírito forte encontrou seu canto junto à vigorosa vida boêmia por onde perambulavam os talentos daquele ritmo marginalizado. Foi então que, conforme define Cabral, “aconteceu uma coisa fantástica”: o jovem branco pegou o que se fazia nos morros pelos compositores populares, a grande maioria negra – e acrescentou letras. “Aí já renovando o que havia de letra na música popular brasileira”, segue o especialista. “O que ele fez foi rigorosamente novo.”

Embora a família quisesse que Noel fosse médico ou advogado – destino de todo rapaz bem nascido que se prezasse, o batuque era alto, e o rapaz acabou mesmo se entregando aos prazeres notívagos. E a Vila Isabel era pura boemia. Em 1929, ele, Almirante e João de Barro, o Braguinha, formaram o Bando de Tangarás. O grupo tocava basicamente cantigas de inspiração nordestina, em alta na época.

“Ele [Noel] fazia também música de sabor muito ?interiorano, suas primeiras gravações são assim”, afirma Cabral. “As primeiras canções que ele gravou, Festa no Céu e Minha Viola, são desse tipo.” E o pesquisador ainda conta uma curiosidade: quando Noel mostrou a Almirante seu primeiro samba, o líder do Bando estranhou. “Ele próprio contou que, na época, não sabia que Noel Rosa fazia samba”, revela Cabral.

Mas ele fazia. E muito bem. Segundo Cabral, mais do que compor sambas, Noel Rosa “renovou” o gênero. “Tanto que Com Que Roupa?, de 1931, foi considerada uma música revolucionária, exatamente pela capacidade que ele tinha de brincar com o ritmo e com a poesia, com o verso, com a rima. Isso impressionou muita gente”, declara.

O rapaz franzino e boa praça não viveu muito. Morreu aos 27 anos – e de carreira contam-se oficialmente oito anos, de 1929 a 1937. Mas, mesmo sem ter sequer completado a terceira década de vida, o sambista deixou cerca de 230 canções, gravadas pelos mais consagrados cantores de sua época.

Além da sambista Aracy de Almeida, sua intérprete favorita, a lista inclui Silvio Caldas, Francisco Alves, Mário Reis, Carmen Miranda, Aurora Miranda, Marília Baptista, Elizeth Cardoso, João Nogueira e Jamelão. Gravações mais recentes, realizadas na última década, ficaram a cargo de Vânia Bastos, Ná Ozzetti, Johnny Alf e Gilberto Gil, que emprestou a voz à famosa Com Que Roupa?

Cronista urbano

Durante as mesmas décadas de 1920 e 1930, São Paulo vivia as primeiras transformações urbanas que viriam fazer dela a maior cidade do país. Mas não sem um preço alto. A industrialização trouxe consigo o desequilíbrio social crônico que suas ruas ostentam até hoje. Segundo escreve André Diniz em seu Almanaque do Samba, esse cenário fez surgir o “personagem urbano do lúmpen – trabalhador sem consciência de classe, residente em malocas e com o linguajar caipira-ítalo-paulistano”, que, ainda na análise de Diniz, “Adoniran retratou como ninguém”.

No entanto, consciência era coisa que não faltava ao sambista, que, na década de 1950, quando começou a se tornar conhecido, retratava de modo agudo as mudanças na cidade. “A história da música Saudosa Maloca simboliza o olhar do cronista”, escreve Diniz a propósito do sucesso de Adoniran sobre o drama de um grupo de moradores que vê seu lar dar lugar às implacáveis máquinas do progresso. “Adoniran percebia (...) a perda de memória coletiva dos antigos espaços de sociabilidade (...).”

O músico e compositor Eduardo Gudin, que conheceu Adoniran Barbosa, conta que esse traço de bardo o impressionou desde moleque. “É o que me chama a atenção até hoje: o fio da navalha tragicômico”, define. “Ele é um Charles Chaplin da canção. E isso é muito difícil de fazer, ninguém imitou, ninguém conseguiria. Ela tinha um poder para saber exatamente o que dizer.

Por isso é um gênio, é uma coisa chapliniana mesmo.” Gudin lembra ainda que nos encontros que tinham nos bares ao redor da antiga sede da TV Record, nos anos de 1960, chegou a contar a Adoniran sobre o apelido. “Depois ele passou a repetir: ‘Eu sou o Charles Chaplin do samba’ (risos)”, diz o músico. “Ele era demais. Meu amigo de verdade.”

De acordo com Eduardo Gudin, essa característica de falar do drama sem perder a dose certa de humor passava também para a melodia de suas músicas. “Ele fazia os dois juntos, a melodia e a letra, com essa temática”, diz o músico. “E, por fazer junto, ele conseguia uma melodia que passava essa ideia tragicômica. A letra é triste, mas ao mesmo tempo não é.”

Para o compositor, parte desse toque de gênio vem da própria vivência de Adoniran. Menino criado entre gente humilde e marginalizada, pessoas que construíram São Paulo, mas até hoje não receberam o devido pagamento por isso. “Tem a ver com esse dialeto que ele usa, porque é praticamente um dialeto paulistano, essa mistura com o italiano, com esse português errado do povo mais humilde, algo ligado aos cortiços – não os de hoje, os de antigamente”, analisa Gudin. “O Bixiga [região central de São Paulo] é exatamente o resumo disso. A [escola de samba] Vai Vai, a comunidade italiana, esse tipo de mistura era com ele, ele fazia isso bem.” O mestre paulista, diferentemente do carioca, teve vida longa. Morreu aos 72 anos, em 1982.

Hoje e sempre

No ano em que se comemora o centenário de Adoniran e Noel, vale a pena ressaltar a atualidade de sua música, até hoje lembrada por nomes consagrados e revisitada pelos novos talentos. Um dos exemplos é o CD Adoniran 100 Anos, que a gravadora Lua Music lançou este ano. No registro, 37 artistas interpretam 33 músicas do mestre paulista. Entre outros nomes, estão lá Zélia Duncan, Maria Alcina, Cauby Peixoto, Arnaldo Antunes, Vânia Bastos, Edgard Scandurra, Quinteto Em Preto e Branco e o novato no cenário da MPB e do samba Diogo Poças – que interpretou, num dueto com Verônica Ferriani, Prova de Carinho. “Adoniran é um cara que admiro muito, a obra dele é sensacional”, diz o jovem músico.

“Conheço a música dele desde moleque. Em casa, é obrigação. Junto com as minhas primeiras lições de música já vieram coisas do Adoniran.” Para Diogo, falar do sambista é falar da capital. “Acho que o samba dele não seria o mesmo fora de São Paulo”, arrisca. “Porque ele tem uma alma paulistana, essa mistura do imigrante com o nordestino, com o nativo de São Paulo.”

Já sobre a atualidade de Noel Rosa, é Sergio Cabral quem assina embaixo. “Tem letra dele que não é nem de hoje, é do futuro”, avalia. “E tem também aquele jeito de expor [a letra], de falar. ‘Seu garçom, faça o favor de me trazer depressa uma boa média...’ Isso é hoje. Nada disso ficou velho – a não ser o tema, não se pede mais média.”

Dupla homenagem

Unidades celebram o centenário de Adoniran Barbosa e Noel Rosa com programação especial

Os cem anos dos dois mestres do samba, Adoniran Barbosa e Noel Rosa, ganharam destaque na programação das unidades Pinheiros e Santo André, que apresentaram, respectivamente, o espetáculo de dança Adoniran, do Ballet Stagium, baseado na trajetória do sambista paulista, de 22 a 24 de outubro; e Noel Rosa – O Poeta da Vila e Seus Amores, musical inspirado na vida e na obra do compositor carioca, dias 23 e 24 de outubro.

A coreografia do Stagium, que também comemora os 40 anos da companhia, aborda passagens da vida do sambista. “Adoniran é criação desta trajetória, fundamental para a arte de um país plural, onde muitos sotaques e pronúncias, também pronunciados através da dança, devem ser conjugados sem cessar”, escreveu a especialista Cássia Navas, professora do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), em texto de apresentação do espetáculo. Em cena, o humor divide espaço com as dificuldades do cotidiano por meio dos personagens presentes nas letras de suas músicas. A coreografia de Adoniran é de Décio Otero e a direção teatral, de Marika Gidali.

Já Noel Rosa – O Poeta da Vila e Seus Amores (foto) conta a história do sambista da Vila Isabel em flashback, a partir do leito de morte, retrocedendo para importantes momentos da vida e da carreira. O espetáculo é um mosaico de músicas e cenas do percurso do grande compositor brasileiro. A apresentação foi no teatro do Sesc Santo André e, para aumentar o clima de boteco, parte da plateia foi convidada a sentar-se em mesas no palco. “Outros espaços também foram utilizados pela encenação, havendo circulação dos atores pelas escadas e pelo corredor central superior do teatro”, explica Thiago Freire, técnico da programação cultural da unidade. “O próprio espaço do teatro foi subvertido, desafiado e apropriado de formas novas pelo espetáculo”, diz. O musical é uma montagem de um texto de Plínio Marcos dirigida por Dagoberto Feliz e com o ator Cristiano Tomiossi na pele de Noel.