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Caio Fernando Abreu



foto: Acervo Família Abreu

A obra de Caio Fernando Abreu, reconhecido como um dos grandes estetas da palavra, resiste ao tempo com um trabalho marcado pela intensidade criativa e a dimensão existencial do ser humano


Embora tenha sido considerado por parte da crítica um escritor geracional, ligado principalmente aos anos de 1970 e 1980, Caio Fernando Abreu superou qualquer efemeridade e é reconhecido, hoje, tanto pelo indiscutível valor literário, como também pela postura de angústia perante a vida.

Capaz de sintetizar sensações com uma eficiência ímpar, o gaúcho construiu uma obra que busca traduzir anseios universais. Daí, a força de seus escritos. O gosto de morangos mofados na boca, metáfora utilizada em seu livro de maior sucesso, Morangos Mofados (Agir, 1982), que também dá nome ao conto, simbolizou para muitos o sentimento humano inconciliável de despreparo para lidar com questões existenciais. Foi nessa região temática que o autor afirmou sua literatura.

Caio Fernando Loureiro de Abreu nasceu em 1948, na pequena cidade de Santiago do Boqueirão, no Rio Grande do Sul. Em 1963, mudou-se para Porto Alegre e publicou o primeiro conto, O Príncipe Sapo, na revista Claudia. Em seguida, ingressou na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde estudou Letras e Artes Cênicas, mas abandonou ambos os cursos, em 1968, após ser selecionado, em um concurso nacional, para compor a primeira redação da revista Veja.

A partir daí, passa a viajar muito, vivendo em São Paulo, Rio de Janeiro, Espanha, Suécia, Holanda, Inglaterra, França, incluindo uma temporada em Campinas, na chácara da escritora Hilda Hilst (1930–2004), de quem se tornou um grande amigo e admirador. Caio veio a falecer, precocemente, em 25 de fevereiro de 1996, vítima da aids. A dramaturga Maria Adelaide Amaral revela que ele era astrólogo e tinha um lado muito místico. “Ele sempre dizia que seria mais conhecido depois de sua morte”, diz. 


jornalista frustrado


Apesar de ter desenvolvido sólida carreira jornalística, passando pelas revistas Pop, Gallery Around, Nova, IstoÉ, Manchete, Pais & Filhos e também pelos jornais Folha da Manhã, Correio do Povo, Zero Hora, Folha de S.Paulo, O Estado de S.Paulo, o escritor gaúcho era enfático ao proclamar o seu desgosto pela profissão, que mantinha por questões financeiras, já que não conseguia viver apenas da literatura.

Os incontáveis amigos que fez na imprensa confirmam a relação de desafeto que Caio mantinha com o jornalismo. “Ele era um grande repórter, editor e redator muito rigoroso na escrita. Mas, quando trabalhava com isso, reclamava muito, dizia que era como costurar para fora”, declara a também jornalista e escritora Paula Dip, autora de Para Sempre Teu, Caio F – Cartas, Conversas, Memórias de Caio Fernando Abreu (Record, 2009), biografia estruturada com base na vasta correspondência entre os dois, que está em processo de adaptação cinematográfica por ela, com direção de Candé Salles. 

Segundo Maria Adelaide Amaral, que conheceu Caio em 1979, na Editora Abril, “ele escrevia compulsivamente e, por isso, tinha facilidade com o jornalismo, mas odiava e, de vez em quando, pedia demissão e viajava”. No entanto, Caio Fernando também escrevia com liberdade nos periódicos pelos quais passava. Em setembro de 1994, publica, em sua coluna semanal no jornal O Estado de S.Paulo, uma série de três textos, denominados Cartas para Além do Muro, nos quais revela ser portador do HIV.

Na época, dividia o espaço no jornal com o dramaturgo e jornalista Antônio Bivar, sendo que a cada domingo era publicada a coluna de um deles. O autor também editou, ao lado de Caio, nos anos de 1980, a revista Gallery Around. “O contato que tive com ele nesse período foi muito criativo, nas reuniões de pauta. Ele era uma pessoa muito engraçada e inteligente”, lembra Bivar.

O livro Onde Andará Dulce Veiga, publicado em 1990, premiado pela Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) e levado para o cinema pelo cineasta Guilherme de Almeida Prado, em 2007, com título homônimo, ficcionaliza um pouco dessa relação conflituosa de Caio Fernando Abreu com o jornalismo.

Além de diversas críticas à profissão, a partir do repórter que protagoniza o livro e é obrigado a moldar o seu texto ao gosto do chefe, Caio cria um personagem que está envolto na redação de seu primeiro romance e em uma busca interior, representada pela investigação a respeito da cantora desaparecida, Dulce Veiga. “O Caio era muito hábil com a escrita e conseguia escrever várias coisas ao mesmo tempo. Durante o trabalho, ele redigia os contos, as cartas, além das incontáveis reportagens”, afirma a amiga Paula Dip.


vocação literária


A vida de Caio Fernando Abreu sempre esteve intimamente ligada à palavra, mesmo que muitas vezes, em sua obra, ele pareça querer se despregar do escrito, em busca de sentidos mais complexos. Autor de muitos contos, reunidos em livros como Inventário Irremediável, O Ovo Apunhalado, Pedras de Calcutá, Ovelhas Negras, Estranhos Estrangeiros (veja boxe Trecho) e Morangos Mofados, Caio também escreveu peças teatrais, novelas, romances, crônicas e cartas.

Além de contribuir para o roteiro do filme Onde Andará Dulce Veiga, foi também roteirista de Romance, do cineasta Sérgio Bianchi. Para o crítico literário Fábio Lucas, Caio sempre manteve a produção ficcional dele em alto nível. “Era um excelente contista, inventivo e, às vezes, até audacioso”, explica. “Sem dúvida, ele está entre os melhores de sua geração.”

Além de escritor por vocação, o autor gaúcho era entusiasta da leitura e tinha como suas maiores inspirações Clarice Lispector, de quem se tornou amigo, e a inglesa Virginia Woolf. “Quando ia escrever, ele tinha um ritual. Colocava mil laudas em branco ao lado e uma rosa amarela para a Virginia Woolf, que considerava sua padroeira. Ele gostava de trabalhar a partir do começo da noite, avançar pela madrugada e dormir durante o dia.

Sempre fumava muito e, se tinha sono, tomava bastante café, às vezes misturado com um pouco de conhaque”, revela Paula. Frequentemente, essa intensidade criativa também era transportada para o seu dia a dia. Fascinado pelos movimentos contraculturais dos anos de 1960 e 1970 e adepto da instabilidade perante o mundo, Caio viveu de forma errante e passou a buscar uma literatura que respondesse às carências afetivas do ser humano. “De modo geral, ele se inspirava na realidade, nas angústias dele e naquilo que vivia”, acrescenta Maria Adelaide Amaral.

É assim que Caio Fernando Abreu se debruça sobre a contemporaneidade e procura inspiração nos personagens frutos dessa fragmentação moderna, em que o ser humano não encontra espaço de autoafirmação e vive nas paisagens sombrias e inescapáveis da própria individualidade.

Segundo o professor da Universidade Federal de Minas Gerais, doutor em estudos literários e autor da dissertação de mestrado Caio Fernando Abreu, a Metrópole e a Paixão do Estrangeiro, Bruno Souza Leal, do ponto de vista de uma proposta estética, a literatura dele se situa numa tradição mais intimista, que tem na Clarice Lispector, por exemplo, uma das referências. “É um escritor muito preocupado com um cenário emocional, uma configuração poética da linguagem e o seu uso para dar conta dessa dimensão existencial”, esclarece. “Fora desse projeto estético, impressiona a capacidade que seus escritos têm de gerar novos leitores.”

Reconhecido pela crítica e público, o escritor gaúcho teve três livros laureados com o prestigiado Prêmio Jabuti: Triângulo das Águas, em 1984; Os Dragões Não Conhecem o Paraíso, em 1989; e Ovelhas Negras, em 1996. No entanto, somente após sua morte, Caio Fernando teve maior reconhecimento. Atualmente, há mais de 40 teses e dissertações sobre a sua obra e muitos jovens têm se interessado por sua literatura.

Um deles, o ator Davi Kinski, que esteve em cartaz no Sesc Pompeia, com o monólogo Lixo e Purpurina (veja boxe Em cena), explica essa fascinação que ele provoca: “O Caio é um escritor que persegue a paixão e é muito intenso. Isso interessa tanto para o jovem, por estar em processo de descobrir a vida e vivendo essa intensidade, quanto para aquele que já passou dessa fase e sente nostalgia”.

Já o dramaturgo Antonio Bivar acredita que ainda é cedo para mensurar o valor da obra de Caio Fernando Abreu no panorama da literatura brasileira. “Ele ocupa um lugar muito  importante e com certeza marca uma época, um pensamento e um estilo sofisticado”, diz.


o amigo solitário


Pesquisar sobre Caio Fernando Abreu pode ser um labirinto, pois a rede de relações que ele estabeleceu parece interminável. No entanto, por mais que tenha desenvolvido inúmeras amizades, o escritor gaúcho ficou conhecido por sua amarga solidão.

“Não é uma solidão da ausência de relações, marcada pelo isolamento, mas sim uma solidão existencial baseada no estar só, perante uma percepção de mundo individual”, explica Bruno Souza Leal. No campo amoroso, o escritor gaúcho se relacionou com homens e mulheres, sem nunca ter mantido uma relação estável. “Ele era um solitário, mas isso não o impedia de fazer amizades muito sólidas e profundas. Mas é claro que ninguém jamais conseguiu suprir o vazio abissal que havia dentro dele”, afirma Maria Adelaide Amaral.

Além dessa solidão que o acompanhava, quem o conheceu não nega a personalidade forte, de alguém que colecionava amigos, em maior escala, mas também alguns inimigos. “O Caio era brincalhão, mas muito intolerante, não era uma pessoa fácil”, conta Antônio Bivar.

Uma das melhores amigas, a escritora Paula Dip, lembra que “quando ele estava feliz, era o melhor amigo do mundo, muito leal, divertido e dedicado. Se estava deprimido, ele sumia, se trancava no quarto e, muitas vezes, tomava remédios para dormir e ficava lá dentro por dias.

Ele era intenso tanto na alegria como na tristeza”. Para suprir esse isolamento interior, Caio esteve ao lado de muita gente, mas foi ao criar uma literatura da inquietude que se aproximou de forma perene das angústias humanas. “Ele era intrinsecamente um escritor, e realizava a sua obra com enorme paixão e coerência. Sem dúvida alguma é um autor que faz falta ao panorama da ficção brasileira”, afirma Fábio Lucas.


Em cena

Espetáculo Lixo e Purpurina revela facetas do autor gaúcho

Em cartaz no Sesc Pompeia até o dia 3 de abril, Lixo e Purpurina reuniu dois textos do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu: Anotações sobre o Amor Urbano e o próprio Lixo e Purpurina. Com adaptação de Kiko Rieser e direção de Chico Ribas, o espetáculo narra as angústias de um rapaz exilado na Inglaterra dos anos de 1970.

O jovem ator Davi Kinski interpretou o personagem, em um monólogo corrosivo que reflete sobre as dificuldades das relações afetivas e a solidão incessante. No texto Lixo e Purpurina, Caio escreve: “De vários fragmentos escritos em Londres em 1974 nasceu este diário, em parte verdadeiro, em parte ficção”.

Assim, trata-se do retrato um tanto autobiográfico de um jovem que vive a efervescência cultural da época, em meio às dificuldades financeiras e os questionamentos existenciais. No entanto, Kinski nega que tenha tido pretensão de representar o escritor: “A composição da personagem foi um mosaico de várias referências, lógico que incluindo a personalidade do Caio, mas também a minha própria, pois me sinto igualmente um exilado e estrangeiro, com 22 anos e tentando ser ator no Brasil”.




O SIMULACRO DA IMAGÉRIE
Em fevereiro de 1996, a Revista E publicou, de Caio Fernando Abreu, na seção Inéditos, o conto Ao Simulacro da Imagerie, que viria a fazer parte, postumamente, do livro Estranhos Estrangeiros


::Leia a íntegra do conto::


O Simulacro da Imagérie
por Caio Fernando Abreu


“Lo que importa es la no-ilusión. La mañana nace”
(Frida Kahlo: Diários)


O céu tão azul lá fora, e aquele mal-estar aqui dentro.

Fora: quase novembro, a ventania de imavera levando para longe para longe os últimos maus espírito do inverno, cheiro de flores em jardins remotos, perfume das primeiras mangas maduras, morangos perdidos entre o monóxido de carbono dos automóveis entupindo as avenidas.

Dentro: a fila que não andava, ar-condicionado estragado, senhoras gordas atropelando os outros pelos corredores estreitos sem pedir desculpas, seus carrinhos abarrotados, mortífero feito tanques, criancinhas cibernéticas berrando pelos bonecos intergalaticos, caixas lentas, mal-educadas, mal-encaradas. E o suor e a náusea e a aflição e todos os supermercados do mundo nas manhãs de sábado.

Ela olhou as própria compras: bolachas de água e sal, água com gás, arroz integral e, num surto de extravagância um pote de geléia de pêssegos argentinos. Duraznos, repetiu encantada. Gostava de sonoridades. E não tinha mãos livres para se abanar.

E a mulher de pele repuxada amontoara no balcão seus víveres dois carrinhos transbordantes de colesterol e sugar blues. Ela suspirou. E olhou para cima, de onde a espiava uma câmera de TV, como se fosse uma ladra em potencial, e olhou também as prateleiras aos lados do corredor polonês onde estava encurralada e viu montanhas de pacotes plástico com jujubas verdes, rosas e amarelas, biscoitos com sabor de bacon, cebola, presunto, queijo. E latas, pilhas de latas.

Suspirou outra vez, suspirava tanto, e voltou a olhar para fora, para além das cabeças. Continuava o céu azul tão claro e raro naquela cidade odiosa. Mas aqui dentro ela só conseguia tirar um pé da sandália havaiana - era sábado, danem-se, ela era assim mesmo - para apoiar os dedos de unhas muito curtas, sem pintura, sobre o outro pé.

Feito uma garça, ela, pousada no meio do charco açucarado. A saia larga indiana estampada de muitas cores até os tornozelos, a blusa solta de seda branca sem mangas, o dinheiro contado escondido no bolso sobre o seio esquerdo.

O pé inchado, balançou-o no ar para ativar a circulação. E se alguém olhasse para ela assim, sem ver o pé inchado escondido pela saia larga, diria ser perneta, pobre moça toda desgrenhada, essas roupas meio hippies amassadas e ainda por cima perneta. Perneta, equilibrista, não se apoiava em nada nem ninguém, em muletas ou bengala.

Danem-se, repetiu olhando enfrentativa em volta. Mas "danem-se" não era suficiente para aquela gentalha. Então rosnou Fodam-se! em voz baixa, mas com ódio suficiente, exclamação, maiúscula e tudo. Ficou mais serena depois, embora exausta, desaforada e sem toxinas, a moça-garça.

Foi então que o viu na fila ao lado, já passando pelo caixa. Não estava mais gordo, não no rosto pelo menos, nem mais calvo. Mas havia no corpo magro uma estranha barriga que parecia artificial. E rodas de suor nas axilas, manchando o tecido sintético da camisa branca social.

Sem jeito, sem vê-la, ele tentava enfiar as compras nas sacolas de plástico e enviesando a cabeça ela investigou curiosa: vodka, uísque, campari, pilhas de salgadinhos plásticos, maionese, margarina, pacotes de jornal com cruas lingüiças sangrentas, outro carrinho cheio até as bordas de latas de cerveja, queijo, patê - seria uma festa? -, mais latas, muitas latas, seleta de legumes, massa de tomate, atum.

As sacolas furavam, latas despencavam no chão e ele curvava-se para apanhá-las tentando assinar o cheque, e ninguém o ajudava. Ele era um homem que conhecera há muito tempo, quando ainda não era esse urbanóide naquele supermercado, mas apenas um quase jovem recém-chegado de anos de exílio político no Chile, Argelia, depois a pós-graduação em Paris, em algum assunto que ela não lembrava direito.
Só sabia que ele o tempo todo falava num certo simulacro de um

tal imagérie, as pernas cruzadas no sofá forrado de algodãozinho estampado em lilás e malva da sala do apartamento dela, as pernas apertadas com força protegendo as bolas, como se ela estivesse sempre a ponto de violentá-lo no próximo segundo, falando e falando sem parar em Lacan e Althusser e Derrida e Baudrillard, principalmente Jean Baudrillard, enquanto ela se ocupava em servir mais vinho branco seco gelado com pistache, contemplar as rosas amarelas no centro da mesa e comover-se a admirá-lo, assim jovem assim estrangeiro no próprio país assim aterrorizado com qualquer possibilidade do toque de outro humano em sua branca pele triste em amor vinda do exílio.

 "Você sabe viver", ele costumava dizer. Ela sorria modesta, mais sarcástica do que lisonjeada. Mal sabia ele do quanto, entre as traduções o alemão ela mourejava feito negra passando panos com álcool nas paredes, aspiradores nos "tapetes, recolhendo cortinas para a lavanderia, trocando lençóis todo santo dia, lavando louça com as próprias mãos avermelhadas que olhava melancólica quando ele dizia essas coisas, ensaboando no tanque roupa quase sempre branca, quase sempre seda, que não tinha nem teria jamais máquina, picando cenouras, rabanetes e beterrabas para saladas cruas, remexendo em panelas de barro com colher de pau, odiava microondas, para sempre e sempre exausta de tudo aquilo. Seu único consolo era a fita com Astrud Gilberto e Chet Baker cantando búdicos ao fundo.

Limpa, ordenada, trabalhadeira, aquela mulher, todo dia. E morta de cansaço e amor sem esperanças por aquele homem que não a via nem veria jamais como realmente era, nem a tocaria nunca. Admirava-a para não precisar tocá-la.

Conferia-lhe uma superioridade que ela não possuía para não ter que beijá-la Dissimulado, songamonga, recolhia nomes, telefones,endereços de pessoas e lugares provavelmente úteis algum dia para A Árdua Tarefa De Subir na Vida, vampirizava cada um dos amigos dela, sobretudo os que detinham alguma espécie de poder, editores, políticos, jornalistas, donos de galerias de arte, cineastas, fiadores, produtores. Sedutor, insidioso, irresistivel - vamos jantar uma hora dessas, insinuava ambíguo para todo mundo. Durante três anos. Nunca lhe dera um orgasmo.

Nunca deitara nu ao lado dela na cama, nua também. No máximo sussurrava doçuras tipo fica agora assim por favor parada contra essa janela de vidro que a luz do entardecer está batendo nos seus cabelos e eu quero guardar para sempre na memória esta imagem de você assim tão linda. Não ela não era tola. Mas como quem não desiste de anjos, fadas, cegonhas com bebês ilhas gregas e happy-ends cinderelescos, ela queria acreditar. Até a noite súbita em que não conseguiu mais.

E jogou copos de uísque na cara dele, ligou bêbada de madrugada durante dias, deixou recados terríveis na secretária eletrônica ameaçando suicídio, assassinato, processo, chamando-o de ladrão, quero porque quero minhas fitas de Astrud e Chet de volta, sua bicha brocha, bem bruta e irracional repetindo o que seu analista, também exausto de tudo aquilo, dissera não especificamente sobre ele, mas sobre todos os homens do mundo: homossexual enrustido que não deu até os 35 anos vira mau-caráter, minha filha. Ele tinha 36 quando se conheceram.

Agora quantos mesmo? Uns 43 ou 44, era de Libra, daquele tipo que não sabe a hora de nascimento. E aquela barriga, aquele Ar De Quem Venceu Na Vida, aquela camisa sintética, as rodas de suor, as calça  Zoomp com pregas, as bolsas de plástico barato do super, três ou quatro em cada mão saindo torto e quase gordo do supermercado.

Atrás dela, na fila, alguém empurrou-a com o carrinho. O caixa esperava com ar entediado e sotaque paraíba é cheque, cartão ou dinheiro, quééérida? Dinheiro, ela disse. E jogou sobre o balcão a nota retorcida, como se fosse uma serpente viva. Depois pegou as poucas compras e caiu fora: Ausgang! Lá fora o vento bateu em sua saia longa, fazendo-a voar. Estou sem calcinha, ela lembrou.

E pensou em Carmen Miranda. Mas deixou que voasse e voasse. Respirou fundo. Morangos, mangas maduras, monóxido de carbono, pólen jasmins nas varandas dos subúrbios. O vento jogou seus cabelos ruivos sobre a cara. Sacudiu a cabeça para afastá-lo e saiu andando lenta em busca de uma rua sem carros, de uma rua com árvores uma rua em silêncio onde pudesse caminhar devagar e sozinha até em casa. Sem pensar em nada, sem nenhuma amargura, nenhuma vaga saudade, rejeição, rancor ou melancolia.

Nada por dentro e por fora além daquele quase novembro, daquele sábado, daquele vento, daquele céu azul – daquela não-dor afinal. ::