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Arte e engenharia com estilo brasileiro

por Miguel Nítolo

A economia mundial é um baú de surpresas. Não é sempre que se pode sair por aí brandindo números sobre projeções e expectativas quando o que está em pauta é a globalização e suas vertentes. Certas tendências, porém, não deixam margem a dúvidas. Por exemplo, em anos passados era temerário afirmar que a expansão internacional da empresa brasileira era um caminho sem volta. Hoje, contudo, já se pode assegurar que as portas do mercado mundial estão escancaradamente abertas para o investidor tupiniquim. E que a despeito das armadilhas plantadas no caminho, há situações em que o empreendedor brasileiro, mesmo que novato no negócio, já leva jeito de veterano no jogo das relações econômicas.

Falar em multinacionais brasileiras ainda pode soar estranho aos ouvidos do homem comum, acostumado a ouvir, ler e escrever sobre transnacionais baseadas notadamente no hemisfério norte. Todavia, notícias relativas à crescente presença do capital brasileiro no exterior começam a dar contornos mais fortes e nítidos a um cenário até recentemente impensável. E se antes a internacionalização dizia respeito apenas às companhias atuantes nos segmentos de mineração, petróleo e transformação, hoje se estende, também, ao setor da construção civil. A forte investida nessa direção, em especial de grandes empreiteiras, tem tido o condão de apresentar a engenharia verde e amarela ao mundo, um trabalho que começou há pelo menos quatro décadas, mas ganhou fôlego nos últimos anos. E não se trata aqui de obras de pequena monta, mas de construções que estão envolvendo cada vez mais engenharia e muito capital.

Um exemplo recente dessa revoada rumo ao exterior foi dado pela Centrais Hidrelétricas da Nicarágua (CHN), consórcio formado pela Eletrobras e pela Construtora Queiroz Galvão, que, em outubro passado, anunciou o início da construção da hidrelétrica de Tumarín, naquele país. Orçada em US$ 1,1 bilhão e com término previsto para 2015, a usina terá potência instalada de 253 megawatts e capacidade para dar atendimento a 30% da demanda local por energia. Em seu relatório anual, a Queiroz Galvão ressaltou que Tumarín “é um projeto emblemático para a Nicarágua porque representa uma importante mudança na matriz energética daquela nação”, ainda hoje dependente em 80% da eletricidade gerada por termelétricas.

Também aqui, como em tudo, quem quer colher tem de plantar. “A engenharia nacional é destaque no exterior porque, não podemos esquecer, nossa população cresceu 150 milhões de pessoas desde a década de 1950, e essa expansão demográfica foi atendida, em grande parte, por importantes obras de infraestrutura desenvolvidas e executadas por brasileiros”, observa João Antonio del Nero, presidente executivo da Figueiredo Ferraz – Consultoria e Engenharia de Projeto, uma das muitas empresas de capital nacional atuantes no exterior.

Ele aponta como exemplos marcantes os investimentos feitos em grandes barragens, como Itaipu; em grandes pontes, como a que liga o Brasil à Argentina, em Foz do Iguaçu, e em autoestradas modernas, como a Imigrantes, em São Paulo. A lista é quase interminável, mas poderiam ser incluídas, ainda, a Ponte Estaiada Octavio Frias de Oliveira, na capital paulista, e a ponte sobre o rio Negro, em Manaus, segundo Eduardo Barros Millen, presidente da Associação Brasileira de Engenharia e Consultoria Estrutural (Abece). “Também citaria a construção de edifícios como o E-Tower, na cidade de São Paulo, que utilizou concreto de alto desempenho de 80MPa, e obras petroquímicas e mecânicas como as do Estaleiro Atlântico Sul, onde foram instaladas pontes rolantes com capacidade de 150 toneladas-força e um pórtico móvel com capacidade de 1,5 mil toneladas-força (com vão de 80 metros sobre o dique seco)”, ilustra.

Área civil e eletromecânica

Há um outro aspecto sempre lembrado. “As empreiteiras nacionais contam com quadros extremamente competentes”, explica Marcio Joaquim Estefano de Oliveira, professor do curso de engenharia civil do Instituto Mauá de Tecnologia. “Elas têm flexibilidade administrativa e muitas investem no aprimoramento, principalmente de engenheiros, arquitetos, geólogos e daqueles profissionais que ajudam a manter a empresa em condições de alta competitividade.” Completando, Oliveira afirma que elas também diversificam o campo de atuação sem perder o foco de suas origens e dos objetivos para os quais foram criadas.

Moral da história: a engenharia brasileira pode atuar em todas as áreas civis e eletromecânicas, incluindo aeroportos, energia, estradas, obras subterrâneas, saneamento básico e transporte metroferroviário, como explicam os responsáveis pela expansão mundial das construtoras locais. Só a divisão de engenharia e construção da Odebrecht, a maior empresa da América Latina nessa área de atuação, já executou perto de 2 mil trabalhos em 35 países (números do final de 2010), “prestando serviços integrados de engenharia, suprimento, construção, montagem e gerenciamento de obras civis, industriais e de tecnologia especial”, segundo a própria companhia. Fundada em 1944, na Bahia, a empreiteira está presente nas três Américas, na África e na Europa.

Foi a primeira construtora brasileira, isso há 21 anos, a executar um projeto público nos Estados Unidos: um trecho do Metromover, o metrô de superfície de Miami. E de lá a Odebrecht não saiu mais; ao contrário, ampliou significativamente seu portfólio no país, tendo, já naquela época, levado seus canteiros de obras para a Califórnia, a Carolina do Norte e a Carolina do Sul – hoje, a empresa é atuante na Flórida e na Louisiana. O último relatório anual da construtora mostra que já realizou 55 obras naquele país.

O Grupo Andrade Gutierrez é outro peso-pesado de capital nacional com forte atuação no exterior. Fundada em 1948, em Belo Horizonte, a empresa acumula empreendimentos e atividades comerciais em 38 países da África, América Latina, Ásia e Europa, mercados onde entregou, até agora, 650 projetos (dados de dezembro de 2010). Sua primeira investida internacional culminou com a construção da rodovia Epena-Impfondo-Dongou, na República do Congo, na África, em 1984. No mesmo ano, iniciou uma obra na Bolívia, também de uma rodovia.

Nos anos recentes, a Andrade Gutierrez esteve envolvida em uma série de obras no exterior, podendo ser citados como exemplos o Projeto Bayóvar, no Peru (estação de bombeamento de água do mar, adutora com 42 quilômetros, reservatórios, planta de dessalinização e tanques de armazenamento de água), que será operado pela companhia brasileira a título de concessão pelos próximos 27 anos; a Siderúrgica Nacional, na Venezuela, uma planta compacta com capacidade para processar 1,5 milhão de toneladas de aço líquido por ano; o estaleiro Nor-Oriental, também na Venezuela; a rodovia Mongomo-Ebebiyín, na Guiné Equatorial; o terminal de contêineres do Porto de Luanda, em Angola; a rodovia entre as localidades de Mbéré e Ngaoundéré, em Camarões; a autoestrada Douro Litoral, em Portugal; o viaduto de Constantine, na Argélia, e um túnel ferroviário para linha de alta velocidade (Eixo Ourense-Santiago), na Espanha.

Outra gigante do setor, a paulista Camargo Corrêa, não ficou atrás nessa corrida. Elton Fernandes, da assessoria de imprensa da empresa, conta que ela iniciou sua caminhada lá fora pela Venezuela, em 1978, liderando o consórcio que construiu e montou a hidrelétrica de Guri, concluída em dezembro de 1986. A divisão Engenharia e Construção, responsável pela execução de obras na América do Sul e na África, participou, só em 2010, de 50 empreendimentos de grande porte. Segundo a Camargo Corrêa, passos fundamentais foram dados nos últimos anos, com o propósito de transformá-la numa das maiores empreiteiras do mundo ainda em 2012.

Fernandes salienta que, na relação das obras mais representativas feitas ou em execução pela companhia fora do Brasil, despontam a barragem da represa de El Guapo, na Venezuela, a 150 quilômetros de Caracas, que restabeleceu o abastecimento de água para mais de 400 mil habitantes do estado de Miranda; a Rodovia Interoceânica, que liga o Acre ao oceano Pacífico através do Peru; a hidrelétrica Porce III, de 660 megawatts, na Colômbia, que entrou em operação no final de 2010; a linha de transmissão de Uige, empreitada de grande importância para o desenvolvimento do interior de Angola, e a mina carbonífera de Moatize, em Moçambique, aqui como parte do consórcio de construção e instalação, uma obra que, depois de concluída, será explorada comercialmente pela Vale.

Filiais

Há um dado curioso na internacionalização das grandes empreiteiras brasileiras. Elas não estão saindo do país apenas para cumprir contratos de construção, mas também para fincar, definitivamente, suas bandeiras lá fora, seja por meio da abertura de filiais seja através da aquisição de empresas já estabelecidas. A própria Camargo Corrêa, por intermédio da controlada InterCement, é dona de sete fábricas de cimento no Brasil e nove na Argentina. A presença do grupo brasileiro na nação vizinha se dá através da coligada Loma Negra, a maior do ramo em território argentino e que foi adquirida anos atrás. Ela tem aproximadamente 50% do mercado local e, além das unidades produtoras de cimento, controla seis fábricas de concreto, três centros de distribuição, uma ferrovia e uma companhia de tratamento de resíduos industriais.

Em 2010, a Camargo Corrêa destinou US$ 500 milhões a erguer duas outras linhas de produção no exterior, uma no Paraguai (Yguazú Cementos), outra em Angola (Palanca Cimentos). Isso sem falar na aplicação de US$ 1,4 bilhão na compra de 33% do capital da portuguesa Cimpor, a oitava empresa do setor em escala mundial, presente em 12 países. “Além do destaque em Portugal e na Espanha, a Cimpor detém dois terços de seus ativos em mercados emergentes, como África do Sul, Brasil, China e Índia”, esclarece a InterCement. A Camargo Corrêa não esconde que também tem planos de vir a ocupar uma posição de realce no ranking dos maiores fabricantes mundiais de cimento.

A Odebrecht segue basicamente o mesmo figurino adotado pela Camargo Corrêa, plantando filiais e ampliando espaços fora do Brasil. A divisão de engenharia e construção da companhia engloba agora seis empresas, consolidadas em 2010 conforme o caráter dos negócios e a área geográfica de atuação: Odebrecht Energia, Odebrecht Engenharia Industrial, Odebrecht Infraestrutura, Odebrecht América Latina e Angola, Odebrecht Venezuela e Odebrecht Internacional.

Graças a essa distribuição de interesses, a empreiteira pode tocar, simultaneamente, algumas obras de relevo em diversos pontos do planeta. Faz parte dessa lista, por exemplo, a hidrelétrica de Chaglla, no Peru, projetada para gerar 406 megawatts de energia elétrica e que, a título de concessão, será operada pela Generadora Huallaga, controlada pela Odebrecht Energia. A usina está sendo construída pela Odebrecht Peru, subsidiária da Odebrecht América Latina e Angola.

Em 1988, a Andrade Gutierrez, por sua vez, já havia dado um passo firme na mesma direção. Naquele ano, a construtora assumiu o controle da portuguesa Zagope, sediada em Lisboa, firma com forte atuação na África, Ásia e Europa. Terceira maior construtora em atividade em Portugal e com 6,7 mil funcionários em 2010, a empresa trabalha com vistas a consolidar sua presença em Angola, na Argélia, em Moçambique, na República do Congo e na Guiné, “mantendo-se atenta às oportunidades de obras públicas em Portugal, Arábia Saudita, Índia e Catar”, segundo informações da Andrade Gutierrez.

Não são apenas as empreiteiras que se lançam de corpo e alma ao mercado internacional; as empresas de engenharia também têm feito semelhantes incursões. Essa é a situação da Figueiredo Ferraz – Consultoria e Engenharia de Projeto, que, ainda nos anos 1980, decidiu oferecer sua experiência ao mercado externo. Foi assim que nasceram suas filiais no Chile e em Portugal. Entre as obras de vulto das quais participou no exterior podem ser apontados os projetos executivos do metrô de Lima, no Peru, e de duas linhas do metrô de Caracas e duas pontes sobre o rio Orinoco, na Venezuela. E para os metrôs de Lisboa e Porto, em Portugal, foram feitos trabalhos de vulto, tais como a seção escavada na zona de transição da Estação Baixo Chiado, com 400 metros quadrados de área. “É a maior obra do gênero já realizada”, afirma Del Nero, o presidente executivo da companhia.

É provável que daqui para a frente a presença da engenharia made in Brazil consiga ganhar ainda maior expressão fora do país, com o decidido desejo da Eletrobras de afixar seu letreiro nos quatro cantos do mundo. Depois da hidrelétrica de Tumarín, na Nicarágua, a empresa volta agora suas atenções para as oportunidades que estão se abrindo especialmente na América Latina e na África. Controlada pelo governo brasileiro e voltada às áreas de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica – com 164 usinas hidrelétricas, termelétricas e termonucleares, 59 mil quilômetros de linhas de transmissão e seis distribuidoras –, a Eletrobras opera sucursais no Panamá, Peru e Uruguai e, como décima maior companhia do mundo em seu ramo, investe na ideia de estabelecer escritórios e coligadas em outras partes.

Competência técnica

São boas as chances de os brasileiros erguerem hidrelétricas no exterior por conta do conhecimento e do histórico vitorioso do país nesse campo. “O Brasil trabalha com hidrelétricas há mais de um século”, lembra Luis Fernando Achá Mercado, gerente do Núcleo de Engenharia de Geração e Transmissão da Andrade & Canellas, empresa de consultoria no segmento de energia. As usinas brasileiras desse tipo, explica ele, alcançam 100% de nacionalização de construção e de equipamentos, reafirmando, assim, a competência técnica do país na área.

Além de fortalecer a engenharia nacional, a exportação de tecnologia e serviços tem a faculdade de estimular as vendas da indústria de bens de capital. “As empreiteiras carregam consigo uma série de fornecedores de equipamentos que, sem essa ajuda, talvez não conseguissem sozinhos ingressar com seus produtos em outros mercados”, observa Ralph Lima Terra, vice-presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (Abdib). Ele destaca o papel do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), que anos atrás começou a financiar as construtoras que executam obras no exterior, “pois se trata de uma estratégia de exportação e de comércio exterior da qual o Brasil não pode prescindir”.

Calcula-se que, em 2011, o BNDES tenha liberado US$ 1,3 bilhão com esse propósito. É um montante que equivale a uma pequena fração dos financiamentos das obras externas tocadas pelas empreiteiras nacionais, mas não deixa de ser de grande significado e valor inestimável. Em 2009, por exemplo, o repasse daquele banco oficial foi de US$ 937 milhões, um total pouco inferior ao de 2011, mas que representou um salto de 1.185% na comparação com os valores de 2001 (US$ 72,9 milhões).

O contraponto desse cenário promissor são as dificuldades que algumas empreiteiras estão enfrentando, especialmente na América Latina, e que têm levado à paralisação dos trabalhos por conta de contestações de grupos locais e movimentos sociais. “Com certa frequência, as obras de infraestrutura envolvem disputas sobre territórios ricos em recursos naturais, num contexto de grande mobilização política de grupos tradicionalmente marginalizados, como a população indígena. Quando essas tendências se cruzam, o resultado é o conflito”, assinala Maurício Santoro, cientista político e professor de relações internacionais na Fundação Getúlio Vargas (FGV) do Rio de Janeiro.

Santoro esclarece que o Brasil já tem tradição como fornecedor desse tipo de serviço ao exterior, mas não estava acostumado a operar em democracias. “Quando as empreiteiras brasileiras faziam negócios com o Iraque, de Saddam Hussein, ou com a Líbia, de Muamar Kadafi, precisavam se preocupar somente em acertar os contratos com o governo local. Os desejos das populações não contavam.” Agora é diferente, alerta o professor da FGV. Ele pondera que países como a Bolívia e o Peru estão às voltas com movimentos sociais fortes que podem discordar das autoridades estatais e, ocasionalmente, entrar em choque com os interesses das empresas brasileiras. “É preciso levar em conta esses novos atores políticos e incluí-los nas negociações”, adverte o professor.