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O dinheiro sujo que não deixa rastro

Lei contra recursos financeiros de origem criminosa está ultrapassada

FLÁVIO CARRANCA


Arte PB

Lavar dinheiro é a principal maneira de esconder a origem de valores obtidos através de atividade criminosa e assim poder utilizá-los na economia legal. Na verdade, a ideia de ocultar o produto de um crime e tentar usufruir dele é antiga, mas sua relevância aumentou muito nos últimos anos em razão da globalização e das novas tecnologias, que permitem a circulação de dinheiro por meios eletrônicos.

A primeira nação a criminalizar a lavagem de dinheiro foi a Itália, em 1978, como resposta à atuação de grupos mafiosos e aos sequestros das Brigadas Vermelhas. A segunda a tomar tal decisão foram os Estados Unidos, em 1986, em razão da exploração do jogo e do tráfico de drogas pelo crime organizado, problema endêmico que afligia o país desde os tempos da Lei Seca.

No Brasil, a estrutura de combate e prevenção a essa atividade começou a ser montada em 1998, como resultado da adesão do país à Convenção de Viena, de 1988 – acordo internacional contra o tráfico de entorpecentes e substâncias psicotrópicas –, que obriga os Estados signatários a adotar medidas legais para caracterizar a lavagem de dinheiro como delito. O ataque às torres gêmeas de Nova York, em setembro de 2001, deu novo impulso ao propósito de tornar mais eficaz esse combate, com reflexos inclusive na legislação brasileira.

Passados 12 anos de vigência da Lei de Lavagem de Dinheiro (nº 9.613/98), que criminalizou essa prática no Brasil, grande parte da esperança de melhorias nesse campo está depositada na aprovação de um novo projeto em tramitação no Congresso Nacional. O PL 3.443/08, que visa atualizá-la, deve ampliar a base de crimes antecedentes, passando a atingir qualquer delito ou contravenção que gere bens ou valores passíveis de ser lavados. Contravenções penais altamente lucrativas, como jogo do bicho ou exploração de jogos de azar, serão abrangidas pela lei. O projeto prevê também o aumento da pena máxima para esse crime para 18 anos e a alienação antecipada de bens, além de criminalizar o financiamento do terrorismo.

Divulgado em julho deste ano, um relatório do Grupo de Ação Financeira (Gafi) – organismo criado pelos países ricos (o antigo G7) em 1989 para desenvolver políticas nessa área – avaliou nosso sistema de combate e prevenção à lavagem de dinheiro. O documento enumera problemas, mas também aponta avanços significativos. O Gafi reconhece que o Brasil criminalizou adequadamente a lavagem de dinheiro, mas afirma que o número de pessoas condenadas é baixo, considerando-se as dimensões territoriais e a sofisticação do sistema financeiro nacional. Além disso, ainda não foi criminalizado o financiamento do terrorismo como um delito autônomo, de acordo com as convenções internacionais das quais o país é signatário.

É difícil estimar o montante que se lava no Brasil. A procuradora Carla Veríssimo De Carli, coordenadora do Grupo de Trabalho em Lavagem de Dinheiro e Crimes Financeiros do Ministério Público Federal (MPF), explica que as estimativas existentes não são confiáveis, já que esse é um crime que procura justamente ocultar a origem de valores. Segundo ela, o volume é muito grande. “Pense no tráfico de armas, de drogas, nos crimes financeiros. Esse total é o dinheiro que é lavado.”

Quando bem-sucedida, a operação de lavagem permite que os recursos sejam utilizados na economia legal, em outro negócio, sem que se saiba que o dinheiro é ilícito e sem que o criminoso responda pelo crime anterior. O ingresso desse grande volume de valores no sistema financeiro regular gera um desequilíbrio entre as empresas, uma vez que aquelas que trabalham dentro da legalidade ficam em desvantagem em relação às que usam dinheiro sujo. Segundo Rodrigo De Grandis, procurador da República do MPF em São Paulo, “a lavagem gera uma concorrência desleal e impede a atuação efetiva do Estado no descobrimento do crime. Essa prática ofende de forma frontal a administração da Justiça e o sistema financeiro nacional”.

Apesar de não ser um paraíso fiscal, como as ilhas Cayman e as Bahamas, o Brasil é um país importante na rota da lavagem. De Grandis explica que normalmente as investigações em que atua dizem respeito a crimes praticados por brasileiros ou estrangeiros no Brasil, com a lavagem de valores realizada fora do país. O excepcional é o contrário: o crime ser praticado no exterior e a lavagem feita aqui. Como exemplo desse tipo de caminho inverso da lavagem, o procurador lembra o caso MSI/Corinthians, em que o crime foi cometido na Rússia e a lavagem de dinheiro ocorreu em território brasileiro. Estratégia análoga foi adotada pelo traficante colombiano Juan Carlos Abadía, que praticou crimes no exterior e aplicou o dinheiro em bens aqui.

Embora tenha sido aprovada não faz muito tempo, a lei de lavagem em vigor no Brasil é considerada ultrapassada em comparação à de nações europeias, já que a legislação brasileira estabelece um rol de crimes antecedentes taxativo, limitado, enquanto em países mais avançados todo e qualquer delito entra nessa categoria. A lei de 1998 não inclui como antecedente, por exemplo, o crime contra a ordem tributária, a sonegação fiscal e até mesmo o roubo.

Outro problema grave apontado por diversos operadores do direito não diz respeito apenas ao crime de lavagem. Trata-se da infinita quantidade de recursos judiciais permitida pela legislação brasileira, além da possibilidade de prescrição, que tornam muito difícil uma condenação. Um levantamento realizado pelo juiz Fausto Martin De Sanctis, titular da 6ª Vara Criminal Federal em São Paulo, especializada em crimes contra o sistema financeiro nacional e em lavagem de dinheiro, confirma esse quadro: “Não há ninguém cumprindo pena em São Paulo por lavagem, enquanto na França são 80 pessoas. No Brasil, levantei os dados e constatei 11 casos desde a criação da lei. Num país como o nosso, isso significa que o sistema é muito falho”. Vale dizer que o confisco de bens de quem fez a lavagem também é prejudicado em consequência desses problemas, uma vez que só pode ser feito após a sentença definitiva.

Informação e sigilo

Críticas à parte, foi a lei 9.613 que criou no país uma unidade responsável pela análise das informações enviadas por bancos e outras instituições sobre operações consideradas suspeitas – o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão vinculado ao Ministério da Fazenda. Uma vez avaliadas como consistentes, as informações são repassadas à polícia ou ao Ministério Público para investigação. Coração do sistema de combate à lavagem de dinheiro no Brasil, o Coaf tem sua eficácia reconhecida. Segundo Carla Veríssimo, 97% dos relatórios gerados pela unidade resultam em investigações criminais. O Gafi, no entanto, aponta como séria deficiência do sistema antilavagem do Brasil a falta de poderes de supervisão desse organismo e recomenda estender a obrigação de informar atividades suspeitas a todas as categorias de serviços e profissões não financeiras.

O organismo internacional sugere que operações suspeitas sejam comunicadas por contadores, auditores, advogados, cartórios, além dos negociantes de objetos de arte, antiguidades, joias e metais preciosos, bem como empresas de factoring. O problema nesses casos é saber quem fixa as normas sobre a maneira como deve ser feita a comunicação de operações suspeitas. Setores como cartórios ou a categoria dos contadores dispõem de entidades que podem assumir essa tarefa, mas em outras áreas importantes, como a das empresas de factoring, isso ainda não acontece.

O presidente do Coaf, Antonio Gustavo Rodrigues, afirma que a existência de um organismo desse tipo assegura que apenas operações realmente suspeitas sejam comunicadas aos órgãos de repressão. A ideia, segundo ele, é evitar que movimentações fora do normal porém legais sejam confundidas com lavagem, o que poderia inibir o fornecimento de informações pelos bancos. Wilson Gutierrez, diretor técnico da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), esclarece que são os órgãos supervisores, como o Banco Central e o Coaf, que determinam por meio de instruções, normas e circulares a rotina que as instituições bancárias devem seguir para a prevenção à lavagem de dinheiro. Segundo ele, desde 1998 os bancos brasileiros estão obrigados a ter uma área de compliance, termo que designa a conformidade com as regras. “Normalmente, todos os bancos estão preparados para esse tipo de trabalho. Os de varejo, logicamente, têm áreas mais sofisticadas, porque precisam de acompanhamento para conhecer seu cliente, mas essa estrutura existe em todas as instituições financeiras.” O diretor da Febraban acrescenta que, por outro lado, é preciso ter cuidado para não transgredir a lei de sigilo bancário.

A informação de operações suspeitas ao Coaf constitui, na opinião do juiz Fausto De Sanctis, a base do sistema de combate ao crime de lavagem. A seu ver, a comunicação incompleta de operação suspeita e a omissão deveriam ser criminalizadas. O juiz defende também uma ampliação do número de setores obrigados a prestar informações para além do que está previsto na nova lei de lavagem. “Pessoas que realizam assessoria contábil, por exemplo, em vários campos, não só no imobiliário, teriam necessidade de comunicar esses casos, além dos cartórios de registro de imóveis, que não têm essa obrigação nem terão.” De Sanctis cita também os eventos relacionados ao futebol, por sinal um dos temas do livro que ele lançou recentemente, Lavagem de Dinheiro – Jogos de Azar e Futebol (Juruá Editora), no qual defende que as pessoas em contato com negociações nesse esporte passem a ter a obrigação de comunicar operações suspeitas: “É preciso colocar o futebol como uma prioridade no Brasil, a fim de que não caiba nenhuma apropriação privada de algo que é considerado bem público”.  Na prática, ele explica, isso significa transparência, ações concretas de auditagem na Confederação Brasileira de Futebol (CBF), além de controle e rigor nas transferências de jogadores para o exterior.

Uma das recomendações do relatório do Gafi é que seja mantido o apoio à atuação das Varas Especializadas em Lavagem de Dinheiro e Crimes contra o Sistema Financeiro Nacional (Veld), muito criticadas por advogados e procuradores do interior. Exemplo disso é o artigo “Lavagem: Varas nas Capitais, Impunidade no Interior”, do procurador da República de Santa Catarina Celso Antônio Tres, postado no blog do jornalista Frederico Vasconcelos em 19 de fevereiro último. Ele afirma que as Veld, surgidas em 2003, não constituem uma especialização e sim um simples deslocamento da competência dos foros do interior para as capitais, acrescentando que isso causa irreparáveis prejuízos tanto à acusação quanto à defesa. Como seria de esperar, as varas especializadas são defendidas pelo juiz De Sanctis: “O grande avanço das varas especializadas é que elas permitem a integração da inteligência da polícia com a do Ministério Público. Essa concentração em relativamente poucas pessoas é importante porque gera um conhecimento panorâmico, uma leitura melhor do delito. Com isso, é possível desenvolver ações mais eficazes de combate e prevenção”.

Estratégia nacional

Outra ferramenta importante no dispositivo do Estado brasileiro de combate à lavagem é o Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional do Ministério da Justiça (DRCI/MJ). Seu diretor adjunto, Boni Soares, explica que uma das atividades dessa unidade é a coordenação de todas as instituições do sistema nacional antilavagem, por meio da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla). Criada em 2003, ela reúne mais de 80 órgãos dos três poderes, além de instituições como o Ministério Público e os tribunais de contas. A Enccla promove um amplo encontro anual, no qual as ações são pensadas em conjunto, e mantém grupos de trabalho para promover as modificações necessárias, tomar medidas ou buscar soluções que melhorem a atividade do Estado nessa área.

É função também do DRCI fomentar a atualização das ferramentas de combate à lavagem, utilizando o Laboratório de Tecnologia contra Lavagem de Dinheiro (LABLD), com sede em Brasília. A finalidade dessa estrutura é desenvolver metodologia de análise de grandes volumes de dados envolvidos nas investigações dos processos, utilizando tanto softwares já presentes no mercado quanto novos. Segundo Soares, esses conhecimentos também são repassados: “Já temos mais de uma dezena de laboratórios em replicação em diversos estados”. O DRCI faz ainda a intermediação entre autoridades nacionais e estrangeiras, nos casos em que isso seja necessário para o combate à lavagem.

De acordo com o relatório do Gafi, em muitos locais do país as autoridades estão mais preocupadas em investigar os crimes antecedentes (tráfico de drogas, corrupção, delitos contra a administração, entre outros), sem se voltar especificamente para a lavagem de dinheiro. Carla Veríssimo explica que isso acontece porque esta vem depois e, muitas vezes, o inquérito termina com o crime antecedente. “O policial não pensa no que foi feito com os recursos provenientes daquela atividade ou não se preocupa em efetuar a apreensão de todos os bens, agindo só para apreender as drogas e prender o traficante.” Segundo a procuradora, fazer um rastreamento financeiro para ver quem está envolvido, investigar quais os bens que foram comprados com aqueles recursos, para pedir arresto ou sequestro deles, ou ainda descobrir quem estava lavando dinheiro para o traficante são iniciativas que dependem de conscientização maior dos agentes.

Essa consciência parece já estar presente em algumas instâncias. O delegado Marcelo Andrade, chefe da Divisão de Repressão a Crimes Financeiros e Lavagem de Dinheiro da Polícia Federal, informa que a instituição tem também vários setores que investigam os chamados crimes antecedentes e que podem apurar a lavagem de dinheiro. Desde 2003, a Polícia Federal possui delegacias de crimes financeiros em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além de grupos de repressão a esse tipo de atividade em todos os outros estados. “Trabalhamos junto com a Receita Federal, o Banco Central, a CVM [Comissão de Valores Mobiliários], o Coaf. Essas parcerias são importantes porque, nas investigações, é fundamental conciliar as informações do órgão regulador e o conhecimento da polícia”, diz Andrade.

O Ministério da Justiça desenvolve, desde 2004, o Programa Nacional de Capacitação e Treinamento para o Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (PNLD), voltado a agentes públicos. Por ele já passaram mais de 6 mil pessoas, entre policiais civis e federais, membros do Ministério Público, promotores de Justiça, procuradores da República, membros da advocacia pública e integrantes do Judiciário. O PNLD teve seu mérito reconhecido pelo Gafi, que, no entanto, apontou a necessidade de incrementar esse curso para ampliar seu público-alvo. “Precisamos ter mais juízes e agentes dos órgãos supervisores [Coaf e DRCI] capacitados. Os funcionários de instâncias financeiras devem igualmente ser treinados, porque sua atuação é muito importante na prevenção à lavagem de dinheiro”, afirma Boni Soares. Segundo ele, o reflexo desse trabalho aparece claramente. Nos estados em que houve treinamento no Ministério Público, no Judiciário e na polícia, começam a surgir investigações e processos nessa área. Já naqueles em que isso nunca ocorreu, não existem processos. “É um problema de qualificação e de noção da importância desse trabalho”, conclui.

 

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